Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Há uma diversidade de grupos de eleitores,
e para se governar o país é necessário conversar também com os que não votaram
no presidente eleito
A eleição presidencial de 2022 foi a mais
disputada de todo o período da redemocratização e o candidato vencedor não
representa apenas um partido ou uma coligação de esquerda. Como o próprio Lula
disse logo após a divulgação dos resultados, foi “a vitória de um imenso
movimento democrático que se formou”. Esta lógica de frente ampla derrubou o
bolsonarismo e será ainda mais importante para reconstruir o país, pois só com
pactos entre atores plurais será possível retomar a rota perdida desde 2013.
O diagnóstico de que só será possível pacificar e reerguer o Brasil por meio de uma lógica de frente ampla nasce já da própria compreensão do resultado eleitoral. A derrota de Bolsonaro pode ser explicada, em boa parte, por sua incapacidade de se mostrar confiável para um grande contingente de eleitores. A ameaça constante ao STF, o modelo de guerra política defendido por Roberto Jefferson e outros bolsonaristas, os constantes conflitos e preconceitos proferidos contra mulheres, negros e nordestinos, enfim, a aposta na visão polarizada de mundo, tudo isso limitou o espaço de crescimento eleitoral de Bolsonaro.
Mesmo assim, o derrotado teve cerca de 58
milhões de votos, perdendo o pleito por menos de 2 pontos percentuais —
ressalta-se que Lula teve um pouco mais de 60 milhões de votos, a maior votação
da história do país. Mas não se pode ignorar que a enorme votação de Bolsonaro
se deveu ao maior uso da máquina pública em favor de um candidato em todo o
período democrático recente.
O governo federal torrou quase R$ 70
bilhões com gastos extraordinários, que nunca foram permitidos para os
antecessores, afora isenções fiscais bilionárias cujo impacto no erário de
todos os níveis de governo ainda é incerto. Além disso, patrocinou diversas
mudanças legais para apoiar a cada semana um novo grupo de interesse. E, por
fim, usou o aparato governamental contra o adversário até no dia da eleição,
com uma operação policial digna do período áureo do PRI mexicano, quando havia
eleições apenas para confirmar a vitória do partido único.
O tsunami de apoios e pressões
governamentais, contudo, não foi suficiente. De todo modo, a partir da
constatação do resultado eleitoral apertado, surgiu um diagnóstico de que o
país saíra do pleito dividido. É preciso entender um pouco melhor o sentido
dessa divisão. Ela não significa, em hipótese alguma, que há um lado monolítico
lulista e outro bolsonarista. O campo vitorioso é heterogêneo do mesmo modo que
os votos de Bolsonaro não são todos bolsonaristas-raiz (algo que não ultrapassa
20% do eleitorado, se muito). Uma boa parte do voto no candidato oficial se
deveu às benesses governamentais, e outra parcela foi mais contra Lula do que a
favor de Bolsonaro.
Há uma razoável diversidade de grupos de
eleitores, de maneira que para se governar o país é necessário conversar também
com os que não votaram no presidente eleito. Só que Lula não conseguirá
convencer os radicais bolsonaristas, que são uma minoria. Não obstante, e mais
importante, terá um bom espaço de diálogo com a maioria dos que votaram no
outro candidato: setores mais conservadores, no campo dos costumes e no âmbito
econômico, e com parte do antipetismo que votaram agora em Bolsonaro, mas que
estão abertos à negociação democrática em torno de seus interesses. Isso já
aconteceu no passado e foi possível ter um ambiente político e social menos
tóxico do que o atual.
O fato é que a divisão apresentada ao final
da eleição não é estática. Partir desse pressuposto é fundamental para se
pensar numa estratégia contra a polarização estéril que se instalou no país nos
últimos quatro anos. Só que tal cenário depende da manutenção da lógica de
frente ampla durante todo o próximo período governamental, algo que envolve a
formação de três pactos entre grupos plurais, buscando construir consensos
produtivos para a coletividade, garantindo que o dissenso não se transforme em
guerra e que possa inclusive ser importante como um foco de controle e
aprendizado para os governantes.
O primeiro pacto plural que deve orientar
um governo com lógica de frente ampla deve ser feito com a sociedade. Isso já
começou a ser feito na campanha quando a campanha lulista dialogou com
movimentos que juntavam gente de diversas esferas, como o Derrubando Muros e o
Direitos-Já. Um novo mandato de Lula tem de continuar esse processo, começando
pelos que foram alijados pela visão sectária de Bolsonaro, como as comunidades
indígenas, grande parcela do campo cultural, movimentos sociais de mulheres,
negros e LGBT, lideranças universitárias e especialistas em várias políticas
públicas, entre outros.
