Secretário da Fazenda de São Paulo afirma ter enviado proposta a Persio e Alckmin e diz que foi sondado para integrar governo Lula
Alexa Salomão / Folha de S. Paulo
O economista Felipe Salto, secretário de Fazenda e
Planejamento do Estado de São Paulo, está redigindo uma proposta de
reforma da regra fiscal para substituir o teto de gastos. Uma minuta já foi
enviada ao vice-presidente eleito Geraldo Alckmin e ao economista Persio Arida, que integra o grupo de transição
da economia.
"Persio disse que iria ler com atenção, que a
transição estava apenas no começo e que queria conversar. Para não parecer que
estamos colocando carroça na frente dos cavalos, preciso dizer que a proposta é
um exercício intelectual que fazemos há anos", afirmou. "Agora, com
outros economistas e gente do direito financeiro, estamos tentando bolar algo
razoável para não perder mais uma oportunidade de fazer mudanças que vão além do apagar
incêndios."
Segundo Salto, o teto já não existe, depois de o ministro da Economia, Paulo Guedes, aprovar sucessivas licenças para gastar acima do teto nos anos de 2020, 2021 e 2022.
"É óbvio que você não pode dar um cavalo de pau
nas regras fiscais, mas é preciso entender que nesse aspecto não tem nada de
novo em 2023", diz ele. "É mais um ano em que você vai precisar de
licença constitucional para furar o teto, com todo o custo político de negociar
uma nova PEC [Proposta de Emenda à Constituição].
O economista confirma que foi sondado para integrar o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). "Fico muito honrado porque recebi duas abordagens. Numa delas, Alckmin me sondou para saber se tenho interesse. Não houve convite", afirmou.
Estamos acompanhando o périplo do governo eleito na tentativa de fazer uma PEC para a transição, o que basicamente significa abrir espaço no Orçamento para elevar o gasto. É preciso mesmo elevar os gastos? Qual é a situação das finanças federais quando se observa a peça orçamentária que está no Congresso?
O primeiro ponto a destacar é que, sim, é necessário
uma espécie de licença para um gasto superior ao previsto no teto, que está em
R$ 1,8 trilhão. Se a gente ajustar esse teto previsto à estimativa mais recente
de IPCA, ele fica ainda mais baixo em cerca de R$ 15 bilhões a R$ 17 bilhões.
Mas, além da restrição, você tem uma série de gastos que foram prometidos ao longo da campanha, e
muitos deles são meritórios. Tanto é assim que os dois lados tocaram
nessa questão de aumentar o gasto social, que tem relação com Auxílio Brasil e
o auxílio para crianças de até seis anos. Todo esse contexto é uma justificativa
para obter uma licença para gastar.
A segunda justificativa é que no período de 2020,
2021 e 2022 ocorreu um gigantesco waiver [dispensa para cumprir a regra
fiscal]. No ano da pandemia, 2020, foram R$ 520,6 bilhões. Em 2021, R$ 114,2
bilhões, e em 2022, 155,4 bilhões. Tudo isso foi gasto acima do teto. A regra
do teto, na verdade, já não existe mais. Quem acabou com ela chama-se Paulo Guedes, com uma série
de emendas à Constituição, as 109, 113, 114 e a 123.
Na prática, o teto como foi concebido lá em 2016 já
não existe mais. É óbvio que você não pode dar um cavalo de pau nas regras
fiscais, mas é preciso entender que nesse aspecto não tem nada de novo em 2023.
É mais um ano em que você vai precisar de licença constitucional para furar o
teto, com todo o custo político de negociar uma nova PEC.
A gente até pode falar depois, mas, como economista,
pensei em uma proposta de emenda à Constituição para tratar do fiscal. É uma
colaboração intelectual para esse debate, com base no que venho estudando todos
esses anos. Inclusive, já mandei a primeira minuta para Geraldo Alckmin e
Persio Arida, que são as pessoas com quem tenho mais contato.
Mas qual é a proposta?
