Folha de S. Paulo
As incertezas estão na disputa
intragovernamental para responder ao problema
A julgar pelo número de iniciativas
apresentadas pelo governo nos seus dois primeiros meses, as comunicações
mediadas por plataformas
e ambientes digitais são vistas como um dos grandes problemas sociais.
Por "comunicação" entendo, aqui, a conversa pública, a produção e
disseminação de opiniões, interpretações e relatos sobre assuntos de interesse
comum e o debate político em ambientes digitais.
A ascensão do trumpismo em 2016, a conquista do poder pelo bolsonarismo em 2018, o assombroso crescimento da extrema direita internacional desde 2015, a tragédia de vivermos uma pandemia global numa circunstância em que essa extrema direita, com absoluto domínio de técnicas e redes digitais, conseguiu politizar e manipular o combate à doença, com as consequências catastróficas que conhecemos, mostraram a todos a face sombria da nova esfera pública baseada em arenas digitais. Ainda mais quando se constata que nos últimos anos a esquerda agora "empoderada" também aprendeu a jogar o jogo do assédio, da propagação de fake news e dos linchamentos digitais.
De todo modo, quem poderá dizer que está
errado o governo na sua percepção da gravidade da situação depois de avaliarmos
o estrago que a disseminação de fake news e teorias da conspiração, a formação
e atuação de milícias digitais, a difusão de comportamentos voltados para a
perseguição, a difamação e o assassinato de reputações provocaram em todo o
mundo, incitando ao extremismo antidemocrático, impedindo eleitores e afetados
pela pandemia de tomarem decisões bem-informadas, além de atacar deslealmente a
credibilidade da ciência, do jornalismo, da Justiça e das instituições
republicanas?
As incertezas, portanto, não estão no
reconhecimento da gravidade do problema, mas talvez nessa espécie de competição
intragovernamental para a ele responder. Os que concordam que a digitalização e
a plataformização da comunicação pública política trouxeram consigo ameaças
seríssimas à vida democrática e a valores importantes da democracia liberal
—como a tolerância, o respeito a minorias, a condução da sociedade pela busca de
consensos esclarecidos– não se sentem mais tranquilos sabendo que no Governo
Federal estão ativos neste momento nada menos que um GT no Ministério
dos Direitos Humanos e da Cidadania, um conselho no Ministério da Justiça e
Segurança Pública, uma Procuradoria de Defesa da Democracia na AGU e uma
subsecretaria de Políticas Digitais na Secom,
todos sem exceção se ocupando do "enfrentamento da desinformação",
como dizem.
Falta articulação? Na verdade parece que
são vários governos disputando uma gincana, mas o que realmente falta é um
esforço para conquistar a benevolência dos principais implicados, pois se é
fácil reconhecer o problema que se quer enfrentar, as alternativas à mesa
passam todas por mexer na liberdade de expressão. E isso em um universo, como o
das comunicações digitais, que é radicalmente avesso a regulações e
intervenções de governos desde a sua origem.
As empresas ditas de plataformas não
desejam, obviamente, serem reguladas como as empresas de mídia, das quais
querem se distinguir. As empresas de mídia, embora sejam atadas a normas desde
o seu surgimento, não querem saber de controle de conteúdo porque é do seu DNA
não só desconfiar do Estado como achar que se governos conseguirem regular
plataformas o próximo passo seria garrotear o jornalismo.
Os partidos e as organizações da sociedade
civil, por sua vez, se dividem nos seus sentimentos acerca do que fazer com as
comunicações digitais inescrupulosas: os usuários e beneficiários não querem
nem ouvir falar em "absurdos" como remoção de conteúdo, banimento de
perfis ou criminalização de publicações; os que foram objeto de processos de
satanização, destruição de imagem pública e radicalização do país por meio da
disseminação de falsidades e de outros malfeitos que só o digital permite,
querem que alguma coisa seja feita "para ontem"; os progressistas não
partidarizados, horrorizados com uma sociedade afogando em mentiras e a reboque
das máquinas de propaganda suja digital, querem providências, mas não têm
certeza se podem confiar esta tarefa, que toca numa das pedras angulares da
democracia liberal, "aos que agora estão por cima" em uma sociedade
partida ao meio, extremamente polarizada e em que a raiva e a vontade de
revanche estão na ordem do dia.
Assim, apesar da gravidade do problema e da
abundância de jogadores em campo em busca de soluções, estamos diante de um
impasse —e ele não é pequeno ou desimportante.
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
Um comentário:
O autor descreve adequadamente a situação. O futuro e as discussões sobre propostas que surjam vão nos mostrar os caminhos a serem percorridos. Certo mesmo é que não podemos deixar totalmente livres as pessoas e organizações baseadas em divulgação de mentiras e atos ilegais com finalidades de golpear ou destruir nossa Democracia.
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