Valor Econômico
Se robôs e IA forem utilizados mais para
substituir o fator trabalho, e menos para complementar a capacidade de
trabalhadores em executar funções, os efeitos líquidos no emprego podem ser
negativos
A Esfinge da mitologia grega era um ser
fantástico que perambulava pelos arredores de Tebas, propondo enigmas a quem
encontrava e os devorando caso não conseguissem desvendá-los. Suas aventuras
terminaram quando encontrou Édipo e perguntou: “O que tem quatro pernas, duas
pernas e três pernas, e é mais fraco quando tem mais pernas?”. Édipo solucionou
a charada (uma metáfora para um ser humano ao longo da vida) e a Esfinge se
atirou em um precipício.
Governos ao redor do mundo enfrentam enigmas com relação à regulamentação e a operação do mercado de trabalho. O impacto de tecnologias digitais e de novos modelos de negócio gera questões sobre a regulamentação das relações trabalhistas. E o envelhecimento da população em muitos países gera ansiedades sobre a estabilidade fiscal em longo prazo e o impacto social dessas mudanças demográficas.
Uma esfinge contemporânea apresentaria uma
tríade de questões aos responsáveis por políticas governamentais. Em primeiro
lugar, como regular o trabalho sob demanda? Em particular, o segmento do setor
de serviços que opera com postos de trabalho flexíveis e temporários conectados
por plataformas eletrônicas, como ilustrado por motoristas e entregadores que
trabalham com os aplicativos de transporte de passageiros e entregas (a “gig
economy”). Em segundo lugar, como administrar o impacto de novas tecnologias,
sobretudo a inteligência artificial (IA), no mercado de trabalho? Em terceiro
lugar, como enfrentar a transição demográfica que irá gerar um aumento
significativo da taxa de dependência, a relação entre aqueles que não estão
trabalhando (crianças e idosos) e aqueles que se encontram na força de
trabalho?
O desafio mais imediato diz respeito à regulamentação da gig economy. Abordagens distintas vêm sendo adotadas. Alguns países, como a Suíça, a Espanha e a Bélgica, têm optado pela formalização da relação de trabalho, mas outros, como França e Itália e os Estados de Nova Iorque e Califórnia (nos EUA), não reconhecem vínculo empregatício. Há ainda aqueles que operam com um sistema híbrido, como o Chile e a Áustria, em que existem trabalhadores com vínculo empregatício com as plataformas e trabalhadores independentes.
No Brasil, o debate sobre a regulamentação
da gig economy continua. É evidente que a imposição da legislação trabalhista
(CLT) às atividades do setor causaria disrupções significativas não apenas para
as empresas, mas também para um contingente de cerca de 1,7 milhões de
trabalhadores que operam nesse ecossistema. Cabe assinalar que cerca de 48% dos
entregadores e 37% dos motoristas têm outros trabalhos, ilustrando o caráter
complementar das atividades baseadas em aplicativos.
No Brasil, o desafio é maior. A
digitalização nas firmas parece ser mais rápida que a qualificação da mão de
obra
Uma regulamentação que garanta um piso
mínimo de remuneração e o acesso a seguros de vida e contra acidentes faz
sentido, mas é importante reconhecer as peculiaridades do trabalho por
aplicativos e a importância de preservar a flexibilidade nos tipos de contrato
adotados.
Outro aspecto crítico para o mercado de
trabalho diz respeito a inovações tecnológicas. Em médio prazo, todos os países
terão de conviver com os impactos da robótica e da IA. Reações ao impacto de
inovações tecnológicas no mercado de trabalho remontam ao século XVIII. O
protesto dos “Luddites” na Inglaterra contra a mecanização do setor têxtil
levou à adoção da pena de morte, em 1812, contra trabalhadores envolvidos na
destruição de máquinas têxteis. O termo Luddite, uma referência a Ned Ludd que
se insurgiu contra a mecanização do setor em 1779, passou a caracterizar
aqueles que se insurgem contra a adoção de novas tecnologias e o seu impacto no
mercado de trabalho.
A experiência histórica sugere que a
“destruição” de postos de trabalho em virtude de novas tecnologias tende a ser
superada pela criação de empregos em outros setores da economia em paralelo com
o aumento da produtividade do trabalho que favorece taxas mais elevadas de
crescimento econômico. Mas a transformação digital ora em curso gera desafios
que podem alterar a experiência histórica. Se robôs e IA forem utilizados
principalmente para substituir o fator trabalho, ao invés de complementar a
capacidade de trabalhadores em executar as suas funções, os efeitos líquidos
podem ser negativos.
Uma análise do World Economic Forum (WEF),
por exemplo, sugere que cerca de 83 milhões de postos de trabalho serão
eliminados em todo o mundo, no período 2023-27, em virtude da 4ª Revolução
Industrial (em particular os efeitos da IA e do uso de Big Data). Em
contrapartida, a expectativa é de que cerca de 69 milhões de empregos serão
criados nesse mesmo período. Tais estimativas sugerem um impacto negativo
líquido de 14 milhões de empregos, aproximadamente 2% dos postos de trabalho
analisados.
No caso brasileiro, a análise da Fundação
Dom Cabral que colaborou com a elaboração do relatório do WEF sugere um impacto
negativo líquido de 2,6 milhões de empregos, em virtude da digitalização e da
automação. E em um estudo da Goldman Sachs, a proporção de empregos
potencialmente impactados por tecnologias digitais no Brasil pode ser superior
a 20% no médio prazo.
Essas estimativas têm de ser analisadas em
conjunto com o potencial impacto positivo da digitalização na produtividade do
trabalho para que se tenha uma análise adequada de impacto. Mesmo assim,
governos terão de administrar essa transição com cuidado. No Brasil, o desafio
é ainda maior pois o avanço da digitalização nas empresas parece estar
evoluindo a uma taxa mais rápida do que a qualificação da mão de obra.
A terceira charada diz respeito a como
administrar a transição demográfica. Em muitos países, a tendência demográfica
atual sugere um declínio na taxa de crescimento da força de trabalho. Mais uma
vez a resposta ideal depende de um aumento da produtividade do trabalho, caso
não queiramos ver sociedades consumidas pela esfinge.
*Carlos A. Primo Braga é professor associado da Fundação Dom Cabral e ex-Diretor de Política Econômica e Dívida do Banco Mundial.
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