Há quem chame isso de volta à normalidade. Apesar da sensação real de que matamos saudades, tenho dúvidas sobre se de fato estamos diante de algum tipo de retorno. Tendo mais a compreender esse momento como saída de um beco enlameado, pantanoso e como entrada numa avenida desconhecida. À medida em que, ao caminhar por ela, o país finque os pés no chão, poderá avaliar a qualidade do piso, sua textura em cada trecho, percebendo a firmeza e o alcance de cada passo. Enquanto vencedores podem arriscar saltos para desfrutar bônus da vitória, a realidade aconselha, a quem ganhou e a quem perdeu as eleições, pisar devagarinho, pois a nova avenida não é reta nem está toda pavimentada. Para os componentes do que se autodesignou “frente ampla”, os desafios são manter em dia os músculos e articulações dos pés e prestar atenção a curvas sinuosas, túneis e elevados, que modulam a velocidade.
Na pista da política institucional, o piso
é amigável. Atitude cooperativa predomina para além dos necessários acordos e
negociações, próprios do jogo político. Há
no ambiente uma consciência coletiva da elite política de que lhe foi dada nova
oportunidade de agir como tal. O instinto sobrevivente, após quatro anos de incerteza
radical, sugere aos atores políticos que a parte atual do jogo pode ser jogada de
modo a beneficiar, inicialmente, a todos os que se dispuserem ao jogo dentro
das regras, inclusive se forem da turma do capitão. Remete-se ao futuro as
disputas decisivas. Se a futuro breve ou distante não se sabe (a política
dirá), mas ao menos tem-se um prazo fixado pela democracia, isto é, no próximo
encontro com as urnas tudo será reexaminado. Por ora, não convém a ninguém
antecipar, para não travar a acumulação de capital político acessível a todos, enquanto
dure a cooperação. Nessa, portanto, nada há de altruísmo. É interesse que, ao
que parece, começa a ser mais bem compreendido. Desse modo, a visita do presidente eleito às
cúpulas dos outros dois poderes da República apenas selou uma atitude
antecedente de compromisso. Com os ministros do STF e com os presidentes do
Senado e da Câmara Lula não precisou oferecer mais do que uma disposição de laissez-faire.
Menos judicialização da política e abstenção em relação às disputas internas ao
Legislativo bastam para assegurar bom tráfego.
Quadro distinto há no túnel onde circula um
eleitorado cindido quase ao meio, parte dele interditando a pista sem pavimento
pela qual a frente ampla pede passagem. Suas motivações não são desejo de
golpe, mas um imenso ceticismo em relação ao presidente eleito e ao seu ainda
futuro governo. Ceticismo também em relação ao processo eleitoral findo, modo
de repudiar o sistema político ao qual Bolsonaro, contra leis da lógica, ainda
conseguiu aparecer como contraponto, depois de ter patrocinado, em favor da sua
tentativa de reeleição, uma radical mobilização de recursos públicos por dentro
desse sistema. Conforme pesquisa do Instituto
Atlas (trago aqui informação da jornalista Raquel Landim, da CNN, ao
entrevistar o responsável pelo instituto), entre os dias 4 e 8 de novembro 43%
dos eleitores entrevistados disseram que Bolsonaro foi injustiçado na eleição e
38% que Lula não teve mais votos que Bolsonaro. Mesmo mantendo a devida
distância desses números exatos, inclusive por não conhecer bem a metodologia
empregada, creio ser impossível não prestar atenção na ordem de grandeza. Ela
dá ideia sobre o tamanho do caminho a percorrer pelo campo democrático (não só
pelo governo, como lembrou ontem a jornalista Maria Cristina Fernandes em sua
coluna no jornal Valor Econômico) entre a vitória eleitoral da frente ampla, a
montagem e atuação do novo governo e a fixação de um padrão de competição
confiável entre ele e uma oposição democrática. Nenhuma das três condições é
dispensável para afastar do nosso horizonte, ao menos a médio prazo, o
protagonismo político de uma extrema-direita subversiva e agonística. Das três,
por enquanto alcançou-se a primeira, a 30 de outubro. As duas outras (governo
de frente ampla e oposição democrática) ainda são temas mais para prospecção.
