sexta-feira, 7 de julho de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

PEC aprovada na Câmara é apenas o primeiro passo

O Globo

Nenhuma reforma é tão complexa, desafiadora e transformadora quanto a tributária. O trabalho mal começou

A aprovação da reforma tributária na Câmara dá um passo fundamental para a reformulação do caótico sistema de impostos brasileiro. É apenas o primeiro, porém. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45 traça um plano de transição até 2033 para a nova estrutura de tributos. Ele terá de ser seguido à risca. Fora isso, ainda há imperfeições que devem ser corrigidas.

Uma vez que a PEC esteja aprovada no Senado, o primeiro desafio será técnico. Para os dois novos impostos criados — CBS e IBS —, será necessário desenvolver um mecanismo automático de créditos, por meio do qual as empresas possam descontar do que recolherem aquilo que outras já pagaram — só o consumidor final pagará a alíquota cheia. Tais compensações precisam ser implementadas num sistema eletrônico capaz de integrar instâncias fiscais de todo o país. Não será trivial.

Com base nos dados desse sistema deverão ser estimadas as alíquotas, de modo a não elevar a carga tributária, e a distribuição dos fundos criados para ressarcir entes federativos que perderem arrecadação. Caberá a leis complementares determinar não apenas as alíquotas ao longo e ao final da transição, mas o funcionamento do Conselho Federativo que cuidará da distribuição desses fundos, por um período estipulado inicialmente em 50 anos.

O texto da PEC deixa para leis complementares tarefas fundamentais, como regras para os setores financeiro, imobiliário, de seguros, planos de saúde e loterias. Ou o critério para cobrança no destino no caso de serviços. Ou os alvos e alíquotas do imposto seletivo, criado para punir o consumo de produtos nocivos como álcool ou cigarro. Ou ainda os produtos da cesta básica, contemplada com isenção (medida injusta, pois beneficia indiscriminadamente qualquer consumidor, pobre, rico ou de classe média). Ou mesmo as regras para processos administrativos.

Para facilitar a tramitação, o texto foi infestado de exceções: saúde, educação, combustíveis, meios de transporte de todo tipo, atividades artísticas, produtos para deficientes físicos, higiene pessoal, saúde menstrual etc. Para não falar da manutenção da Zona Franca de Manaus (equívoco não apenas tributário). É fundamental, com o tempo, verificar o que se justifica. Embora alíquotas reduzidas não sejam equivalentes aos regimes especiais em vigor, para mantê-las será necessário elevar a carga dos demais setores. Privilégios de uns sempre custam para outros.

A reforma prevê apresentação, em 180 dias, de projeto para redesenhar o Imposto de Renda. Nesse momento, mais importante que discutir fetiches da esquerda, como taxação de grandes fortunas ou heranças, será extinguir privilégios inaceitáveis que persistem em regimes especiais, como lucro presumido ou Simples, garantindo impostos baixíssimos a uma elite de profissionais como médicos ou advogados.

Nenhuma reforma é tão complexa, desafiadora e transformadora quanto a dos impostos. Talvez a sociedade brasileira não se dê conta do sinal de maturidade institucional transmitido pela Câmara ao aprovar a PEC 45. Ela traça um plano que coloca o Brasil num rumo virtuoso de maior equidade tributária. Mas ele precisará ser perseguido. Ao longo do tempo, a transparência trazida pelos novos tributos deixará evidente a injustiça de exceções e regimes especiais. Se tiver a coragem de enfrentá-los, o Congresso atual mostrará ser um dos melhores de todos.

Uso de câmeras nas fardas será benéfico para polícia fluminense

O Globo

Determinação do STF contribui para maior transparência e redução da letalidade policial

Fará bem à segurança do Rio o uso de câmeras corporais pelas tropas de elite das polícias Militar e Civil, como Bope, o Batalhão de Choque e Core. O equipamento já é usado desde maio de 2022 pelos agentes fluminenses, mas as forças especiais — cujas operações costumam ser mais letais — não haviam sido incluídas no programa. Agora, por determinação do STF, também gerarão imagens de suas ações.

