domingo, 30 de outubro de 2022

Marina Silva* - O valor da promessa que une diferenças pela democracia

O Globo

A lógica da frente ampla pode estar mais centrada no seu objetivo maior do que num programa específico ou até no candidato

Quando a democracia está em pleno funcionamento, precisando apenas ser mantida e ampliada, as formas de defendê-la são bastante variadas. Porém, quando ela está visivelmente ameaçada, e sobretudo quando ela depende do voto que está em nossas mãos, ou a defendemos por esse meio ou não a estaremos defendendo em nada.

Na normalidade democrática, o povo mobiliza-se para eleger um candidato, um partido, um programa. Em situações evidentes de possível ruptura institucional, a parte da sociedade identificada e comprometida com a manutenção das estruturas democráticas se move para tornar vitorioso um candidato que se comprometa, antes de tudo, a manter plenamente o regime democrático.

Esse processo quase sempre é horizontal e difuso e, nele, os partidos e as lideranças políticas são apenas o fio condutor para pôr em curso o movimento que se engendrou para salvaguardar a democracia.

A lógica da frente ampla pode estar mais centrada no seu objetivo maior do que num programa específico ou até mesmo no candidato, o que pode dar a impressão de esmaecer a preeminência de ambos. Mas um patamar de ação não subsiste sem o outro, daí ser necessário o apoio do candidato, de seu programa e partido. O primeiro, em razão de seu lastro e densidade eleitoral. O segundo, por ser o desaguadouro natural das expectativas que confluem para a candidatura, o que faz com que passe a todos que participaram da empreitada a segurança de que ali há espaço para inscrever seus projetos e desejos políticos.

É isso que faz com que esse programa, mesmo sustentado por apenas alguns delineamentos básicos, seja peça fundamental nos possíveis desdobramentos do governo que será eleito.

Em ambientes típicos de frente ampla, o programa é um tipo de bricolagem, uma vez que nele, exatamente em razão do que está em jogo, cada grupo político, econômico, social e cultural tem o legítimo direito de, mesmo divergindo do candidato e dos partidos que lhe dão apoio, embarcar aí seus projetos, a fim de poderem ter a chance de retomá-los após a vitória eleitoral.

É a entrada em jogo da capacidade de prometer a que se refere Hannah Arendt, tão necessária em tempos de grande imprevisibilidade.

O governo que emergir desse complexo e difuso processo não deve tomar a bricolagem como fraqueza ou possibilidade de fracasso. Deverá tomá-la como um rico e poderoso ingrediente de sua maior fortaleza, para produzir grandes transformações.

Para aqueles que tiverem o discernimento e a coragem de se colocarem como sujeitos políticos na cena da História, movendo-se pelo interesse público em lugar dos velhos caminhos tortos dos pequenos poderes e grandes privilégios, haverá o reconhecimento político e a legitimação indispensáveis para a disputa futura em ambiente verdadeiramente democrático, em que todos terão a chance de se reinventar. Ambiente de confiança entre diferentes, unidos pelo apreço à democracia, onde a crítica seja livre e construtiva, e a autocrítica, sincera e reparadora.

Algo de profundo e inovador temos de aprender neste momento tão crítico. Algo que nos leve, daqui pra frente, a divergências não destrutivas e a convergências políticas e programáticas que gerem consensos progressivos e projetos compartilhados, única forma de assegurar a manutenção e a ampliação de nossa democracia num ecossistema político diversificado, vacinado contra o poder político exclusivo e excludente. Até porque existem momentos na história de uma sociedade em que a crítica mais livre e construtiva que se pode fazer não é a dirigida aos outros, mas a que conseguimos direcionar a nós mesmos.

Se assim não procedermos, uma vez asseguradas as bases de nossa democracia, aí o erro já não será apenas Bolsonaro e o bolsonarismo. O erro será de todos que, diante de tais circunstâncias, não compreenderem a necessidade de, além de preservá-la, estarem igualmente aptos a realizar a imprescindível tarefa de ajudar a democratizar a própria democracia.

*Marina Silva é deputada federal eleita (Rede-SP)

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