segunda-feira, 28 de agosto de 2023

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

É um erro prorrogar incentivos federais a montadoras do Nordeste

O Globo

Emenda à reforma tributária tenta manter benefício para agradar empresas com fábricas na Bahia

Quando parecia haver consenso contra a guerra fiscal travada pelos estados na disputa por investimentos de indústrias, surge a ameaça de uma emenda do governo à reforma tributária que estende incentivos até 2032. O objetivo é beneficiar montadoras instaladas no Nordeste: a Jeep, da holding Stellantis, e a fabricante chinesa de carros elétricos BYD, que acaba de chegar à Bahia.

A ideia pôs em alerta o consórcio dos governos de Sudeste e Sul. O governador de Minas, Romeu Zema, vislumbra o risco de a prorrogação da isenção de tributos federais — PIS-Cofins e IPI — induzir a Stellantis a dar prioridade a investimentos na montadora Jeep que tem em Pernambuco, em detrimento da fábrica da Fiat em Betim, também controlada pela holding.

O estopim da tensão entre governos estaduais e Planalto foi a chegada da chinesa BYD para fabricar carros elétricos nas antigas instalações da Ford em Camaçari, Bahia, estado do ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, e do líder do governo no Senado, Jaques Wagner, ambos do PT. Lula chegou a receber no Planalto a presidente da BYD, Stella Li, acompanhada de Costa e do governador baiano, Jerônimo Rodrigues (PT).

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da reforma tributária cria um fundo que bancará até 2032 os benefícios da isenção de ICMS distribuídos por governadores na guerra fiscal para atrair investimentos industriais. Os governadores do Nordeste querem o mesmo para montadoras nos impostos federais. Em julho, uma emenda para prorrogar os incentivos foi apresentada na Câmara minutos antes da proclamação do resultado da votação do texto-base da reforma tributária. Por um voto não foi aprovada. O governo tenta agora incluí-la no Senado.

É extensa a história dos incentivos fiscais e das distorções que provocam nos mercados. Empresas beneficiárias deixam de buscar aumento de produtividade, por não estarem expostas à competição equilibrada. O próprio setor automobilístico no Brasil serve de exemplo. As montadoras foram atraídas por incentivos e começaram a instalar suas fábricas no país no início dos anos 1950. Protegidas por altas tarifas de importação, não traziam ao Brasil os modelos mais modernos lançados nas matrizes. Só com a abertura comercial do governo Fernando Collor de Mello (1990-92), as fábricas brasileiras passaram a modernizar seus produtos.

Isso não impediu que, entre 2000 e 2021, as montadoras recebessem quase R$ 70 bilhões em incentivos fiscais. Só no ano passado, foram R$ 10 bilhões, mais de 2% do total de subsídios do governo. Eternizar subsídios é repetir erros do passado. Os benefícios fiscais das montadoras que se instalaram no Nordeste, Norte e Centro-Oeste foram criados há 26 anos e passaram a ser prorrogados a cada cinco anos sem nenhum critério objetivo para avaliar resultados. A manutenção dos incentivos tributários federais para beneficiar empresas de uma região demonstra que não se aprendeu a lição. O certo não é ampliar um erro para todo o país. É simplesmente não cometê-lo.

Mais do mesmo ou salto no escuro, o dilema argentino

Valor Econômico

Milei propõe uma terapia de choque para a Argentina, baseada num receituário ideológico libertário nunca testado em nenhuma economia importante

As eleições deste ano vão colocar os argentinos diante de um dilema. De um lado estarão dois candidatos vinculados a partidos que fracassaram no governo do país na última década. Do outro, um candidato inexperiente em política que promete um remédio na aparência revolucionário, porém muito arriscado.

Há uma sensação ampla entre os eleitores argentinos de que as candidaturas do atual ministro da Economia, o peronista Sergio Massa, e da ex-ministra Patricia Bullrich são mais do mesmo. Massa, apesar de não ser kirchnerista, é o timoneiro da nave governista que está entregando um país em frangalhos. Já Bullrich é ligada ao ex-presidente Mauricio Macri, cujo governo também terminou em crise econômica e desacreditado. Tanto Massa como Bullrich prometem reformas pró-mercado e liberalizantes, mas carregam o peso do fracasso dos dois últimos governos.