O uso de câmeras pelas tropas de elite sempre foi tratado como tabu no governo. Em sua primeira entrevista depois da posse neste ano, o governador Cláudio Castro (PL) disse ser “radicalmente contra” a medida e prometeu “lutar judicialmente em todas as instâncias” para barrá-la. De acordo com ele, o equipamento seria contraproducente, pois poderia revelar ao crime organizado técnicas, estratégias e armamentos, pondo em risco a vida dos agentes. Outra preocupação era a possibilidade de vazamento das imagens.

O ministro Edson Fachin, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como ADPF das Favelas, reconheceu que as câmeras podem prejudicar certas atividades de inteligência, mas argumentou que não necessariamente todas as operações das forças especiais. Diante da decisão do STF, uma resolução conjunta das polícias Civil e Militar determinará em que circunstâncias as tropas de elite poderão dispensar o equipamento e como serão feitos a gestão, o compartilhamento e os pedidos de acesso às imagens.

Ainda que as câmeras sejam dispensadas em determinadas situações, a ação da polícia fluminense ganhará transparência com a inclusão das forças especiais. Não fazia sentido instalar o equipamento em quase todos os batalhões e deixar de fora justamente aqueles que apresentam maior índice de letalidade. O argumento, legítimo, de preservar a vida dos agentes não pode servir para encobrir a truculência que marca as ações policiais no Rio.

Do ponto de vista científico, está mais que demonstrado, no mundo todo, como o uso de câmeras nas fardas é benéfico tanto para a sociedade quanto para os próprios agentes. Uma pesquisa do Unicef e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que, com a implantação do equipamento em São Paulo, a letalidade policial caiu 62,7% (de 697 mortes em 2019 para 260 em 2022). Um estudo da Fundação Getulio Vargas corrobora os ganhos para a segurança. As câmeras evitaram 104 mortes entre julho de 2021 e julho de 2022, além de levar a um aumento de 24% na apreensão de armas.

Ninguém pode ser contra maior transparência nas ações de segurança. É um equívoco achar que as câmeras restringem o trabalho da polícia. Isso só seria verdadeiro se ela sistematicamente violasse a lei. As câmeras mostrarão apenas o que acontecer, nem mais nem menos. As imagens ficarão sob gestão da própria corporação e só serão publicadas em caso de necessidade, mediante critérios para preservar privacidade e segurança. Serão de enorme valia para esclarecer fatos nebulosos em investigações da própria polícia. Não há o que temer.

Renda agrícola deve cair e desacelerar a economia

Valor Econômico

A reversão da renda agrícola deve levar os juros a caírem mais do que o previsto

O desempenho da agropecuária não só fez o PIB do primeiro trimestre crescer mais que o esperado, 2,9%, como também é um dos maiores impulsionadores do mega saldo de R$ 45,5 bilhões da balança comercial brasileira no primeiro trimestre. Mas o presidente Lula não deverá ter ventos tão favoráveis como em seu primeiro mandato, com a explosão dos preços das commodities empurrada pelo fantástico crescimento da China na primeira década do século. A renda da agropecuária, que puxa a expansão econômica, vai diminuir um pouco em 2023 e mais em 2024, quando os analistas projetam um PIB menor.

Os números da balança comercial indicam que os preços deixaram de ser favoráveis para os produtos da agropecuária no mercado externo no primeiro trimestre - a mesma coisa ocorreu também para os bens oriundos da indústria extrativa e de transformação. Os preços obtidos pelas exportações agropecuárias recuaram 3,4% no período, mas foram compensados por um aumento expressivo no volume vendido, de 15,2%. Este fator desfavorável foi ainda mais acentuado na indústria extrativa, cujas commodities tiveram preços 19,5% menores, e volume exportado de 20,2%, insuficiente para que o valor obtido com as vendas deixasse de ser negativo, de 3,4%. A indústria de transformação não teve nem avanço no volume nem em preços, registrando praticamente estabilidade no valor (0,1%).

