O Estado de S. Paulo
Dívida, tributação, gasto público,
eficiência e equidade terão de estar no centro do debate público sobre
crescimento pelos cruciais anos à frente.
Qualquer governo tem suas cotas de acertos
e desacertos. O de Lula não será exceção. O discurso eleitoral eloquente
permite-se proferir certezas e promessas de solução para problemas de todo
tipo. No entanto, vencidas as eleições, ele deve dar lugar ao pragmatismo
responsável a que estão obrigados aqueles que, no exercício do governo, têm de
lidar com recursos escassos, conflitos de interesse e com as incertezas, riscos
e consequências das decisões a tomar.
Quarenta anos atrás, a convite de uma Espanha recém-democratizada, Norberto Bobbio escreveu sobre as transformações da democracia, analisando promessas não cumpridas e contrastes entre a democracia ideal e a democracia real: “Daquelas promessas (...) algumas não podiam ser objetivamente cumpridas e eram desde o início ilusões; outras eram, mais que promessas, esperanças mal respondidas; e outras, por fim, acabaram por se chocar com obstáculos imprevistos. Todas são situações a partir das quais não se pode falar precisamente de ‘degeneração’ da democracia, mas sim de (...) inevitável contaminação da teoria quando forçada a submeter-se às exigências da prática”.
Esse processo está em curso no Brasil desde
a Constituição de 1988 – longo período, dos quais os últimos quatro anos nos
reservaram um teste especialmente duro. Somos hoje um país profundamente
dividido, como parece saber Lula, que afirmou na noite de sua vitória
eleitoral: “Vou governar para 215 milhões de brasileiros, e não apenas para
aqueles que votaram em mim. Não existem dois Brasis”.
A esperança é de que possamos avançar na
busca de maior maturidade político-institucional e de debate público de nível –
menos ideologizado, mais informado e mais voltado para a busca das
convergências possíveis. Estou convencido de que é não apenas possível, mas também
desejável, expressar confiança no futuro – mas sem messianismos salvacionistas.
Afirmar a importância da vontade política – mas sem voluntarismos ingênuos. Há
desafios não triviais a enfrentar neste conturbado espaço entre o mundo
existente e outro mundo que se afirma ser possível.
É fundamental no Brasil de hoje, por
exemplo, empreender esforço sério para aprofundar o entendimento coletivo sobre
a relação entre gasto público, carga tributária e estoque da dívida pública.
Porque uma sociedade moderna deve julgar determinada carga tributária em função
da quantidade e da qualidade dos serviços públicos prestados em contrapartida.
Porque deve compreender o impacto do nível e da composição do gasto público e
da carga tributária sobre a eficiência da economia, a redução da pobreza e a
melhoria das condições de vida da população. E a relação entre o nível, a
composição e a trajetória da dívida pública e as perspectivas de solvência do
setor público, o espaço aberto ao investimento privado e as expectativas quanto
à redução dos juros reais.
Por isso, é indispensável que os governos
(nos três níveis), políticos e eleitores compreendam e aceitem a existência de
restrições à tendência natural do Estado à expansão de suas incumbências, que
com frequência resulta da pressão da própria sociedade. O Estado apenas
redistribui recursos que por ele transitam, que lhe vêm de tributação (sobre a
geração atual), de endividamento (que corresponde a tributação sobre gerações
futuras), da venda de ativos de que disponha, do imposto inflacionário e/ou do
uso sub-reptício de poupanças compulsórias para subsídios a setores
específicos.
Como já escrevi neste espaço, é lamentável
que haja pouca discussão entre nós sobre como fazer do governo um provedor de
serviços eficientes. Aqueles que desejam um papel mais amplo do setor público
estariam fortalecendo sua posição caso se dedicassem a tornar o setor público
mais eficaz. É preciso acreditar que isso não seria impopular. Essa é minha
esperança e também minha expectativa.
Já tivemos governos que acreditaram que a
aceleração do crescimento poderia ser assegurada por uma política dita
“keynesiana” de caráter duradouro – tanto pró-cíclica quanto anticíclica. Nessa
visão, gasto público é vida, é investimento e sempre tem efeito
multiplicador em termos de geração de renda adicional e estímulos tanto à
demanda quanto à oferta (que a expansão da demanda necessariamente geraria).
Afinal, por que alguém preferiria sofrer as agruras da “austeridade” quando
poderia, livremente, escolher maior crescimento, renda e emprego? No processo
de tentar valer a pura “força da vontade política” em condições adversas,
governos podem tornar a situação ainda mais insustentável, como bem sabemos.
Será fundamental, já em 1.º de janeiro de
2023, sinalizar com clareza, de maneira crível, que existe um sistema de regras
que assegurem a sustentabilidade da trajetória de finanças públicas no Brasil
para o triênio 2024-2026 – e adiante. Dívida, tributação, gasto público, eficiência
e equidade são, portanto, temas inter-relacionados, que terão de estar no
centro do debate público (econômico, político e social) sobre crescimento no
Brasil pelos cruciais anos à frente.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC.
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