Mas é fundamental e urgente também
conversar com aquela parcela que atualmente mais rejeita o bloco liderado por
Lula. É preciso abrir canais com grupos evangélicos, atores do agronegócio,
empresários do comércio e do setor de serviços, microempreendedores, para citar
apenas uma parte daqueles que precisam ser ouvidos e cujas demandas devem ser
levadas em conta.
A ampliação dos ministérios para novas
áreas, a criação de canais de diálogo com a sociedade — como o Conselhão — e a
escolha de ministros com trânsito em setores que não votaram em Lula são
mecanismos fundamentais para se ter um espaço ampliado de conversa e
negociação. Nem sempre acordos serão obtidos e, obviamente, muitos não vão
virar lulistas. A meta não é a unanimidade, tampouco ficar livre das críticas.
O que o novo governo deve almejar é a conquista de um apoio maior do que o
eleitoral. Além disso, é preciso mostrar a capacidade de ceder e incorporar
pleitos legítimos, estabelecer pactos em pontos centrais da agenda pública e
criar um clima social que impeça a lógica estéril da polarização vigente
durante a era bolsonarista.
Além de ampliar o debate e os acordos com
uma sociedade heterogênea, o segundo pacto entre plurais que deve nortear o
novo governo envolve a relação com o sistema partidário. A coligação que elegeu
Lula já é bem mais ampla do que a que Fernando Haddad teve em 2018. Nela, há
atores de centro, como o Solidariedade e o próprio vice-presidente, Geraldo
Alckmin, e mais à esquerda, com o predomínio do PT, mas com um papel muito
relevante da maior liderança ambiental do país, Marina Silva. Com o segundo
turno, novos apoiadores foram incorporados, como o PDT, setores vinculados ao
PSDB e, sobretudo, a liderança emergente da senadora Simone Tebet. Creio ser
ela a melhor síntese da teia multipartidária que elegeu o novo presidente: um
apoio que foi capaz de juntar os vários Brasis num Brasil só.
A ampliação do arco partidário terá que
continuar no processo de construção de maioria congressual. Isso envolverá a
negociação e a partilha do poder com o MDB, o PSD e com mais alguma parcela da
centro-direita, a ser definida ao longo dos próximos três meses. De qualquer
maneira, será uma governabilidade de coalizão, mas é possível estabelecer esse
pacto com atores plurais em torno de projetos e compartilhamento de ganhos em
torno do desempenho governamental.
Se houver uma boa lista de propostas legislativas,
um acordo básico que saiba combinar bem forte investimento social com
responsabilidade fiscal — algo que está longe de ser impossível — e a
construção de agendas integradoras e essenciais para o futuro do Brasil, como a
questão ambiental acoplada à energética e à inserção internacional, será
possível ter um governo de frente ampla estruturado por temas que deem um norte
ao apoio político. Haverá dissensões e necessidade de as partes cederem
posições, mas isso tende a ser melhor do que o jogo estéril de guerra
permanente que vigorou no bolsonarismo.
O quebra-cabeças do modelo de frente ampla
tem como última peça o pacto interinstitucional. É preciso, antes de tudo,
reconstruir as relações com o sistema de Justiça. A ameaça deve dar lugar ao
respeito sobre a autonomia de cada poder, por meio de um diálogo que defina
onde pode ser cultivada a cooperação e onde deve ser garantida a independência.
O mesmo cuidado deve ocorrer nas relações com o Legislativo, a começar pelas
conversas sobre a definição dos presidentes das duas casas. O Congresso precisa
ter um papel de protagonista, mas isso pode ser realizado de forma cooperativa
e com ganhos mútuos junto ao Executivo. Isso deveria começar pela revisão do
orçamento secreto, buscando casar o legítimo pleito das emendas parlamentares
com uma visão mais integrada e transparente com as políticas públicas
construídas pelos ministérios.
O maior exemplo da necessidade e do
potencial de um pacto entre atores plurais está no plano federativo. É neste
ponto que a lógica da frente ampla pode se mostrar vital para a reconstrução do
país. Há governadores eleitos por vários partidos, apoiadores de Lula e de
Bolsonaro. Uma maior colaboração federativa é um ganho para todos, pois as
políticas públicas vão estar mais integradas, aumentando sua eficiência e sua
efetividade. Além disso, quanto mais União, estados e municípios negociarem e
fizerem acordos, mais a democracia será fortalecida por todo o território
nacional.
A sociedade quer um governo mais amplo e menos sectário, com capacidade de diálogo e que pense em compatibilizar demandas diferentes, mas legítimas. Se Lula conseguir fazer isso em boa parte do mandato, o país terá recuperado o fôlego da transformação que perdeu em 2013.
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