As exportações de manufaturados estacionaram - US$ 86,6 bilhões de janeiro a junho, ante US$ 86,4 bilhões no mesmo período de 2022 - com queda nas vendas a seus principais mercados, como Estados Unidos (-1,7%) e União Europeia (-7,7%). A exceção, no caso, foi a exportação para a Argentina, que cresceu 26,5% no período. Para o resultado como um todo, as commodities, especialmente agropecuárias, contribuíram com o grosso do saldo. As vendas para China, Hong Kong e Macau e resto da Ásia (excluindo Oriente Médio) somaram 44,3% do total exportado. A China, nosso maior mercado comprador de bens primários, garantiu US$ 30 bilhões do saldo comercial do semestre (US$ 45,5 bilhões).

A previsão oficial de superávit comercial no ano é de US$ 84,7 bilhões, 28% superior ao do ano passado. A performance da agropecuária causou um choque de renda positivo de 2,4% do PIB ao ano, ou de cerca de 8% do fim de 2021 ao primeiro trimestre do ano, segundo o Bráulio Borges, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) e consultor da LCA Consultores, em estudo divulgado pela Carta do Ibre de julho (Valor, 6 de julho).

Segundo Borges, a renda total criada pelos setores de commodities no Brasil variava de 3% a 3,5% do PIB em 2019-2020, mas no período de 2021 ao primeiro trimestre de 2023 cresceu para 7,5% a 8% do PIB. O choque de renda das commodities teve magnitude semelhante ao da explosão dos preços desses bens entre 1999-2011 - no pico do ciclo, a participação delas na renda foi de 5% do PIB -, com a diferença de que agora esse efeito positivo foi concentrado em um par de anos e não deve ter continuidade, segundo o economista.

Borges calculou que o valor adicionado a preços básicos da agropecuária (equivalente ao PIB descontados os impostos) foi de 7% a 8% valor total da economia na média de 2017 a 2019 para 13,5% na média desde o fim de 2020. Em 2021, o VAPB do agro somou R$ 727 bilhões e o da indústria extrativa, R$ 454 bilhões. Seus efeitos de disseminação econômicos, porém, são distintos. A renda do setor extrativo tem um multiplicador um, ou seja, esgota-se no investimento em si e é transferido para a sociedade via lucros. No caso da renda agrícola, a cadeia de efeitos é maior assim como seu multiplicador, que é de quase dois, ou seja um impulso de R$ 1 de renda criada acrescenta quase R$ 2 na economia por meio dos negócios propiciados pelo acréscimo na cadeia de fornecedores, distribuidores, transportadores, fabricantes de insumos, contratação de mão de obra etc.

A renda gerada pelas commodities agropecuárias contou a seu favor, em 2021 e 2022, com aumento de preços e depreciação cambial, mas esses dois fatores parecem ter ficado para trás. “Boa parte do salto da renda aconteceu por preço e não por quantidade”, afirma Borges. Agora, há queda de preços, apreciação cambial e aumento dos volumes. Com isso, a renda deve se reduzir a R$ 630 bilhões este ano e R$ 625 bilhões em 2024. Com a reversão, o PIB cresceria só 0,5% no ano que vem, considerando-se apenas o comportamento da renda com commodities agrícolas.

Em outros cálculos, para outros fins, o Banco Central identifica efeitos igualmente poderosos da renda agropecuária. No relatório de inflação de junho, o Banco Central aponta que o “Valor Adicionado Bruto (VAB), excluindo-se a agropecuária, cresceu 0,1%, no primeiro trimestre, com recuo de 0,1% da indústria e avanço de 0,6% no setor de serviços”. O BC também prevê desaceleração na economia. Borges vê outras consequências: a reversão da renda agrícola deve levar os juros a caírem mais do que o previsto.

