Folha de S. Paulo
Ideias do diplomata não prevaleceram na história, mas continuarão pulsando em quem clama por emancipação
O filósofo e
diplomata Sergio Paulo Rouanet morreu neste domingo (3), mas sua
obra mantém-se viva, não porque suas ideias tenham prevalecido —pela razão
inversa.
Conhecido nacionalmente pela Lei de
Incentivo à Cultura, que leva seu nome, deu uma contribuição
importante ao Itamaraty, entre outros campos, por meio de propostas e de
negociações do Gatt (prévio à criação da Organização Mundial do Comércio) e da
UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e do Desenvolvimento),
que favoreceram os países em desenvolvimento.
Foi membro da ABL (Academia Brasileira de
Letras), e seu legado inclui a criação recente do Instituto Rouanet, em
Tiradentes. Escreveu sobre Machado de Assis ("Riso e Melancolia"),
sobre Freud ("Édipo e o Anjo" e "Os Dez Amigos de Freud").
O cerne de sua obra filosófica, sobretudo,
é reconhecido dentro e fora do Brasil. É a ele que quero me dedicar neste
artigo.
Ao fazer a defesa do universalismo, Rouanet
nadou contra a corrente. Reelaborou ideias da Ilustração dentro de um novo
conceito de Iluminismo. Este, tal como ele propôs, é uma utopia e situa-se no
campo das ideias, que podem ser utilizadas como um guia em qualquer tempo e
lugar. Não se confunde, portanto, com a Ilustração, que é fenômeno histórico
europeu do século 18.
Algumas das reflexões de Rouanet sobre o
relativismo —e, em especial, o relativismo cultural—
são da década de 1980 e 1990 e têm ganhado atualidade, porque as correntes
relativistas que ele criticou se reforçaram desde então. Os particularismos,
baseados em religião e nação, em especial, têm aguçado disputas políticas,
servido ao autoritarismo e alimentado guerras civis e internacionais.
Em "As Razões do Iluminismo", de 1987, Rouanet explica por
que a geração de uma cultura autônoma não deve ficar confinada a fronteiras
nacionais: a inteligência não tem pátria, a cultura autêntica pode ser
estrangeira, a cultura nacional pode ser alienada e, se a cultura é
verdadeiramente universal, ela é "ipso facto" nacional.
Um dos ensaios, intitulado "O novo
irracionalismo brasileiro", havia sido publicado no
Folhetim, da Folha, em 17 de novembro de 1985, sob o título
"Verde-amarelo é a cor do nosso irracionalismo".
É, a meu ver, em "Mal-estar na Modernidade", de 1993, que Rouanet expõe o cerne de seu pensamento iluminista. Na contramão dos deterministas culturais, que, em geral, não admitem a realidade dinâmica das culturas nem, em maior ou menor grau, seu caráter híbrido, ele defende que a cultura é síntese sempre se fazendo e será tanto mais vigorosa quanto mais diversificados forem os elementos dessa síntese. A natureza dinâmica e sincrética das culturas torna mais complexas, por sua vez, as noções de identidade e de raízes, que supõem uniformidade, paralisia e, quando negam a hibridização, endogamia.
Para Rouanet, as culturas enfrentam dois
grandes desafios. Um deles é olhar-se no espelho que mostre o caminho do futuro
e não apenas confirme o que são na face imobilizada de seu presente. Outro é o
de manter a perspectiva da mudança sem se descaracterizarem.
O relativismo condena as culturas ao que
elas são. É, portanto, conservador e avesso à crítica e está a serviço de uma
estratégia defensiva. Desativa a razão por torná-la relativa e deixa o
pensamento crítico sem instrumentos para combater os horrores que existem
efetivamente.
Ainda em "Mal-estar na
Modernidade", Rouanet chama de "historista" a atitude ou posição
teórica caracterizada pela exaltação de uma particularidade, investida em uma
totalidade temporal ou grupal. Para ele, o mais influente dos relativismos
históricos é precisamente o cultural.
Este justifica uma atitude de tolerância
com relação às culturas alheias e favorece o statu quo por duas vias: a noção
de que todos os critérios de julgamento moral se enraízam na cultura e a noção
correlata de que não há possibilidade de avaliação intercultural ou
transcultural.
A particularidade é, assim, uma arma do
poder repressivo. Todo "historismo" é protecionista e protege um
patrimônio: a propriedade, a tradição ou a ordem social.
Isso não significa preconizar a extinção
das particularidades existentes, tampouco opor-se ao uso metodológico do
relativismo para estudar a cultura alheia. Trata-se, sobretudo, de uma crítica
ao uso ideológico de particularidades reais como pretexto para silenciar a
crítica e a autocrítica. O "historista" não se oporia às práticas da
Inquisição, pois foram culturalmente condicionadas e faziam sentido na Idade
Média cristã.
Em outro exemplo, se todos os padrões são
culturalmente condicionados, não existindo padrões transculturais de avaliação,
como criticar, por exemplo, o nazismo?
Considerar igualmente válidos, por exemplo, a mutilação clitoriana e a
emancipação da mulher não seria suspender o julgamento, seria aprovar a prática
injusta.