A alternativa é o ultraliberal Javier Milei, um outsider, com pouca experiência política e nenhuma de governo - ele é deputado federal há dois anos - e que tem uma estrutura partidária incipiente. Milei propõe uma terapia de choque para a Argentina, baseada num receituário ideológico libertário nunca testado em nenhuma economia importante. Ele promete um corte brutal de gastos públicos e uma grande redução de impostos. O objetivo é aliviar o peso do Estado na economia e libertar as forças do capital privado.

Milei diz, com razão, que as forças produtivas no país estão reprimidas por uma carga excessiva de regras e impostos e por uma elevada interferência do Estado, que distorce a economia. Basta recordar que a Argentina tem hoje 16 taxas de câmbio diferentes para o dólar. O ajuste fiscal, que Milei disse recentemente que superaria o pedido pelo Fundo Monetário Internacional, seria baseada no corte de subsídios e no corte e/ou privatização de serviços públicos, como saúde e educação. Haveria ainda uma forte redução no quadro de funcionários públicos, numa ampla reforma do Estado.

Milei pretende ainda eliminar o Banco Central. Para os libertários, o BC é uma estrutura estatal desnecessária, cujas atribuições podem ser exercidas pelo mercado. E é danoso, pois permite a emissão monetária descontrolada para financiar o governo, como no caso da Argentina. Eles atribuem recessões a intervenções desnecessárias do BC nos mercados. A eliminação do BC coincidiria com a dolarização da economia. Os argentinos poderiam usar livremente o dólar (ou qualquer outra moeda) no seu dia a dia. Parte da economia, como o mercado imobiliário, hoje já é de fato dolarizada.

Outra proposta é a abertura comercial irrestrita e unilateral. Para Milei, essa abertura é benéfica para a economia, pois favorece a alocação dos recursos escassos em setores onde o país é mais competitivo, além de fomentar a concorrência. O candidato promete ainda acabar com obras públicas, que seriam fontes de corrupção. Essas obras seriam concedidas ao setor privado.

São propostas que alguns consideram inovadoras, mas que, para muitos economistas, são arriscadas e difíceis demais de implementar. Ainda mais para um governo que provavelmente não teria maioria no Congresso. Questões como eliminar o banco central são altamente controversas. Apenas um punhado de países pequenos, como Nauru, Mônaco ou Panamá, em geral sem moeda própria, não tem banco central hoje. Acabar com o BC seria um teste inédito numa grande economia. E, possivelmente, a Argentina é o lugar menos adequado para esse tipo de teste, pela desorganização e fragilidade da sua economia. É como testar uma dieta alimentar nova num doente em estado crítico.

Milei responde dizendo que o seu projeto de reformas é gradual e que o plano completo levaria 35 anos. Essas ressalvas levantam outras indagações. Se o projeto é gradual e é improvável que muitas das propostas sejam aprovadas pelo Congresso, o que ele fará exatamente? Que políticas adotará? Não se sabe. A dilatação do plano econômico em 35 anos é preocupante num país que não sabe bem como quitará suas dívidas até o final deste ano. Que gestor pode propor um projeto de 35 anos? Se Lula ou Bolsonaro dissesse isso no Brasil seria ridicularizado e/ou acusado de pretender se eternizar no poder. Chega a parecer uma desculpa antecipada para o insucesso.

A abertura comercial completa também é de difícil execução. Ela se chocaria com as regras do Mercosul e com a tendência mundial, que hoje é de mais fechamento, e não de abertura comercial. Além disso, no curto prazo pode gerar déficits comerciais que a Argentina hoje não tem como financiar. Há o risco de que setores menos competitivos, especialmente na indústria, sejam dizimados. A dolarização também já foi testada pela Argentina, não deu certo e resultou em desindustrialização.