O sul da confusão

Folha de S. Paulo

Crise do Mercosul ganha novo capítulo com ameaça uruguaia e emergência argentina

Os chefes de Estado do Mercosul reuniram-se na terça (4) em Puerto Iguazú com uma boa novidade, em meio ao agravamento da crise crônica de ineficiência do bloco.

A alvíssara foi a retomada do hábito civilizado de sentarem-se à mesa os quatro presidentes das nações fundadoras —Brasil, a anfitriã Argentina, Paraguai e Uruguai. Ponto para a diplomacia de normalização empreendida pelo governante brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), após os estragos da passagem de Jair Bolsonaro (PL).

A ameaça de rompimento do Uruguai respondeu pela piora do drama que há décadas frustra a promessa de que a união aduaneira traria vantagens substanciais e crescentes aos sócios do bloco.

O presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, recusou-se a assinar o comunicado final do encontro na cidade argentina situada na Tríplice Fronteira. Ele pleiteia licença para fechar um acordo bilateral com a China, o que Brasil e Argentina enxergam como infactível, dadas as regras da associação do Mercosul.

O problema é que as duas maiores economias do bloco não oferecem resposta convincente ao argumento uruguaio de que, passados mais de 30 anos de sua fundação, o Mercosul não selou nenhum acordo relevante com outros países ou associações nacionais do planeta.

A sempre postergada aliança com a União Europeia, para materializar-se, vai precisar de um longo e incerto processo de negociações e ratificações pelos governos de cada uma das dezenas de nações envolvidas. Não está no horizonte visível o final desse longo percurso.

A própria Argentina atravessa mais um de seus cataclismos de financiamento externo periódicos, com inflação fora de controle e riscos elevadíssimos de insolvência. O presidente Alberto Fernández, às vésperas de uma eleição nacional, empenha-se em aplicar remendos que pelo menos adiem o estouro dos diques. Pede socorro ao FMI e ao governo brasileiro.

O Mercosul perdeu-se quando tentou dar um salto maior que as suas pernas. Em vez de trabalhar para consolidar o livre comércio entre os parceiros e deixá-los liberados para fazer as suas alianças externas, pretendeu tornar-se uma união aduaneira, que funciona como uma só nação na hora de negociar acordos com terceiros.

O bloco não avança, como atesta a pasmaceira de suas alianças externas, nem deixa os seus membros avançarem individualmente.

Já a retórica e as bravatas politiqueiras dentro da associação não têm limites. Enquanto os modelos econômicos de Brasil e Argentina se apartam como o óleo da água, Lula repisa a ideia de uma moeda comum no âmbito do Mercosul.

É como discutir o sexo dos anjos com bárbaros às portas da cidade.

Evoé, Zé Celso!

Folha de S. Paulo

Grande diretor sai de cena, mas deixa legado inventivo nas artes e na política

A morte de José Celso Martinez Corrêa subtrai da cena cultural brasileira uma personalidade exuberante, que permanecia inquieta e em atividade aos seus 86 anos.

Nome de enorme relevância na dramaturgia e na cultura do país, o criador do grupo Oficina era ele mesmo, em sua presença dionisíaca, a alma e a ativação das ideias estéticas e políticas que encenava com inventividade revolucionária.

Criado no final da década de 1950, com participação de nomes como Renato Borghi e Fauzi Arap, o teatro Oficina marcou época em 1967 com a apresentação de "O Rei da Vela", peça escrita pelo modernista Oswald de Andrade nos anos 1930.

Numa explosão de referências e alegorias, que iam do universo operístico ao circense, passando pelo teatro de revista, a montagem tornou-se um clássico do tropicalismo —movimento estético que eclodiu na música popular com Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Foi uma época em que a efervescência da produção cultural viu-se diante da onda autoritária que se seguiu ao golpe militar de 1964.

A encenação, sob a direção de Zé Celso, da peça "Roda Viva", em 1968, a primeira escrita por Chico Buarque, foi alvo de violentas agressões por parte de grupos da direita reacionária. O teatro já havia sido consumido por um incêndio, em 1966, que o diretor atribuiu a apoiadores do regime.

