O Globo
A lógica da frente ampla pode estar mais
centrada no seu objetivo maior do que num programa específico ou até no
candidato
Quando a democracia está em pleno
funcionamento, precisando apenas ser mantida e ampliada, as formas de
defendê-la são bastante variadas. Porém, quando ela está visivelmente ameaçada,
e sobretudo quando ela depende do voto que está em nossas mãos, ou a defendemos
por esse meio ou não a estaremos defendendo em nada.
Na normalidade democrática, o povo mobiliza-se para eleger um candidato, um partido, um programa. Em situações evidentes de possível ruptura institucional, a parte da sociedade identificada e comprometida com a manutenção das estruturas democráticas se move para tornar vitorioso um candidato que se comprometa, antes de tudo, a manter plenamente o regime democrático.
Esse processo quase sempre é horizontal e
difuso e, nele, os partidos e as lideranças políticas são apenas o fio condutor
para pôr em curso o movimento que se engendrou para salvaguardar a democracia.
A lógica da frente ampla pode estar mais
centrada no seu objetivo maior do que num programa específico ou até mesmo no
candidato, o que pode dar a impressão de esmaecer a preeminência de ambos. Mas
um patamar de ação não subsiste sem o outro, daí ser necessário o apoio do
candidato, de seu programa e partido. O primeiro, em razão de seu lastro e
densidade eleitoral. O segundo, por ser o desaguadouro natural das expectativas
que confluem para a candidatura, o que faz com que passe a todos que
participaram da empreitada a segurança de que ali há espaço para inscrever seus
projetos e desejos políticos.
É isso que faz com que esse programa, mesmo
sustentado por apenas alguns delineamentos básicos, seja peça fundamental nos
possíveis desdobramentos do governo que será eleito.
Em ambientes típicos de frente ampla, o
programa é um tipo de bricolagem, uma vez que nele, exatamente em razão do que
está em jogo, cada grupo político, econômico, social e cultural tem o legítimo
direito de, mesmo divergindo do candidato e dos partidos que lhe dão apoio,
embarcar aí seus projetos, a fim de poderem ter a chance de retomá-los após a
vitória eleitoral.
É a entrada em jogo da capacidade de
prometer a que se refere Hannah Arendt, tão necessária em tempos de grande
imprevisibilidade.
O governo que emergir desse complexo e
difuso processo não deve tomar a bricolagem como fraqueza ou possibilidade de
fracasso. Deverá tomá-la como um rico e poderoso ingrediente de sua maior
fortaleza, para produzir grandes transformações.
Para aqueles que tiverem o discernimento e
a coragem de se colocarem como sujeitos políticos na cena da História,
movendo-se pelo interesse público em lugar dos velhos caminhos tortos dos
pequenos poderes e grandes privilégios, haverá o reconhecimento político e a
legitimação indispensáveis para a disputa futura em ambiente verdadeiramente
democrático, em que todos terão a chance de se reinventar. Ambiente de
confiança entre diferentes, unidos pelo apreço à democracia, onde a crítica
seja livre e construtiva, e a autocrítica, sincera e reparadora.
Algo de profundo e inovador temos de
aprender neste momento tão crítico. Algo que nos leve, daqui pra frente, a
divergências não destrutivas e a convergências políticas e programáticas que
gerem consensos progressivos e projetos compartilhados, única forma de
assegurar a manutenção e a ampliação de nossa democracia num ecossistema
político diversificado, vacinado contra o poder político exclusivo e
excludente. Até porque existem momentos na história de uma sociedade em que a
crítica mais livre e construtiva que se pode fazer não é a dirigida aos outros,
mas a que conseguimos direcionar a nós mesmos.
Se assim não procedermos, uma vez
asseguradas as bases de nossa democracia, aí o erro já não será apenas
Bolsonaro e o bolsonarismo. O erro será de todos que, diante de tais
circunstâncias, não compreenderem a necessidade de, além de preservá-la,
estarem igualmente aptos a realizar a imprescindível tarefa de ajudar a
democratizar a própria democracia.
*Marina Silva é deputada federal eleita (Rede-SP)
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