Eu & / Valor Econômico
O tempo todo, desde a posse do então
presidente, um poder invisível se mostrou por trás das irracionalidades do seu
modo de governar, do qual foi protagonista eventual
Em dias recentes, por maioria de votos, “o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) declarou a inelegibilidade do ex-presidente
da República Jair Bolsonaro por oito anos (...) pela prática de abuso de poder político
e uso indevido dos meios de comunicação durante reunião realizada no Palácio da
Alvorada com embaixadores estrangeiros no dia 18 de julho” de 2022. O caso foi
suscitado pelo PDT.
Em seu relatório, o juiz relator, ministro
Benedito Gonçalves, ressaltou conexões do ato do primeiro investigado que
configuram “conduta ilícita em benefício de sua candidatura à reeleição”.
Eleição tem regras. O candidato não é o fulano, mas a personificação do que na
lei o candidato pode ser.
Pode-se dizer que o conjunto dos indicadores que levaram à decisão do TSE expõe o sentido antidemocrático de extenso conjunto de posturas e ações não só do primeiro investigado. Mas, em interpretação sociológica, de sua personificação do difuso coletivo de inspiração autoritária de que foi e tem sido ele agente e porta-voz.
O tempo todo, desde sua posse como
governante, um poder invisível se mostrou por trás das irracionalidades do seu
modo de governar. Do qual ele foi protagonista eventual e malsucedido.
O grande problema nos sistemas políticos
suscetíveis a manipulação, como aconteceu no período governamental recente, é
que os seus reais sujeitos ocultam-se na invisibilidade de que carecem para
falar e agir através de quem se preste a representá-los. Quando acontece do
protagonista visível ser acusado e julgado, os invisíveis não têm a
materialidade que os arraste à barra dos tribunais para que respondam pelo
ilícito como coadjuvantes e mesmo como coautores.
Justamente por isso, nem bem terminara a
longa sessão do Tribunal, já se moviam os pescadores de águas turvas para
encontrar a figura substituta que ocupe o lugar do banido e tentar colher os
frutos políticos da mentira, do engano proposital, dos falsos conceitos, da
estigmatização dos adversários para fazer da próxima eleição presidencial a
falcatrua que restaure essa modalidade de poder.
No marco do que é próprio do contexto e das
leis aplicáveis no caso, o julgamento do TSE tratou do que era tópico da
conjuntura política. Mas não foi chamado a tratar das invisibilidades do caso, que
em suas consequências e desdobramentos, esse mesmo julgamento acabará
mostrando.
O voto de um dos ministros foi revelador de
quanto o nosso direito eleitoral pode conter o direito e o avesso que deixam
para um imaginário político alternativo as bases de nossas incertezas nas
questões do poder. O que deveria ser reto e simples acaba se tornando
complicado e barroco nos retorcimentos de possibilidades de interpretação das
leis e da própria Constituição de 1988.
Aquele duvidoso artigo 242 tem reinado nos
dilemas de interpretação como uma concreta e indevida ameaça anticonstitucional
e antidemocrática no corpo da lei maior. Indício, nela, de uma cultura política
de ressalvas para relativizar e mesmo anular os valores e princípios na
Constituição contidos.
Expressão dessa cultura impugnativa foi o
fato de que antes mesmo do TSE ter finalizado a votação da inelegibilidade do
primeiro investigado, já na Câmara dos Deputados mais de 60 parlamentares se
movimentavam no sentido de propor a anistia política do eventual condenado. O
Estado brasileiro repousa sobre o tripé de Executivo, Legislativo e Judiciário.
Essa iniciativa é tão golpista quanto a que
o TSE estava julgando naquele mesmo momento. Uma ação para propor e
instrumentalizar ato de um dos poderes e anular a função e a legitimidade de
outro poder, antes mesmo delas se configurarem. O que, de fato, indica que o
crime julgado pelo TSE não estava concluído, mas era crime em andamento, cujos
cúmplices não eram apenas os invisíveis a que aludi, mas tem nome, endereço e
posição na estrutura de poder.
Aparentemente, o Estado brasileiro corre o
risco de sua conversão funcional de instituição baseada não no princípio da
representação política, mas num sistema de cumplicidades antidemocráticas, que
expressam não a vontade do povo, mas a de minorias obscurantistas.
Uma característica que perdura desde tempos
recuados, desde a Proclamação da República por meio de um golpe de Estado
antirrepublicano e antidemocrático. Tudo mudou na história republicana
brasileira para que tudo permaneça na mesma, como na Sicília de Lampedusa, como
sugere Tancredi ao tio, em “O leopardo”.
O julgamento do TSE, nessa perspectiva, é o
julgamento e condenação de uma das peças desse bloqueio. A sentença
condenatória do primeiro investigado condena o arcaísmo que ele representa, não
só antidemocrático, mas também antipolítico.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
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