Com a promulgação do AI-5, em dezembro de 1968, e o endurecimento da repressão política, as prisões se sucederam e muitos foram forçados ao exílio.

Foi o caso do diretor, que, após ser preso e torturado por agentes da ditadura, deixou o país em 1974 para viver em Portugal. No período de desterro, realizou o filme "25", com Celso Lucas, sobre a independência de Moçambique e questões relativas ao futuro pós-colonial.

De volta ao Brasil, em 1978, retomou as atividades do Oficina, renovou suas experiências teatrais e esteve sempre presente na vida artística e política do país.

O diretor deixa um legado que se ressentirá de sua animação vital, mas que permanecerá na história e na atuação de gerações de artistas, encenadores e admiradores que ele formou e influenciou ao longo de décadas.

O prédio do Oficina, com projeto da arquiteta Lina Bo Bardi, ganhou reconhecimento internacional e será mantido como patrimônio arquitetônico e cultural tombado pelo estado e pela cidade de São Paulo. Evoé, Zé Celso!

O dever de regular as redes sociais

O Estado de S. Paulo

Lobby das big techs é parte da vida democrática, mas não pode impedir o Congresso de fazer seu trabalho: o País continua necessitado de uma adequada regulação das redes sociais

O Estadão relatou como o Google e a Meta – dona do Facebook, WhatsApp e Instagram – atuaram junto aos parlamentares para que o Projeto de Lei (PL) 2.630/2020, o PL das Fake News, fosse retirado da pauta de votação da Câmara. Especialmente intenso durante duas semanas, o lobby das empresas de tecnologia surtiu efeito. Segundo o jornal, ao menos 33 deputados mudaram de posicionamento entre a aprovação do requerimento de urgência do PL 2.630/2020, no dia 19 de abril, e a retirada de pauta, no dia 2 de maio.

A mobilização política promovida pelas big techs em torno ao PL das Fake News despertou controvérsias. Para o presidente da Câmara, Arthur Lira, ela ultrapassou “os limites do contraditório democrático”. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), chegou a estabelecer, por liminar, o que o Google e outras empresas poderiam dizer sobre o projeto de lei, o que representou evidente abuso. No Estado Democrático de Direito, juiz não é árbitro do debate público. Por sua vez, a Polícia Federal abriu investigação para apurar a conduta do Google no caso. Segundo Marcelo Oliveira Lacerda, diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas do Google, a empresa gastou R$ 2 milhões na campanha contra o projeto.

Se há indícios de alguma ilegalidade, é necessário, por óbvio, apurá-los. De toda forma, faz parte do jogo democrático o lobby de empresas, organizações da sociedade civil e grupos de interesse. Da mesma forma, também faz parte da vida legislativa – portanto, não deve ser motivo de escândalo – que um projeto de lei seja retirado de pauta, em razão de algum tipo de pressão. E o mesmo se deve dizer da mudança de posicionamento de parlamentares em relação ao PL 2.630/2020. É assim que o regime democrático funciona.

Mais do que uma deficiência em si, os efeitos do lobby das big techs sobre a tramitação do PL das Fake News revelam um Congresso permeável às influências da sociedade civil, o que, a princípio, é positivo. O Legislativo não pode ser indiferente à sociedade. Outra questão se refere ao modo como essa pressão sobre o Congresso é feita. Certamente não é positivo para o regime democrático que o debate público seja tomado por desinformação, suscitando falsos e desproporcionais medos na população. Nesse caso, em vez de liberdade, haveria manipulação e dominação.

Não existem respostas fáceis para essas tensões. Há, no entanto, alguns princípios fundadores que não podem ser esquecidos. Há liberdade de expressão no País. Um juiz não tem competência para arbitrar o que pode ser dito no debate público. Por outro lado, a convivência social pacífica – o que inclui o exercício das liberdades individuais – demanda um mínimo de regulação jurídica. Demanda a lei.