Mas o presidente eleito é uma personalidade
política marcante e incontrolavelmente ostensiva. Por mais que tenha seus
segredos imperscrutáveis e faça deles uso, como qualquer político, sua persona
pública não abre mão de fazer revelações inesperadas, elas também armas
para exercer protagonismo. A sua presença nos palcos procura por vezes neutralizar
a obra da paciente dialética articulatória dos bastidores, caso essa obra
ameace, de algum modo, a sua condição de vértice. E no cumprimento das ordens
do instinto de sua pessoa termina fornecendo material a análises que, sem ele,
seriam precoces.
Foi exatamente o que ele fez nessa última
semana, ao final de dois dias de alta exposição. Na quarta-feira cumpriu, como
se governante já fosse, o importante ritual da separação harmônica dos poderes,
colhendo os merecidos frutos do contraste gritante com o seu antecessor que
ainda vaga pelo palácio. Nesse dia Lula guardou para si seus sentimentos,
desejos e planos, respeitando a primazia das instituições sobre as pessoas. Depois
fez do dia seguinte uma quinta-feira com ares de um pastiche da Lavagem do
Bonfim. Sem confrontar o ritual sagrado cumprido na véspera, assumiu o apetite profano
de políticos outsiders em romaria e se esbaldou em desabafos ao povo, inclusive
com direito a lágrimas. Ao seu lado, fiéis escudeiros e/ou parceiros de
primeiro turno e aliados chegados já no segundo. Esses últimos e parte dos primeiros
foram levados de roldão ao encontro da patuscada, no embalo da retórica
populista, como se fossem turistas desavisados, perplexos e receosos, mas
também encantados com o sincretismo da festa. Na Bahia o rumo é uma basílica e a festa é em
honra de um redentor. Mas no caso em tela, o que são a motivação e o rumo é discussão
mundana, que vai longe e desautoriza a analogia.
O eleitor médio adora tudo isso, daí a
popularidade de Lula. A militância retira dessa performance o
combustível do seu fervor. Já a dinâmica institucionalmente plural e laica da
política democrática sofre com isso, daí a dificuldade de Lula adquirir, nesse
âmbito, uma confiabilidade sustentável, o que o obriga a permanente exercício
de seduções a granel. Por mais que sua retórica populista assopre, depois de
morder, seus pares no mundo da elite política sabem que não estão livres de, na
próxima esquina, receberem do hipnotizador de massas a pecha de picareta ou
golpista. Acordos políticos com Lula tendem a ser intensos, para mostrar que envolvem
cérebro e coração. E efêmeros, a não ser que os aliados, mesmo céticos,
metabolizem seus interesses em forma de devoção e profissão de fé no líder.
Fiz uma interpretação sumária, que não
resistiria ao teste do que foi a performance um tanto frustrante de um
líder populista meio fora de forma, que Lula exibiu na mais recente campanha.
Para quem esperava dele o arrebatamento das massas num resgate de sua
trajetória, é pedagógico resignar-se ao fato de que deve sua eleição à formação
de uma frente ampla de última hora, formada por forças políticas, lideranças, pessoas
e grupos movidos pelo medo da reeleição do seu oponente. Esse choque de realidade não impede, contudo,
que se leve em conta outro fato incontestável, o de que ninguém, na política
brasileira atual, senão ele, poderia reunir condições necessárias - embora não
suficientes, como mencionei acima - para enfrentar e derrotar um incumbente que,
por sua vez. reunia três condições que faziam dele o espectro de uma tempestade
perfeita: mística antissistêmica, arsenal (legal e ilegal) de recursos
materiais derivados da ocupação do cargo e disposição pessoal de não se deter
diante de escrúpulos de qualquer natureza. Esse segundo fato, de ter sido a única
alternativa ao caos, sinaliza um futuro ao protagonismo de Lula. Um futuro de consolidador
da vitória do sistema contra a subversão.