Posso até enviar o texto. Josué Pellegrini, que foi
da IFI [Instituição Fiscal Independente], está
ajudando a escrever. Com essa proposta, pensamos, em primeiro lugar, conseguir
autorizar o gasto extra do ano que vem —e restrito ao ano que vem. Seriam algo
como R$ 120 bilhões, podendo ser um pouco mais ou um pouco menos.
A grande coisa é mudar o foco do arcabouço fiscal
para o limite da dívida. José Serra coordenou o grupo de finanças públicas da
Assembleia Nacional Constituinte. Se pegar todas as discussões —e isso está
registrado— vai ver que o espírito dos artigos 48 e 52 já indicava que é
importante limitar a dívida. Mas isso nunca foi regulamentado para o caso da
União, apenas para estados e municípios.
Quer dizer que estamos defendendo um limite fixo para dívida? Não. Estamos
defendendo um limite tendencial. Essa palavra é importante. Ninguém consegue
controlar todos os fatores que afetam a dívida, como a taxa de juros, o Produto
Interno Bruto ou mesmo a projeção de receita. A variável que está mais sob o
controle do governo é o gasto, e por isso o teto pode ser um instrumento à mão,
só que até a página dois.
A rigidez orçamentária no âmbito federal é de algo como
93,6%, ou seja, não tem muito espaço de manobra. A prova do
pudim que essa coisa deu errada são os quatro anos de estouro do teto com
necessidade de mudança na Constituição
Então, propomos o limite para a dívida com meta de
superávit primário, calculada com base na trajetória da dívida. Não vai sair
mais da cachola de alguém esse número que vai para a LDO [Lei de Diretrizes
Orçamentárias].
Tem ainda uma terceira perna que é um teto de gastos
diferentes. Ele será uma decorrência dessa trajetória da dívida e desse
resultado primário.
Quando o teto estava sendo elaborado, o sr. fez ponderações críticas ao mecanismo. Qual a diferença dessa proposta?
É importante dizer que tudo é aprendizado. Na
democracia, temos mudanças incrementais. Não dá para exigir regra fiscal
perfeita. O teto teve a sua importância. Permitiu a redução no custo da dívida
e reorganizou as expectativas dos agentes de mercado.
Mas, ainda em 2016, publiquei um artigo com José
Roberto Afonso mostrando que o teto estava mal desenhado, em que pese que ambos
somos a favor de uma regra de controle do gasto. Agora, temos a oportunidade de
melhorar isso
A vantagem da proposta é que você reorienta a
política fiscal para aquilo que realmente importa, que é trajetória da dívida,
e evita ter uma política fiscal excessivamente contracionista. Às vezes, o PIB
cresce mais ou você faz medidas de ajustes que abrem espaço fiscal, então há
possibilidade de aumentar o investimento. Hoje, o teto de gastos não permite
isso.
E não adianta apenas voltar para a sistemática de
meta de resultado primário, que foi instituída por Pedro Malan, em 1999, no bojo do acordo com o
FMI [Fundo Monetário Internacional].
A meta de primário é pró-cíclica, ou seja, significa
que, quando a receita sobe, eu posso gastar mais. Isso não é necessariamente
bom. Eu preciso de algum mecanismo que me permita ter controle permanente da
despesa pública, sem que seja draconiana como o teto original, mas que exerça
algum controle.
Daí vem a cereja do bolo da nossa proposta: a
criação de um fundo de reserva fiscal. Toda a vez que a receita superar aquela
meta de primário para que a dívida atinja determinada tendência, o excedente
vai para o fundo. Não vai ser gasto. E esse fundo vai ser destinado a
investimentos selecionados por um comitê, que até poderá ter integrantes do
parlamento, mas vai reunir principalmente gente do Executivo.
Mas como vai funcionar isso, até porque excesso de arrecadação é algo que tem sido raro, não?
Vou dar um exemplo numérico, A dívida bruta do
governo geral está em 78% e provavelmente vai subir para casa de 80%. Qual é o
resultado primário necessário para mantê-la em 80%?