O iluminista condena a discriminação
e qualquer
manifestação de sexismo e de racismo, porque esses são uma lesão da
dignidade universal do ser humano. Não fala a partir da nação, mas a defende
quando agredida, porque a agressão injustificada é uma violação de normas
universais.
A ideia iluminista é, assim, universalista
em sua abrangência, pois visa a todos os seres humanos sem limitações. É
individualizante em seu foco, pois os sujeitos e os objetos do processo de
civilização são indivíduos. É emancipatória em sua intenção, pois esses
indivíduos devem aceder à plena autonomia, no tríplice registro do pensamento,
da política e da economia.
Propõe que passemos do conceito de
civilizações, umas se opondo a outras, ao de civilização no singular. Com isso,
reintroduz no conceito sua dimensão valorativa e normativa, que o opõe ao de
barbárie.
O primeiro ensaio de "Mal-estar na
Modernidade" se intitula "Iluminismo ou barbárie". É uma alusão
ao grupo Socialismo ou Barbárie, que se organizou na França em torno,
principalmente, dos filósofos Cornelius Castoriadis e Claude Lefort.
Na oposição do iluminismo à barbárie existe uma assimilação entre o iluminismo
e a civilização, entendida como a civilização moderna. A primeira seção do
ensaio está, aliás, intitulada "A crise da civilização moderna".
Ainda nesse livro, Rouanet explica que a
oposição civilização-barbárie já havia sido utilizada de maneira xenófoba e
conheceu seu apogeu na idade de ouro do imperialismo europeu. Em uma posição
radicalmente distinta, o iluminista combate a particularidade eurocêntrica que
se quer hegemônica. O colonialismo e o imperialismo não foram universalistas:
empenharam-se em exportar suas particularidades culturais, acreditando levar a
razão em si. O lobo particularista se fantasiava de cordeiro universal.
A atualização da antítese
civilização-barbárie parte de uma estrutura de valores universal. No polo da
civilização, estariam aqueles —em qualquer lugar do mundo— que lutam pelos
direitos humanos e pela democracia. Estaria uma utopia não eurocêntrica e
universalista de emancipação econômica, política e cultural dos seres humanos.
A ideia é irrealizável, mas insubstituível, pois sem ela nosso percurso seria
cego.
No polo oposto, o da barbárie, se
encontrariam o crime organizado, as classes dominantes corrompidas e responsáveis
pela exclusão social, os terroristas e fundamentalistas.
A civilização, assim entendida, coincidiria
com o "projeto civilizatório da modernidade". À semelhança do
Iluminismo, é uma utopia que se enfrenta às realidades da barbárie e contrária
a todos os etnocentrismos, pelo menos por duas razões: porque inclui entre seus
valores centrais o universalismo, quando todo etnocentrismo é particularismo, e
porque elege como sua ética a da autonomia, quando o etnocentrismo nega o
preceito kantiano de respeitar a dignidade e a liberdade de todos os homens.
Essa visão utópica acena para a
possibilidade de que as culturas mais vulneráveis possam proteger-se do
etnocentrismo e do poder dos mais fortes. Ao mesmo tempo, estariam abertas para
receber aquela influência que fizessem avançar suas sociedades na direção da
paz, da justiça, do desenvolvimento, de melhores condições sociais, da
igualdade e da liberdade.
Em um artigo
para o caderno Mais!, da Folha, intitulado "Liberdade
transcultural" e publicado em 1º de abril de 2001, Rouanet
mostra que duas ideologias, na aparência opostas, seriam na verdade
complementares: a que reivindica para o Ocidente o monopólio das ideias
liberais e as do nacionalismo autoritário, que endossa esse julgamento para
executar suas políticas repressivas contra dissidentes.
Em seu livro "Interrogações", de
2003, Rouanet crê que o processo de universalização nos torna menos
provincianos e está acompanhado de uma pluralização cultural que preserva a
diversidade. A universalização seria pluralista porque seus fins só podem ser
atingidos por uma racionalidade comunicativa que supõe o desejo e o poder dos
sujeitos de defenderem a especificidade de suas formas de vida.
Ao mesmo tempo, está aberta a sincretismos
e formas inéditas de hibridização. A universalização e a pluralização seriam as
duas faces da modernidade emancipatória, voltada para a autonomia. A universalização
seria o movimento de internacionalização da modernidade emancipatória.
Longe de ser uma ideologia ocidental, a
doutrina dos direitos humanos serviria para condenar o próprio Ocidente quando
impõe políticas imperialistas, pois essas violam o mais elementar dos direitos
do homem: o direito de moldar o próprio destino.
Para Rouanet, o homem não pode viver fora
da cultura, mas ela não é o seu destino e sim um meio para sua liberdade.
O Iluminismo, tal como proposto por ele,
não está ultrapassado. As ideias desses livros e ensaios podem estar
circunstancialmente derrotadas, mas não morrerão tão cedo. Continuarão pulsando
nos corações dos que clamam por liberdade, autonomia, autodeterminação e
emancipação.
*Escritor e diplomata. Autor, entre outros
livros, de "Cidade Livre", "Entre Facas, Algodão" e
"Homem de Papel
Nenhum comentário:
Postar um comentário