Esse é o preço que, em tese, Lula deve pagar
por ter obtido o apoio eleitoral de uma minoria política e social decisiva, que
lhe rendeu os votos que faltavam. Votos que sozinho com seus apoiadores
primeiros ele não pôde obter, ao contrário do que previa sua tática original de
frente de esquerda acenando ao centro. A dialética articulatória, fundada no
entendimento e em concessões mútuas, com ânimo de conciliação, é a única
gramática disponível a Lula, antes que ele tenha em mãos, efetivamente, os
cordéis do poder governamental. Pode ser que a mantenha, por meses ou até o fim
do mandato, em atenção aos condicionantes objetivos de sua apertada eleição.
Pode ser que não. Até aqui há pistas de uma coisa, de outra e também de
combinação ignorada entre a gramática da articulação e a de cooptação
fisiológica.
A frente ampla, por ter sido improvisada e
não fruto de uma convergência programática dentro de uma estratégia política, implica,
agora, em processos complexos de realinhamento ainda muito opacos. Enquanto
dinâmica de partidos e lideranças que pretendem influir sobre o futuro governo,
o rumo ou a falta de rumo dessa frente ainda é um quebra-cabeças de resolução
ignorada. Certamente será tema em pauta na sequência dos artigos semanais. Hoje
só arrisco, para concluir, uma hipótese, a partir do que transparece a mim sobre
desígnios, provavelmente provisórios, do ator principal. A transparência
relativa desses desígnios provém, como já dito, do fato de Lula, embora sendo mestre
na dissimulação, ser, também, perito em oratória incontinente. Nunca esquecendo
que ambas são recursos conscientes do ator, é possível interpretar, a partir do
que não pode ser dissimulado, o que tem sido a sua tática.
Para resumir, penso que se trata para ele,
agora, de segurar as rédeas da política em suas mãos, como vértice indisputado.
É possível que consiga. Votos, mesmo sem goleada, revigoram o animal político. Mas
a fila da política anda e pode fugir ao seu controle, na eventualidade de um condicionamento
da formação do governo pela transição coordenada por Geraldo Alckmin. As coisas,
no meio político e empresarial, também na sociedade civil e na imprensa, começavam
a parecer andar “bem demais”. Era tal o clima de busca de consenso que, de
repente, se poderia chegar a ele sem a intervenção decisiva do protagonista. As
virtudes do método dialético da articulação poderiam fazer com que ele, o
método, relativizasse as diferenças substantivas sobre, por exemplo, política
econômica, dando lugar a um script irrecusável pelo presidente. Até
porque a percepção da gravidade da crise social e o profissionalismo da
articulação política sobre economia jamais permitiriam à coordenação da
transição o luxo de nublar a máxima prioridade presidencial para suas promessas
explícitas de campanha, quase todas remetidas ao social. Em todas as arenas
visitadas pela comissão respirava-se ar de conciliação entre responsabilidade
social e responsabilidade fiscal. A adversativa “ou” caminhava para o armário. Mas
eis que, numa quinta apoteótica, a mão visível do ator principal instala um
contencioso em cima de uma não questão. Volta-se
à reta final do primeiro turno e o que estava irresolvido, mas andando, parece voltar
à estaca zero.
Vozes petistas menos moderadas, viajando na
maionese, exultaram quando souberam que Henrique Meireles teria dito que Lula
dilmou. Será? As seguidas indicações de pessoas do governo Dilma para diversos
núcleos temáticos da comissão de transição; o aval, ainda que contido, da
presidente do PT à carta
institucionalmente aloprada de Guido Mantega ao BID para reverter uma indicação
do atual governo como se já houvesse um novo; as especulações em torno do nome
de Fernando Haddad para o ministério da Fazenda, tudo isso e outras narrativas
mais pareciam encontrar guarida e sentido nas palavras aguerridas do presidente
eleito num discurso dito histórico, por essas correias de transmissão.
Por outro lado, reações políticas em
contrário assumiram variadas formas. No plano partidário poucos exemplos.