Assim, os argentinos irão às urnas em meio a expectativas duvidosas. A primeira é que um dos dois grupos políticos tradicionais tenha aprendido com os erros cometidos e adote desta vez as políticas corretas, certamente muito dolorosas. A segunda é que um programa nunca testado e altamente arriscado dê certo num país instável como a Argentina.

Dragão exaurido

Folha de S. Paulo

Economia chinesa mostra fragilidade; cenário de desaceleração pode ser duradouro

Evidências de desaceleração da economia chinesa precedem a pandemia de Covid-19, mas ficaram mais claras com a frustração da retomada esperada em 2023.

O impulso ao crescimento esgotou-se rapidamente. Nos últimos meses houve estagnação de vendas no varejo e queda da produção industrial e das exportações, a ponto de colocar em dúvida a meta do governo de expandir o Produto Interno Bruto em 5% neste ano.

Pior, os dados mais recentes indicam crescimento potencial adiante abaixo de 3%. Observa-se deflação no atacado e nos preços ao consumidor. Cortes das taxas de juros, já em torno de 2,5% ao ano, e ampliação do crédito não têm sido suficientes para reverter o quadro.

O diagnóstico que vai se firmando é o de uma economia desbalanceada, com insuficiência crônica de consumo interno e dívidas excessivas de empresas estatais e governos locais, legadas por muitos anos de investimentos cada vez menos produtivos em infraestrutura e construção civil.

Do lado das famílias, num sistema financeiro fechado, os imóveis foram o principal destino da poupança, com aumento dos preços de moradias nas últimas décadas, que agora parece ter chegado ao fim.

Devido à erosão do valor de seu principal patrimônio, os cidadãos têm a confiança abalada e compram menos —a parcela do consumo no PIB é de apenas 38% no país, contra cerca de 70% nos EUA.

No agregado, esgotada a fase ascendente, configura-se um quadro de fragilidade financeira, que revela viés recessivo conforme os agentes contraem seus gastos. Juros mais baixos se mostram inócuos, como observado no Japão a partir da década de 1990.

É pertinente a comparação com a experiência japonesa, na qual o vigoroso crescimento da economia do país foi seguido por anos de fraco desempenho, em vez de uma crise financeira do tipo ocidental. A demografia é outro paralelo relevante —a população da China pode estar em declínio mais rápido que o esperado.

A questão mais importante é como reagirá o governo central de Xi Jinping. Até agora, o partido comunista segue a cartilha de sempre: mais crédito para infraestrutura e subsídios para a indústria.

Dobrar a aposta na alta da capacidade de oferta é a conduta mais alinhada ao propósito de controle político do governo. Mas também poderá agravar o problema principal, a escassez de consumo e serviços, que resulta em insuficiente geração de empregos.

A esta altura o receituário mais eficaz para impulsionar o crescimento seria aumentar drasticamente as transferências para famílias, algo que ainda parece distante do pensamento de Xi Jinping.

Democracia melhor

Folha de S. Paulo

Decisão do STF de ajustar bancadas na Câmara reduz distorções na representação

Legisladores naturalmente resistem a modificar as regras pelas quais conquistaram seus postos. Essa lógica ajuda a entender a dificuldade para a aprovação de uma reforma política ou mesmo de providências mais simples, como ajustar periodicamente a composição da Câmara dos Deputados.

Conforme o artigo 45 da Constituição, o número de deputados eleitos em cada estado será proporcional à população, respeitando-se os limites mínimo de oito e máximo de 70, e as eventuais alterações necessárias no tamanho das bancadas devem ser previstas nos anos anteriores aos pleitos.

Entretanto a última vez que o Congresso se dispôs a tratar do tema foi há 30 anos, quando uma lei complementar elevou de 503 para 513 a quantidade de cadeiras na Câmara. De lá para cá, as transformações demográficas apuradas nos censos de 2000 e 2010 foram ignoradas pelos parlamentares.