Para responder a essa pergunta, eu preciso saber
quanto vai ser o crescimento —suponha que seja de 1%— e qual vai ser o juro
real —suponha que 5%. Bom, para estabilizar a dívida, eu preciso de um
superávit primário de 3,2% do PIB. Eu não vou conseguir isso da noite para o
dia, OK?
Mas 3,2% é o número que vai aparecer na LDO [Lei de
Diretrizes Orçamentárias] e na PLOA. É o superávit primário necessário para
manter a dívida no patamar calculado. Vamos supor que a gente consiga um
primário de 4%. É essa diferença de 0,8% vai para o fundo. Uma lei complementar
pode ajudar a estabelecer como o fundo vai ser utilizado.
Arida e Alckmin deram algum retorno?
Persio disse que iria ler com atenção, que a transição estava apenas no começo e que
queria conversar. Para não parecer que estamos colocando carroça na frente dos
cavalos, preciso reforçar que a proposta é um exercício intelectual que fazemos
há anos. Agora, com outros economistas e gente do direito financeiro, estamos
tentando bolar algo razoável para não perder mais uma oportunidade de fazer
mudanças que vão além do apagar incêndios. O waiver é apagar incêndio, mas é
preciso ir além.
Temos um clima de mudança, com todo mundo querendo
colaborar. Acho inédito na história recente ter de Arminio Fraga a Guilherme
Boulos querendo colaborar com um governo. O cardápio que o presidente eleito
tem para escolher é muito eclético, o que é bom.
Mas nesta quinta (10), a cotação da Bolsa despencou e a do dólar saltou por causa da transição e do discurso do Lula. Como sr. viu isso?
O mercado sempre exagera. A reação precisa ser
relativizada. Não dá para se guiar por isso, e é preciso ter cuidado para
avaliar essas reações da Bolsa e do dólar, que são até naturais agora. Os
anúncios da transição estão no começo. O essencial é que a diretriz seja clara, o que, a meu
ver, será dada nas próximas semanas.
O seu nome apareceu nas bolsas de aposta para assumir cargo no próximo governo. O sr. foi procurado, recebeu convite?
Fico muito honrado porque recebi duas abordagens.
Numa delas, Alckmin me sondou para saber se tenho interesse. Não houve convite.
Minha ligação com o PSDB veio com José Serra, depois Tasso Jereissati e
Alckmin, que admiro muito. Antes de vir para a Secretaria da Fazenda me
aconselhei com Alckmin, e ele recomendou que eu viesse.
Qual é o seu balanço da gestão do governo Bolsonaro na economia?
É preciso reconhecer que não foi irresponsável, mas deixou a desejar.
Vai terminar com a dívida abaixo de 80%. Ninguém previu isso, mas porque
ninguém também imaginava que o Banco Central ia acabar aceitando inflação alta
por muito tempo, e manter a taxa juros baixa por muito tempo. Isso explodiu. O
Banco Central teve de subir juros como se não houvesse amanhã. Essa pressão vai
aparecer no ano que vem.
Mas enquanto a inflação ficou alta, ajudou a
turbinar a receita e o PIB, e a dívida PIB ficou num patamar abaixo do que se
previa. Não houve nada de estrutural nesse governo que está acabando. Pelo
contrário, como já disse, furou o teto várias vezes.
A gestão tirou nota 5, e ainda deixou herança ruim
para o próximo governo, uma trajetória crescente da dívida. Pergunta para
qualquer um que acompanha contas públicas. Mansueto Almeida, José Roberto
Afonso, Maílson da Nóbrega.
Eu já vejo uma crítica absurda do mercado de que a
dívida vai crescer. A dívida vai crescer em qualquer cenário. Se o papa tivesse
sido eleito presidente do Brasil e indicasse Alan Greenspan para ministro da
Fazenda, a dívida cresceria. A razão é óbvia: a taxa de juros está em 14%. O custo real
da dívida hoje está em 8%. Não há Cristo que aguente.
