sexta-feira, 7 de julho de 2023

José de Souza Martins* - O réu invisível não foi julgado

Eu & / Valor Econômico

O tempo todo, desde a posse do então presidente, um poder invisível se mostrou por trás das irracionalidades do seu modo de governar, do qual foi protagonista eventual

Em dias recentes, por maioria de votos, “o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) declarou a inelegibilidade do ex-presidente da República Jair Bolsonaro por oito anos (...) pela prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação durante reunião realizada no Palácio da Alvorada com embaixadores estrangeiros no dia 18 de julho” de 2022. O caso foi suscitado pelo PDT.

Em seu relatório, o juiz relator, ministro Benedito Gonçalves, ressaltou conexões do ato do primeiro investigado que configuram “conduta ilícita em benefício de sua candidatura à reeleição”. Eleição tem regras. O candidato não é o fulano, mas a personificação do que na lei o candidato pode ser.

Pode-se dizer que o conjunto dos indicadores que levaram à decisão do TSE expõe o sentido antidemocrático de extenso conjunto de posturas e ações não só do primeiro investigado. Mas, em interpretação sociológica, de sua personificação do difuso coletivo de inspiração autoritária de que foi e tem sido ele agente e porta-voz.

O tempo todo, desde sua posse como governante, um poder invisível se mostrou por trás das irracionalidades do seu modo de governar. Do qual ele foi protagonista eventual e malsucedido.

O grande problema nos sistemas políticos suscetíveis a manipulação, como aconteceu no período governamental recente, é que os seus reais sujeitos ocultam-se na invisibilidade de que carecem para falar e agir através de quem se preste a representá-los. Quando acontece do protagonista visível ser acusado e julgado, os invisíveis não têm a materialidade que os arraste à barra dos tribunais para que respondam pelo ilícito como coadjuvantes e mesmo como coautores.

Justamente por isso, nem bem terminara a longa sessão do Tribunal, já se moviam os pescadores de águas turvas para encontrar a figura substituta que ocupe o lugar do banido e tentar colher os frutos políticos da mentira, do engano proposital, dos falsos conceitos, da estigmatização dos adversários para fazer da próxima eleição presidencial a falcatrua que restaure essa modalidade de poder.

No marco do que é próprio do contexto e das leis aplicáveis no caso, o julgamento do TSE tratou do que era tópico da conjuntura política. Mas não foi chamado a tratar das invisibilidades do caso, que em suas consequências e desdobramentos, esse mesmo julgamento acabará mostrando.

O voto de um dos ministros foi revelador de quanto o nosso direito eleitoral pode conter o direito e o avesso que deixam para um imaginário político alternativo as bases de nossas incertezas nas questões do poder. O que deveria ser reto e simples acaba se tornando complicado e barroco nos retorcimentos de possibilidades de interpretação das leis e da própria Constituição de 1988.

Aquele duvidoso artigo 242 tem reinado nos dilemas de interpretação como uma concreta e indevida ameaça anticonstitucional e antidemocrática no corpo da lei maior. Indício, nela, de uma cultura política de ressalvas para relativizar e mesmo anular os valores e princípios na Constituição contidos.

Expressão dessa cultura impugnativa foi o fato de que antes mesmo do TSE ter finalizado a votação da inelegibilidade do primeiro investigado, já na Câmara dos Deputados mais de 60 parlamentares se movimentavam no sentido de propor a anistia política do eventual condenado. O Estado brasileiro repousa sobre o tripé de Executivo, Legislativo e Judiciário.

Essa iniciativa é tão golpista quanto a que o TSE estava julgando naquele mesmo momento. Uma ação para propor e instrumentalizar ato de um dos poderes e anular a função e a legitimidade de outro poder, antes mesmo delas se configurarem. O que, de fato, indica que o crime julgado pelo TSE não estava concluído, mas era crime em andamento, cujos cúmplices não eram apenas os invisíveis a que aludi, mas tem nome, endereço e posição na estrutura de poder.

Aparentemente, o Estado brasileiro corre o risco de sua conversão funcional de instituição baseada não no princípio da representação política, mas num sistema de cumplicidades antidemocráticas, que expressam não a vontade do povo, mas a de minorias obscurantistas.

Uma característica que perdura desde tempos recuados, desde a Proclamação da República por meio de um golpe de Estado antirrepublicano e antidemocrático. Tudo mudou na história republicana brasileira para que tudo permaneça na mesma, como na Sicília de Lampedusa, como sugere Tancredi ao tio, em “O leopardo”.

O julgamento do TSE, nessa perspectiva, é o julgamento e condenação de uma das peças desse bloqueio. A sentença condenatória do primeiro investigado condena o arcaísmo que ele representa, não só antidemocrático, mas também antipolítico.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

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