Terá impacto considerável, portanto, a decisão tomada na sexta (25) pelo Supremo Tribunal Federal de determinar que as bancadas a serem eleitas em 2026 sejam proporcionais às populações estaduais contadas no censo de 2022.

Por unanimidade, os magistrados definiram que o Congresso deve aprovar lei nesse sentido até 30 de junho de 2025; caso contrário, caberá ao Tribunal Superior Eleitoral fazer a adequação.

Recorde-se que o mesmo TSE tentou ajustar as bancadas em 2013 por resolução própria —que foi considerada inconstitucional pelo Supremo, devido ao entendimento de que a medida cabia ao Legislativo.

A omissão dos parlamentares ante um mandamento constitucional, no entanto, persistiu.

Segundo contas do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), sete estados (RJ, BA, RS, PI, PB, PE e AL) perderão vagas na Câmara, enquanto outros sete (SC, PA, AM, MG, CE, GO e MT) ganharão. Também muda nessas unidades federativas o tamanho das Assembleias Legislativas.

A medida aperfeiçoa a democracia brasileira ao tornar mais justos os critérios de representatividade. Os votos de todos os brasileiros, afinal, deveriam ter o mesmo peso.

Para que tal princípio fosse integralmente aplicado, seria necessário também eliminar os limites mínimo e máximo para as bancadas estaduais, que prejudicam em particular São Paulo, estado mais populoso e sub-representado. Essa, porém, é uma distorção histórica e consagrada na Constituição.

A hora do pluralismo sindical

O Estado de S. Paulo

É justo que os sindicatos sejam recompensados quando atuam em favor dos trabalhadores. Mas os trabalhadores devem ter o direito de escolher quem atuará por eles e negociar a recompensa

O governo prepara uma proposta de lei para instaurar uma contribuição obrigatória dos trabalhadores aos sindicatos. Segundo o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, não se trata de exumar o imposto sindical extinto pela reforma de 2017, mas de contribuições vinculadas a reajustes salariais intermediados pelos sindicatos. É uma espécie de taxa de sucesso.

“Uma democracia precisa ter um sindicato forte”, justificou Marinho a O Globo. Sem dúvida. O problema é o que se entende por “sindicato forte” quando se trata de estabelecer relações equilibradas entre empregados e empregadores. Sindicato forte não é sindicato balofo, mas sim representativo, ou seja, que trabalhe pelos interesses dos trabalhadores. O padrão no Brasil nunca foi esse e nada indica que a proposta o retificará – ao contrário.

O modelo nacional foi fabricado pela ditadura Vargas para arregimentar as lideranças sindicais. Criou-se então o imposto obrigando os trabalhadores a dar o equivalente a um dia de trabalho ao ano para os cofres sindicais. Além disso, instaurou-se a “unicidade”: a permissão de apenas um sindicato por categoria para cada região. Com fluxos garantidos de dinheiro tomado pelo Estado dos bolsos dos trabalhadores, as elites sindicais deram as costas a eles e se atrelaram ao poder estatal. Daí o termo “pelego” – a pele de carneiro entre a sela e a cavalgadura – para os sindicalistas que amaciavam o lombo dos trabalhadores enquanto as oligarquias apertavam seu cabresto.

O PT e seu braço sindical, a CUT, surgiram na atmosfera do “novo sindicalismo”, que contestava o “peleguismo” e defendia a liberdade de filiação, a autonomia de organização, a livre negociação entre patrões e empregados e o fim do imposto sindical. Mas a Constituição de 88 acolheu o entulho autoritário varguista, que foi abraçado pelo PT tão logo subiu ao poder. “As centrais sindicais, tornadas correias de transmissão do ‘Estado lulista’”, disse neste jornal José Antonio Segatto, “passaram a confraternizar no Ministério do Trabalho, repartindo poderes e verbas, abocanhando 10% do imposto sindical e gerindo recursos do FAT, do FGTS, de fundos de pensão, etc.”

