*Rodrigo Maia (PSDB/RJ), Orlando Silva (PC do B/SP), Pedro Paulo (PSD/RJ), Felipe Rigoni (União/ÉS), Joice Hasselmann (PSDB/SP), Marcelo Ramos (PSD/AM), Kim Kataguiri (União/SP)
O Globo
A autorização para criar e ampliar
benefícios sociais e distribuir dinheiro às vésperas da eleição, com amparo num
suposto 'estado de emergência', deve ser avaliada com muito cuidado
Nenhum dos apelidos que a PEC n. 1/2022
recebeu até hoje faz jus ao seu real significado.
Não é uma “PEC de bondades”, porque não é
bondade dar com uma mão e, em poucos meses, tirar com a outra, com juros e
inflação elevados, que atingirão de forma impiedosa os mais vulneráveis. Não é
uma “PEC eleitoreira”, simplesmente porque os prejuízos que ela acarreta vão
muito além da seara eleitoral. Também não é uma “PEC kamikaze”, porque o
governo não age de forma suicida, pelo contrário: coloca-se numa posição de vantagem,
qualquer que seja o resultado de sua manobra. É preciso compreender e nomear
essa medida de forma precisa, se quisermos superar o dilema que ela apresenta a
nós brasileiros.
Os numerosos estudos sobre os riscos que
ameaçam a democracia liberal convergem para um mesmo ponto: boa parte dos
regimes autoritários contemporâneos não é instituída por meio da força bruta.
Eles surgem de ações populistas, que visam suprimir ou mitigar garantias
constitucionais a partir de maiorias legislativas circunstanciais ou de
decisões plebiscitárias que expressam o momento. Um dos alvos prediletos dos
populistas é a manipulação das regras eleitorais.
Por isso, a autorização para criar e ampliar benefícios sociais e distribuir dinheiro às vésperas da eleição, com amparo num suposto “estado de emergência”, deve ser avaliada com muito cuidado. Primeiro, a expressão “estado de emergência” não existe em canto algum da Constituição. Ela foi extraída de políticas de defesa civil e o próprio Poder Executivo a define como uma situação de crise provocada por um desastre que comprometa a capacidade de resposta do Poder Público ou que demande a adoção de medidas excepcionais.
“Desastre” remete a algo imprevisível,
urgente e inadiável, implicando, por exemplo, comprar colchões, cobertores e
refeições para populações desabrigadas por chuvas e deslizamentos. Não bate com
o suposto “estado de emergência” que a PEC atribui à elevação “extraordinária e
imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e derivados”, algo que,
apesar de indesejável, era perfeitamente previsível e poderia ter sido
contornado de outras formas pelo Executivo, acionista controlador da Petrobras.
A escolha desse conceito equivocado não é
acidental. Busca acionar uma exceção à legislação eleitoral, que proíbe
terminantemente a distribuição gratuita de bens e valores no ano da eleição,
salvo os casos de calamidade pública e “estado de emergência”. Na prática,
fantasiar de “emergência” a situação atual serve como álibi para uma alteração
indireta e casuística de regras do processo eleitoral, permitindo o que antes
era proibido a menos de um ano do pleito.
Esse expediente fere de morte o princípio
constitucional da anterioridade da lei eleitoral, segundo o qual as regras do
jogo só podem ser mudadas com até um ano de antecedência. O precedente é
gravíssimo: além de violar de forma flagrante a Constituição, ele premia o
improviso, incentiva a irresponsabilidade e estimula a repetição dessa
estratégia espúria a cada ciclo eleitoral.
Precisamos reorganizar a política fiscal e
impulsionar políticas sociais que não apenas administrem a pobreza, mas que
garantam ao cidadão a possibilidade de superá-la com dignidade e autonomia. É
imperativo refletir sobre o efeito que a ampliação desordenada do gasto público
terá num momento como o que vivemos. A conta chegará, e trará com ela as
pandemias da economia, como recessão, maior pobreza, aumento do desemprego e
elevação ou perpetuação das taxas de juros em patamares incompatíveis com o
investimento necessário para fazer o país voltar a crescer no ritmo que
almejamos.
Não há “bondade” alguma na PEC, a não ser
para o próprio governo, que eventualmente tirará proveito eleitoral de seus
benefícios de curto prazo à custa de grandes sacrifícios já na passagem do ano.
A PEC oferece um dilema político
improdutivo. De um lado, busca emparedar as forças políticas que se opõem ao
governo. Todos sabem que despejar mais de 40 bilhões de reais em benefícios às
vésperas da eleição é algo inédito e certamente melhorará as chances eleitorais
do atual presidente. De outro, todos reconhecem as dificuldades enfrentadas por
parte significativa da população com a alta dos preços dos combustíveis. A
armadilha é evidente. Votar contra essa proposta poderá ter um custo eleitoral
elevado. Votar a favor implicará um custo institucional muito alto.
Não há decisões simples. Mas é preciso
alertar sobre o efeito devastador que essa PEC terá nos próximos quatro anos
para quaisquer dos eleitos. Ela aumentará (justificadamente) o receio dos que
pretendem investir no país e, conjugada com inflação e juros elevados, atrasará
qualquer perspectiva de retomada de investimentos estruturais no Brasil,
ampliando ainda mais a chaga da desigualdade social. Sem crescimento, a
possibilidade de conceber e bancar políticas sociais bem estruturadas será
muito difícil. Por fim, qualquer que seja o governo, ele começará no mesmo dia
em que todos esses benefícios acabam.
Não podemos achar normal sustentar
artificialmente um alívio provisório até 31 de dezembro de 2022 e, no dia
seguinte, despertar as pessoas para a realidade do pesadelo. É crueldade!
Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal
afirmou, em passado recente, que nem mesmo uma emenda à Constituição pode mudar
normas eleitorais no período de um ano antes do pleito. Não há dúvida de que
esta PEC burla tal garantia, que o STF descreveu como “o direito de receber, do
Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações
abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral”.
É preciso, de forma coletiva, responsável e
transparente, mobilizar uma discussão profunda, uma chamada à razão, sobre o
que acontece agora no Congresso e os impactos que essa decisão benigna apenas
na aparência terá sobre o nosso futuro econômico e institucional. Ainda há
tempo. Mas muito pouco.
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