A própria trajetória da tramitação do PL das Fake News ilustra a necessidade de um marco regulatório adequado para as redes sociais. Não para autorizar que o ministro Alexandre de Moraes faça o que fez – o que é inconstitucional –, mas para proporcionar um ambiente em que os direitos de todos sejam respeitados, sem a prevalência do poder de alguns sobre todos os demais. A ausência de normas jurídicas adequadas impede a devida responsabilização, com a vigência da lei do mais forte.

Em artigo no Estadão (‘Fake news’, censura e anonimato, de 2/6/2023), Afranio Affonso Ferreira Neto advertiu que o cenário atual das redes sociais, sem a devida identificação dos usuários, constitui “a irresponsabilidade do descarado e lucrativo anonimato”, o que contraria a Constituição. “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, diz o art. 5.º, IV.

É necessário retomar a tramitação do projeto de lei sobre a regulação das redes sociais. O lobby faz parte da vida democrática. Mas não faz parte da vida democrática que o Congresso, órgão por excelência da representação popular, fique refém de algum lobby. A retirada de pauta do PL 2.630/2020 não pode significar o abandono do projeto. O País continua carente de um marco adequado. O Congresso tem uma tarefa importante a cumprir.

O atraso à espreita

O Estado de S. Paulo

Nova política de compras governamentais repete velha fórmula de proteger a indústria nacional a título de gerar empregos. Só funcionará agora se não desestimular a competitividade

O governo Lula da Silva pretende criar um comitê interministerial para discutir a política de compras públicas. O grupo terá a missão de discutir as regras para aquisição de produtos e serviços nas contratações da nova edição do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). As atividades da comissão também estarão ligadas à política de reindustrialização a ser lançada pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic), ou “neoindustrialização”, como diz o vice-presidente Geraldo Alckmin.

Até aí, pode-se dizer que o governo não inovou. Há dois anos, sob a presidência de Joe Biden, os Estados Unidos lançaram o programa “Buy American”. Iniciativas semelhantes já foram executadas muitas vezes por governos republicanos e democratas. Tais políticas podem causar impactos relevantes na economia e na geração de empregos e, por essa razão, são acompanhadas com lupa por outros países, pelo temor de que elas sejam usadas como desculpa para a adoção de medidas protecionistas.

No caso brasileiro, os antecedentes não são muito abonadores. Comissão semelhante foi criada em 2011, durante a administração Dilma Rousseff. À época, o mecanismo era chamado de “margem de preferência” e permitia ao governo pagar até 25% a mais por produtos e serviços nacionais nas licitações públicas – sob a justificativa de elevar investimentos, aumentar a competitividade, gerar empregos, incentivar a inovação tecnológica e privilegiar setores com capacidade de trazer dinamismo à economia.

Como costumamos alertar neste espaço, mais importante do que uma boa ideia é sua implementação, sobretudo em se tratando de políticas públicas. Em outras palavras: de boas intenções, o inferno está cheio. Em 2011, por meio desse instrumento, o País aceitou pagar 20% a mais nas compras de confecções e calçados produzidos localmente, aí incluídos tênis, bonés e boinas militares. Como bem se sabe, tal política foi incapaz de trazer dinamismo à indústria de transformação.

O comitê interministerial de compras públicas deixou de existir em 2020, por meio de um dos “revogaços” adotados pelo governo Jair Bolsonaro. O decreto que recriará o grupo ainda não foi publicado, mas, segundo o Estadão, prevê assentos para os ministros do Mdic, da Casa Civil, da Fazenda, da Ciência e Tecnologia e da Gestão, além da presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Os membros do comitê, ainda de acordo com a reportagem, poderão sugerir políticas de incentivo a setores específicos, via crédito ou subsídio.

Eis aqui o maior desafio ao sucesso desse tipo de política. Uma coisa é definir os princípios do programa e, com base neles, selecionar setores, produtos e serviços que nele se enquadram.