A reforma pôs fim à fonte principal da esbórnia, o imposto, e os sindicatos passaram a depender de contribuições voluntárias de seus associados. Ocorre que as negociações têm custos, e os benefícios negociados valem para todos os trabalhadores de suas categorias. Por isso, na maior parte das democracias, admitem-se contribuições obrigatórias condicionadas a esses benefícios. A proposta do governo emularia esse modelo.

Mas essa é só uma meia-verdade. A verdade inteira é que nos outros países os trabalhadores podem formar quantos sindicatos quiserem. Esses sindicatos competem para arregimentar afiliados, oferecendo melhores serviços a menores custos, incluindo o das contribuições. É o sindicato mais representativo que assume as negociações coletivas, e o destino da contribuição compulsória (acordada por afiliados e não afiliados) é limitado ao custeio delas. A aferição da representatividade é regulamentada e periódica, e o sindicato que deixa de ser representativo deixa de ser o negociador e perde a contribuição.

Mas no Brasil vigora, por disposição constitucional, o monopólio dos sindicatos estabelecidos e sua discricionariedade para empregar as contribuições – inclusive em campanhas partidárias ou para enriquecer seus líderes. É a essas entidades que o Ministério do Trabalho quer garantir o “direito” de tomar do trabalhador até 1% de sua renda anual, ou seja, quatro vezes mais que o famigerado imposto sindical.

Como disse à CNN o especialista em relações trabalhistas e colunista do Estadão José Pastore, se a Constituição for alterada para se instaurar a pluralidade sindical e a fiscalização dos recursos, a proposta de contribuição pode ser uma “excelente solução”. Mas, se for mantido “um sistema de monopólio que não pode ser controlado nos seus abusos”, será “um retumbante fracasso e retrocesso”. Não há notícia de que o governo pretenda mexer nesse monopólio. Se for assim, que o Congresso atue para evitar retrocessos.

A democracia nos currículos escolares

O Estado de S. Paulo

Agora, mais do que nunca, é preciso formar os jovens em relação à educação política e aos direitos da cidadania. Ao incluir o tema nos currículos escolares, Câmara cumpre a Constituição

A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 1.108/2015, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, Lei 9.394/1996) para incluir Educação Política e Direitos da Cidadania no currículo regular das escolas brasileiras. Trata-se de uma medida importante, alinhada com a Constituição e com a própria LDB. Sempre foi fundamental educar para a democracia e a cidadania, mas nos tempos atuais, com tanta desinformação, essa tarefa se tornou ainda mais premente. Agora, a proposta será analisada pelo Senado.

A Constituição de 1988 determina que a educação, “direito de todos e dever do Estado e da família”, deve ter três grandes finalidades: o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Ao definir as diretrizes da educação nacional, a Lei 9.394/1996 ratifica, no art. 2.º, os três objetivos elencados na Constituição. Ou seja, a rigor, o Congresso não está inventando nada com o PL 1.108/2015. Apenas cumpre o texto constitucional. Não há verdadeira educação sem formação para a cidadania.

Ao expor os motivos de sua proposta, a autora do projeto, deputada Renata Abreu (Podemos-SP), questionava, com razão, em 2015: “Será que queremos jovens que passam nas melhores universidades deste País, mas que desconhecem seus direitos e deveres como cidadãos? Que não conhecem a Constituição do seu País? (...) Que são obrigados a votar, mas que não sabem nem ao certo o que fazem cada um daqueles governantes? Como podemos cobrar destas gerações que votem corretamente quando não demos a elas o mínimo de conhecimento para isso?”.

A resposta a esses questionamentos foi dada pela Constituição de 1988. Não há genuína educação onde há alienação, onde há ignorância sobre os direitos e os deveres comuns a todos os cidadãos. Diante da disposição constitucional, a LDB estabeleceu que os currículos das escolas brasileiras devem abranger obrigatoriamente “o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil” (art. 26, § 1.º). É justamente nesse tópico – o conhecimento da realidade social e política nacional – que incide o PL 1.108/2015, incluindo a educação política e os direitos da cidadania.

