O Globo
Assistimos a vídeos que variam entre o
humor involuntário e o constrangimento de quem testemunha um surto coletivo
Numa das cenas do divertido “Em busca do
cálice sagrado”, filme do grupo de humor britânico Monty Python, uma multidão
medieval tenta convencer o cavaleiro de que uma moça da aldeia é bruxa e,
portanto, deve ser queimada. Os argumentos que a turba apresenta são todos
incoerentes, absurdos, e é mesmo dessa completa ausência de sentido que a trupe
inglesa fazia seu humor. Quem acompanha os canais de Zap e Telegram bolsonaristas
nestes últimos dias tem a impresão de se sentir assim. Perante um filme do
Monty Python.
Os seis atores-roteiristas do Monty Python eram gente muito sofisticada. Todos formados entre Cambridge e Oxford, três deles eram historiadores do tipo que liam César e Cícero em latim. Então, quando descrevem o mundo pré-moderno, estão fazendo humor, mas, igualmente, sendo muito precisos. Afinal, o que distingue o Ocidente pré-Iluminismo e pós-Iluminismo é a razão. É uma certa obrigação que nos impusemos de construir argumentos baseados na realidade observável, que sustentem aquilo em que acreditamos.
É irônico, de certa forma, que uma das mais
sofisticadas criações da modernidade, a internet, esteja trazendo de volta a
pré-Modernidade. Mas é exatamente isso que a internet está construindo. Num
vídeo, o sujeito aponta o celular para um comboio que deixa a Praça do Canhão,
em Realengo, no Rio. O que ele descreve é o início de um golpe militar. Em que
se baseia? Em nada. São carros saindo do quartel. Noutro, um senhor de tênis
vermelho, bermuda e camiseta verde-limão, bandeira nacional ao ombro como se
fora um rifle, ensaia um passo de ganso desajeitado no meio da rua. Num
terceiro, duas moças de joelhos rezam em quase desespero, vestem as cores
nacionais. É um ritual milenarista. Estão à espera de Dom Sebastião ou de
qualquer outro messias.
É isso que os une a todos: estão à espera.
Como em todo culto, desde os tempos de Zoroastro, se convencem de que um
fenômeno qualquer acontecerá. Tem de acontecer. Está para acontecer. E aí
teorias mirabolantes vão nascendo espontaneamente. Se aguardarmos 72 horas, ele
virá. Se ficarmos perante quartéis, eles virão. A diferença entre o golpe, os
deuses astronautas ou o fim do mundo é nenhuma. Essas pessoas fazem parte de um
culto.
Nesse culto não estão, evidentemente, todos
os 58 milhões de eleitores de Jair Bolsonaro. Nem mesmo todos os golpistas. Não
sabemos quantas pessoas são. Mas é importante o Brasil compreender que há um
fenômeno que não víamos há muito tempo em nossa sociedade. Uma parcela de nós
foi radicalizada. E grupos políticos radicalizados costumam formar células
violentas em seu interior.
Os americanos e os europeus estão
habituados a lidar com esse tipo de movimento. Nós, não. No momento, estamos
naquela fase de dissonância cognitiva. Enquanto eles, em conjunto, sentem-se
poderosos e vivem a expectativa do golpe que nunca chegará, nós assistimos a
vídeos que variam entre o humor involuntário e o constrangimento de quem
testemunha um surto coletivo.
O problema é a ferramenta usada para a
radicalização seguir de pé. É o algoritmo do YouTube.
Do TikTok e
do Kwai. Do Facebook. São os disparos em massa via WhatsApp e
Telegram. Pode ser irônico que um movimento pré-moderno nasça de tecnologia só
possível na modernidade, mas não há consolo na ironia. Como é que nossa
sociedade lidará com esse problema? A democracia depende de resolvermos isso.
2 comentários:
Texto delicioso! Parabéns ao colunista!
Eram os deuses astronautas? Entre o Minto venerado por milhões de milicianos golpistas e o astronauta brasileiro eleito senador pelos paulistas, temos o inexplicável general Mourão, transformado em senador pelos gaúchos sem qualquer atuação política relevante naquele estado... Mourão caiu de para-quedas por lá, como Tarcisio em SP... Nos próximos 4 ou 8 anos, serão parte da elite política do país! Restos do esgoto bolsonarista que transbordou entre 2019 e 2022...
Pois é,vimos cenas chocantes e estranhas!
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