O sr. e a sua equipe vão encerrar uma gestão de quase 30 anos de PSDB à frente do governo de São Paulo. Como estão entregando a casa para esse novo ciclo?
Modéstia à parte, vamos entregar uma casa muito bem
arrumada. A responsabilidade fiscal foi permanente nesses anos.
Havia uma frase famosa do Orestes Quércia, que foi
documentada: "Eu quebrei o Banespa, mas elegi meu sucessor", no
caso, Luiz Antônio Fleury Filho. É uma frase muito representativa porque, de
fato, quebrou não apenas o banco, mas todo o estado.
Quando o governador Mario Covas assumiu, em 1995,
não tinha nem dinheiro para abastecer as viaturas da polícia. O secretário de
Fazenda escolhido na época, o professor Yoshiaki Nakano, fez ajustes no
Orçamento, por dois ou três anos seguidos, de 30% linear, tamanha a gordura que
havia nos gastos de custeio e em contratos superfaturados.
Quando fez 20 anos da morte de Covas, eu escrevi um
artigo com Guilherme Tinoco, onde mostramos, com números, como aquele ajuste elevou o patamar de investimento do
estado. Covas quase não se reelegeu, mas conseguiu mostrar na campanha com
clareza como o ajuste fiscal se transformou em benefício para a população.
Ele permitiu o aumento do gasto social. Foi naquela
época que surgiram programas que até agora são bandeiras do estado, como o
Poupatempo e o Banco do Povo, para ficar em dois exemplos.
Claro que, de lá para cá, ocorreram momentos
melhores e piores, mas nunca o estado de São Paulo ficou numa situação ruim.
Recentemente, São Paulo foi como a fábula da
formiga. Durante o inverno a gente fez o dever de casa, o ajuste fiscal na
pandemia, que todo mundo criticou. Só que, agora, a gente vai terminar o ano
com caixa R$ 33 bilhões e a menor dívida da história, 114% da Receita Corrente
Líquida.
O nível de investimento só se compara ao período de
José Serra, de 2007 a 2010. No biênio 2021-2022, são cerca de R$ 50 bilhões.
Você sabe quanto a União prevê investir no ano que vem por esse PLOA (Projeto
de Lei Orçamentária Anual) que agora está sendo discutido? R$ 22,4 bilhões.
Isso mostra que o estado não apenas tem
responsabilidade fiscal como direciona isso para resultados efetivos, como
aumento do investimento e do gasto social. Aqui em São Paulo temos um
guarda-chuva de programas, a Bolsa do Povo, que tem vários sub programas, como
o vale gás, que foi majorado.
Dentro do Programa de Ajuste Fiscal, que renegociou
dívidas, São Paulo tirou nota 10. O Tesouro avisou que o estado vai ter R$ 14
bilhões de espaço fiscal no ano que vem. Estamos deixando contratados um
aumento 40% da malha metroferroviária.
É importante dizer que ser secretário foi o trabalho
mais fascinante que eu pude fazer na minha vida até esse momento. Entregamos
uma série de coisas.
A Resolução 51, que dá transparência para o processo
de concessão de benefícios tributários, uma demanda antiga do Tribunal de
Contas que resolvemos. A regulamentação do programa Nos Conformes. Aumentamos
em 50% a liberação de crédito de ICMS. Estava
previsto R$ 1 bilhão e vai terminar o ano em mais de R$ 1,5 bilhão.
Também tiramos do papel o sistema de custos, demanda
antiga do FMI e do Banco Mundial. Temos prontas avaliações do custo detalhado
por escola. Se eu quiser pegar uma escola aqui na rua, tenho condição de saber
a composição do custo dela e comparar com o seu Ideb [Índice de Desenvolvimento
da Educação Básica], e identificar isso em todas as escolas. Bom, foram muitas
coisas. O governador Rodrigo Garcia vai deixar uma herança bendita para o eleito Tarcísio de Freitas.
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