Naturalmente, esse conteúdo sobre democracia e cidadania não pode servir de pretexto para doutrinação ideológico-partidária. Uma disciplina assim seria inconstitucional, desrespeitando o pluralismo político e as liberdades de pensamento e de expressão, que são elementos essenciais de todo Estado Democrático de Direito. Educar para a cidadania não é fornecer uma determinada orientação política aos jovens. Isso violaria as regras mais básicas de funcionamento de um regime democrático.

A pauta do que deve ser ensinado às crianças e aos jovens a respeito de educação política e direitos da cidadania é dada pela própria Constituição, que, como se sabe, expressa o consenso axiológico de um país. Há muito a ser ensinado às novas gerações; por exemplo, os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade de todos perante a lei, os direitos e garantias fundamentais, os princípios fundadores do Estado, a tripartição dos Poderes.

Ao longo dos últimos anos, desde que o PL 1.108/2015 foi apresentado na Câmara, houve sensível retrocesso na compreensão de muitos aspectos da democracia e da cidadania por parte da população, nos mais diversos grupos ideológicos. Em concreto, decaiu a compreensão sobre as liberdades de opinião e de expressão – como se incluíssem o direito de ameaçar e agredir–-, sobre o Judiciário – como se estivesse refém da voz da maioria – e da própria Constituição – como se seu conteúdo variasse segundo a orientação política do intérprete. Houve e continua havendo difusão massiva de desinformação sobre esses temas.

É muito oportuno, portanto, o PL 1.108/2015. As novas gerações não podem estar reféns da manipulação. Toda educação, é o que dispõe a Constituição, deve fortalecer a autonomia.

AGU desarma o Ibama

O Estado de S. Paulo

Alegação central para impedir exploração de petróleo na Margem Equatorial foi desmantelada

O parecer emitido pela Advocacia-Geral da União (AGU) em resposta a um questionamento do Ministério de Minas e Energia rebateu o principal argumento do Ibama que impede a Petrobras de perfurar um poço exploratório na Bacia da Foz do Amazonas, na Margem Equatorial.

A interpretação da AGU foi simples. O documento exigido pelo Ibama, a Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS), é dispensável, uma vez que o bloco exploratório já foi outorgado. Recorde-se que a avaliação ambiental é condição para que potenciais áreas de exploração de petróleo sejam levadas a leilão. Ou seja, considerando que o poço que a Petrobras pleiteia perfurar seria o primeiro de um bloco já leiloado em 2013, isso significa que foram cumpridos todos os estudos preliminares, com participação do Ibama, sem os quais a concessão não teria sido outorgada.

A exploração tem como objetivo medir in loco a existência ou não de petróleo em quantidade suficiente para justificar a produção. Se a análise de sensibilidade ambiental da área foi feita previamente à licitação, não há por que impedir a medição da capacidade das reservas que o próprio governo concedeu. Ressalte-se que o resultado é incerto. Pode até indicar que não vale a pena produzir na área.

A lógica do voto da AGU foi cristalina, mas o recado político que o parecer embute é mais eloquente. Com a manifestação, fica ainda mais patente a determinação do governo em investigar o potencial da nova fronteira exploratória. Diante da vontade explicitada, mais de uma vez, pelo próprio presidente Lula da Silva – e endossada por governadores e parlamentares do Norte e do Nordeste –, tudo indica que a exploração de petróleo em águas profundas da Margem Equatorial é uma questão de tempo.

Nada mais coerente, aliás. Se a Agência Nacional do Petróleo (ANP), órgão regulador de mercado, a União, dona das possíveis reservas petrolíferas, e os órgãos ambientais consideraram que o risco da atividade não seria empecilho à concessão dos blocos, qual o sentido de mudar as regras depois do leilão? A atuação dos órgãos públicos servirá de referência não apenas para esse bloco específico, ou para outros arrematados nas bacias da Margem Equatorial. Qualquer alteração fomentará insegurança em todo e qualquer leilão da ANP.