Outra é selecionar os setores, produtos e serviços previamente para só depois definir os princípios do mecanismo – mesmo tipo de pensamento que esteve por trás da fracassada política dos “campeões nacionais”, que irrigou empresas com crédito barato do BNDES à custa do Tesouro Nacional.

Uma vez que a decisão de resgatar o comitê já foi tomada pelo governo, espera-se que desta vez os trabalhos sejam norteados por diretrizes capazes de modernizar a indústria e aumentar sua produtividade, mas principalmente resultar em reais benefícios à sociedade. Entre os eixos que podem ser alvo da política, segundo a reportagem, está a saúde. De fato, as dificuldades que o País enfrentou ao longo da pandemia seriam ainda maiores não fossem a Fiocruz e o Instituto Butantan. A depender da forma como isso seria feito, ampliar a autonomia na fabricação de vacinas pode ser algo defensável.

O risco está em usar essa política para restringir ainda mais as importações e proteger setores pouco competitivos drenando recursos públicos. Isso seria repetir o passado, quando tudo que o País precisa é olhar para o futuro, inspirar-se nas experiências bem-sucedidas de um agronegócio cada vez mais eficiente e competitivo e considerar as oportunidades criadas pela transição energética, uma agenda que o Brasil tem plena condição de liderar.

Maduro, o candidato único

O Estado de S. Paulo

Como sempre, o ditador venezuelano alija da disputa eleitoral seu mais forte opositor

A Controladoria-Geral da Venezuela, órgão de controle fiscal do governo de Nicolás Maduro, tornou inelegível, no fim do mês passado, a ex-deputada María Corina Machado, pré-candidata da oposição às eleições presidenciais do ano que vem.

Já se tornou uma tradição: sempre que aparece um opositor com alguma chance de desafiar sua permanência no poder, Maduro põe para funcionar sua formidável máquina autoritária para inviabilizar a ousadia. Assim, a eleição venezuelana não passa de uma farsa, encenada apenas para dar verniz de legitimidade à tirania chavista.

A inelegibilidade de María Corina, a voz mais radical da oposição venezuelana, deu-se sob o argumento de que houve irregularidades em seu mandato como deputada. Não houve processo, nem administrativo nem judicial, no qual lhe fosse garantido amplo direito de defesa. O que se viu foi apenas a determinação de um órgão fiscal do Executivo.

Quinze dias antes, todos os integrantes do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), responsável por organizar as eleições primárias da oposição, renunciaram, sem maiores explicações. A rigor, o CNE está desfeito sem haver clareza sobre sua renovação a tempo de supervisionar a escolha do candidato de oposição.

Sem o comando do CNE, a Plataforma Unitária, composta pelos partidos de oposição, declarou-se empenhada em realizar as primárias de qualquer maneira. Não é preciso ser catedrático em política bolivariana para entender a tática de Maduro de deslegitimar o resultado das primárias – ainda mais se o nome escolhido for considerado inelegível por seu regime – ou de competir contra um opositor de menor envergadura.

Por ter se dado num regime de exceção, a condenação a María Corina nada teve de excepcional. Nos últimos anos, três outros expoentes da oposição foram declarados inelegíveis: Henrique Capriles, Freddy Superlano e Juan Guaidó, hoje autoexilado nos Estados Unidos. O histórico de eleições no país desde a ascensão de Maduro ao poder, há dez anos, reduz a expectativa, já bastante diminuta, de que o pleito de 2024 não seja eivado de fraudes. Inúmeros exemplos dessas práticas foram observados na reeleição de Maduro, em 2018, por organismos internacionais e pelo Observatório Eleitoral Venezuelano.

A arquitetura autoritária construída por Hugo Chávez, reforçada por seu pupilo Maduro, favorece esse cenário, tornando a fraude uma consequência natural. Há tempos o Legislativo, o Judiciário e a imprensa perderam sua autonomia para se tornarem braços do regime. Já o aparato de repressão do Estado, inclusive as milícias paramilitares, certamente estará ativo ao longo do processo eleitoral, como já se viu em todas as votações anteriores sob o chavismo.