Profissionais da política em geral seguram-se numa hora dessas, quando há muito
em jogo. Mas é digna de nota a clareza quanto ao mérito da discussão usada por
Gilbert Kassab para, em entrevista à CNN, condenar polidamente a fala. E de
curiosidade a ausência do MDB à primeira reunião dos partidos da base ampliada
da transição, que o partido integra a convite direto da presidente do PT. Entre
os chamados “economistas liberais” (profissionais ou intelectuais públicos que
a turma das correias de transmissão ironiza como vozes do “mercado”, o inimigo
secular, evocado pela fala de Lula) as reações variaram entre a crítica assertiva,
sem meias palavras, de Elena Landau – a assessora do programa econômico de
Simone Tebet – e a ironia moderada de Arminio Fraga simulando responder com
paciência às indagações retóricas da fala de Lula. Por fim, no próprio PT houve
leituras bombeiras de que “não foi bem assim” e palavras moderadoras
consistentes, como a do senador Welington Dias.
Essas manifestações de incômodo parecem
longe de um caminho sem volta em relação ao governo Lula, mas refletem, em
comum, a consciência sobre a falta de futuro da dicotomia falaciosa entre
responsabilidade fiscal e responsabilidade social no atual contexto de revisão
conceitual desse tema em todo o mundo pós-pandemia e de convergência política democrática
no Brasil. E expressam, de um ponto de vista racional, variados graus de
apreensão quanto às palavras do presidente eleito, de quem esperam atitudes de
um dirigente do sistema democrático e da política sólida das instituições.
Penso que os temores de um lado e as
celebrações do outro não se sustentam ainda em suficientes fatos. O mais que
provável é que Lula volte do Egito carregado de acordos e promessas internacionais,
antidistônicos para resolver a distonia que provocou. O discurso deverá ser
ambíguo, como sempre. Aos críticos que quiser afagar dirá “não disse que não
havia motivos para preocupação?” Aos que quiser manter à distância dirá que são
provincianos, enquanto ele, Lula, está antenado com a ordem mundial.
Lidar bem com a ambiguidade do mundo real e
saber cultivá-la é, sem dúvida, uma virtude política. Pode ser praticada tanto
na direção de construir consensos sempre parciais e nunca absolutos, fazendo da
política um artesanato de várias mãos, construindo um centro diretor vertical a
partir de circuitos horizontais; ou pode ser praticada na direção de ativar
conflitos até o limiar da divisão, fazendo da ambiguidade do líder o único
ponto de equilíbrio possível e consagrando a política como atividade dependente
de estímulos que podem e até devem vir de baixo, desde que sejam triados pelo vértice. Essa última é a via da ambiguidade virtuosa
de Lula e um mandamento que talvez deva ser observado por todos os brasileiros
que ajudaram a elegê-lo é lembrar que não se pode eleger Lula e querer que ele
seja outro. É assim e assim será. Qualquer
projeto democrático que o inclua não deve incluir a hipótese de que um dia ele
desça do palanque. Jamais descerá. Se descesse seria menos marcante que um
chuchu.
Se alguém, como esse colunista, se
inquietar ou contrariar com isso, deve observar, durante os próximos quatro
anos, um segundo mandamento das urnas, que é imaginar como estaríamos se o
eleito tivesse sido o outro. O espirito de quem é democrata sincero ficará mais
apaziguado. Mas ao mesmo tempo deve ficar atento a outro ponto da fala do
presidente eleito naquela memorável quinta-feira: ele não só exumou o inimigo
“mercado”, como o inimigo Bolsonaro, esse de carne e osso, repetindo, em
palanque tardio, a pauta de uma campanha que deve dar por encerrada se quiser,
de fato, agregar o país. Por mais apaziguados que estejamos com a ambiguidade
de Lula, é insólito ouvir o eleito despolarizador do país tirar o capitão do
atual ostracismo para convida-lo a se preparar melhor para a “próxima”. Bolsonaro
pode virar, a médio prazo, assunto do Poder Judiciário e pé de página na
política institucional. Sua irrelevância sistêmica é indispensável para
desobstruir o túnel de insatisfeitos, onde ele atua e tem peso. Para pavimentar
o túnel e integrar os transeuntes à política da nova avenida Brasil, pelo novo
governo e pela nova oposição. E deixar Bolsonaro entregue aos juízes e a André Janones.
*Cientista político e professor da UFBa.
Um comentário:
O discurso genuíno do Lula nada teve de ''retórica populista'',no meu entender,claro.
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