Vêm do Ibama e da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, as vozes dissonantes no governo. Diante da proposta de abertura de uma câmara de conciliação, feita pelo advogado-geral da União, Jorge Messias, que atuaria como mediador, Marina já declarou que “não existe conciliação” – apesar de a Petrobras ter concordado em seguir à risca tudo o que o Ibama exigir. Prova de que do outro lado da mesa a questão também não é técnica, como insiste a ministra.

Ambientalistas radicais defendem que, se houver petróleo submerso, que permaneça intocado. Mas, mesmo no cenário mais agressivo de transição energética, o mundo consumirá 57 milhões de barris de petróleo por dia em 2050. A produção na Margem Equatorial fará a diferença para o Brasil. É uma decisão política.

O papel de Zanin

Correio Braziliense

"É preciso que direita, esquerda, governo e oposição entendam, para além do burburinho das redes sociais, que o papel de Zanin — ou de qualquer outro ministro do Supremo — não é agradar este ou aquele"

Causou incômodo a setores da esquerda o voto do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Cristiano Zanin no caso que avalia a descriminalização do porte de maconha. Recém-indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e empossado há apenas três semanas, Zanin abriu a divergência do relator, ministro Alexandre de Moraes, que defende que o usuário que estiver carregando a droga não seja punido criminalmente, e indo contra os votos de Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, que já haviam proferido suas opiniões, e Rosa Weber, que pediu para antecipar o voto no fim da sessão.

Foi o que bastou para que o novo ministro fosse comemorado por setores próximos ao bolsonarismo, com parlamentares ligados à bancada evangélica no Congresso exaltando a posição conservadora de Zanin na questão. Do outro lado, choveram críticas de quem esperava uma postura mais progressista do indicado de Lula, e já cobrando do presidente que a próxima indicação, que ocupará o lugar de Rosa Weber, que se aposenta em setembro, seja de uma mulher negra ou de alguém com origem trabalhista, com atuação no Tribunal Superior do Trabalho (TST).

No início da semana, Zanin já havia irritado setores ligados às pautas identitárias por votar contra a decisão que reconheceu que ofensas homofóbicas são equivalentes ao crime de injúria racial. Foi o único voto contrário da Corte. O novo ministro justificou a posição por um aspecto técnico processual, sem entrar no mérito da questão em si.

Passado o barulho das redes sociais, pode-se debruçar com calma sobre o voto de Zanin. Ele divergiu da descriminalização do porte de maconha, mas concordou com a fixação de um critério objetivo que diferencie o traficante do mero usuário. Existem propostas que variam de 100 gramas a um limite de até 25 gramas — como defendeu Zanin. Nesse sentido, o voto contrário do novo ministro é até mais assertivo do que o voto de Edson Fachin, que, apesar de a favor da descriminalização do porte, preferiu passar a bola para que o Legislativo decida qual o critério vai fazer essa diferenciação — o que poderia levar a um atraso de anos na efetivação da decisão.

É possível, inclusive, vislumbrar uma estratégia que justifique um voto aparentemente contraditório. É comum, em julgamentos colegiados, que os ministros circulem entre os pares seus votos com antecedência. Ou seja, com uma maioria formada, Zanin pôde se dar ao luxo de divergir para escolher a repercussão menos pior e evitar uma batalha em torno da narrativa de que o ministro escolhido por Lula libera as drogas, o que geraria um desgaste imenso para alguém que mal chegou à Corte. Como foi, Zanin saiu, ainda que temporariamente, da linha de tiro dos conservadores.

Portanto, é preciso que direita, esquerda, governo e oposição entendam, para além do burburinho das redes sociais, que o papel de Zanin — ou de qualquer outro ministro do Supremo — não é agradar este ou aquele. O que a sociedade brasileira espera de Zanin é que esteja à altura do imenso desafio de zelar pela Constituição, com coerência, responsabilidade e ponderação, sem privilegiar os interesses partidários ou defender pautas de qualquer governo que seja. Afinal de contas, o mandato do presidente que o colocou lá termina em 2026, enquanto sua permanência na cadeira do Supremo se estenderá até 2050.

 

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