Ou seja, nada de novo na Venezuela chavista. Não há contorcionismo retórico nem teoria da relatividade imoral que impeçam o mundo de ver o que só fanáticos ou desonestos dizem não enxergar: que a “democracia” venezuelana não existe senão como fachada para a tirania de Maduro, cuja máquina ditatorial é programada para matar, no nascedouro, qualquer chance de a oposição desafiar seu poder.

Robôs como suporte à saúde

Correio Braziliense

Um recente estudo feito pela Jama Medicina Interna, com pacientes atendidos por médicos humanos e pela ferramenta GPT, mostrou a agilidade e a acurácia das máquinas ao fazer diagnósticos médicos

Na maioria dos países que vivenciaram a pandemia da covid-19, a relação de dependência das pessoas com a tecnologia cresceu em ritmo exponencial, especialmente nos dois primeiros anos — 2020/2021 —, quando o isolamento social tornou-se premissa para evitar a disseminação da doença.

Assim como as autoridades e os profissionais em saúde foram postos à prova, com equipes na linha de frente, tentando suspender a avalanche de mortes que se somavam em vários estados brasileiros, foram intensificados também múltiplos usos da tecnologia, a exemplo da telemedicina e do aperfeiçoamento da Inteligência Artificial (IA). ChatGPT, Bard, Perplexity AI, Wechat, enfim, a chamada IA Generativa — tipo de sistema de IA capaz de gerar texto, imagens ou outras linguagens em resposta a solicitações de usuários — passa por uma revolução com a criação de novos conteúdos, de forma rápida e assertiva, inclusive na área de saúde.

Um recente estudo feito pela Jama Medicina Interna, com pacientes atendidos por médicos humanos e pela ferramenta GPT, mostrou a agilidade e a acurácia das máquinas ao fazer diagnósticos médicos. Embora não soubessem que estavam conversando com uma IA, 80% das pessoas preferiram o atendimento feito pelo robô.

Recentemente, o Google anunciou a evolução de sua plataforma de Inteligência Artificial e seu próprio modelo de linguagem, o PaLM (para concorrer com o GPT, da OpenAI, e com o LlaMA, da Meta). A empresa global ressaltou que, entre as várias áreas que estão usando, existe uma específica para o atendimento médico: o Med-PaLM-2, que passou com excelência no exame de proficiência americano. A ferramenta foi testada por médicos especialistas e é capaz de ler exames (inclusive de raio-X), resumir conceitos e elaborar relatórios médicos. Além disso, a inteligência artificial permite a utilização das técnicas de machine learning e redes neurais, as quais possibilitam a leitura de exames de imagem, como raio-X e ressonância magnética, e a leitura de exames como o ecocardiograma.

Na saúde, a IA funciona como uma enciclopédia. Existe uma base de dados com grande parte de diagnósticos feitos em determinado hospital e que estejam registrados em sistema, detalhando o histórico dos pacientes. Esses dados são cruzados de livros de medicina, de todo o Catálogo Internacional de Doenças. Assim, a IA reconhece e identifica sinais, sintomas e exames e, a partir daí, recomenda o diagnóstico mais provável.

Um dos principais ganhos na aplicação da IA na saúde refere-se à chamada personalização em escala, ou seja, a possibilidade de prestar um atendimento personalizado, com qualidade, para uma grande quantidade de pessoas. Mas o detalhe é que nem mesmo quem criou esses aparatos tecnológicos tem certeza de onde tudo isso vai parar. Prova disso é que, em maio, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu um alerta de que é preciso muita cautela ao usar as novas linguagens em busca de diagnósticos e tratamentos.

Antes mesmo de pensarmos na capacidade de um robô fazer um diagnóstico médico e, além disso, ser responsabilizado por isso, é imperativo pensar na IA como um apoio na produtividade, na realização do pré-diagnóstico, de forma que ajude o profissional de saúde, o qual deve ser responsável e sempre checar todas as informações passadas pela máquina antes de realizar um atendimento.

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