Folha de S. Paulo
Entre nós, uma política preventiva deveria
começar desmistificando a imagem romantizada do país
Nada é mais perigoso do que uma ideia
quando não se tem outras. Isso soa clichê, mas resume à perfeição o programa de
governo atual: a ideia fixa da violência armada. Para essa questão social, potencializada
pela triplicação da posse de armas no país, é fraquíssima a oposição do
discurso progressista. Talvez porque seja fraca a percepção democrática da
diferença entre força e violência. Vale uma mirada etimológica: a origem da
palavra ("vis") traduz as duas noções.
Não há sociedade que prescinda da força, nem história social de que esteja ausente a violência, seja como condição ou como ato. É disruptiva tanto coletivamente, em caso de guerra, quanto individualmente, como anomia. Na Divina Comédia, Dante reserva aos violentos o vale do Flegetonte, o sétimo círculo do inferno. A modernidade tenta proteger-se com o monopólio estatal do fenômeno.
Mas os cidadãos temem primeiro os atos e
não o pouco visível estado de violência, por mais que uma sociedade
estruturalmente desigual esteja sempre afeta a atos de anomia. De fato, a
iniquidade econômica e política dá sempre margem a ciclos expansivos da
violência.
Entre nós, uma política preventiva deveria
começar desmistificando a imagem romantizada do país. O escravismo e o
patriarcalismo adestraram as elites na negação das diferenças pelo extermínio
puro e simples. Atávicos nas formas coletivas de consciência, esses fenômenos
fossilizados respondem até hoje pela naturalização de práticas violentas contra
a gente mais pobre.
Individualmente, violência ou desmedida da
força é o ovo da serpente entocada no mesmo terreno do diálogo. É o espaço
também marcado por vetores sociais anacrônicos, como a suposta ascendência
física do homem sobre a mulher. Um mito desmentido pela própria tecnologia dos
corpos: força muscular jamais foi a fonte real de poder. Sem diálogo, ao ver
contrariada a perspectiva mítica de seu domínio, a contraparte masculina,
movida por fúria patriarcal-narcísica, resvala para a violência. Em ricos e
pobres, violência é linguagem sem palavras, expressão envenenada da miséria
humana.
Violência organizada, porém, é estratégia
coletiva de poder, aliás, o único ponto inequívoco do desgoverno federal. A
farra das armas, que inflama o estado de violência com surtos agressivos, é a
cara sem máscara do terror. Colecionador, praticamente um miliciano incubado, é
uma intimidação latente. Mafializou-se a vida social desde o Norte até o
Sudeste, que perde território para milícia e tráfico. O elevado potencial de
guerra urbana é a mais vexatória ameaça à sociedade civil. Com o Estado caindo
de quatro frente ao crime, a política de violência armada é a própria
autonegação do Brasil republicano.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ,
autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar
Nagô".
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