terça-feira, 22 de agosto de 2023

Míriam Leitão – Nada garante quem ameaça

O Globo

Encontro com os comandantes deixa a impressão de que as Forças Armadas precisam ser acalmadas e compensadas, mesmo com os recentes episódios

Só um país em crise faz uma reunião, sábado, de seis às oito da noite, no palácio residencial, entre os comandantes militares e o presidente da República. A crise foi gerada pelo envolvimento de muitos militares no projeto de um novo golpe contra as instituições democráticas. Em uma parte da reunião, eles falaram sobre investimentos que o governo pretende fazer nas Forças Armadas. No PAC, até 2026, seriam R$ 53 bilhões. De novo, o esforço dos civis é para tentar compensá-los e acalmá-los não se sabe por qual motivo. É simplesmente inconcebível que quepes pairem sobre a República. Mas essa presunção dos militares foi plantada há muito tempo.

O historiador Carlos Fico, da UFRJ, lembra que um erro da Constituição de 1891, a primeira da República, acabou se eternizando na história constitucional brasileira.

—Durante a constituinte de 1988, Afonso Arinos, José Genoíno e Fernando Henrique Cardoso, quer dizer, direita, esquerda e centro, tentaram evitar que o artigo 142 fosse redigido daquela maneira. Não conseguiram. Por pressão do general Leônidas Pires Gonçalves. Nunca conseguimos enfrentar o que se iniciou em 1891. Rui Barbosa, na época, incluiu o artigo 14 na Constituição de 1891, estabelecendo que as Forças Armadas eram a garantia dos poderes constitucionais. Mas o que era isso? Era uma atribuição do poder moderador do Imperador que, por causa desse artigo, foi atribuído às Forças Armadas. Esse fantasma, que vem do século 19, continua a assombrar. Há dezenas de exemplos na história. É um problema muito arraigado na sociedade, no imaginário militar e em muitos setores civis também.

A pesquisa Genial/Quaest mostra a queda da aprovação dos militares. Ela não cai pelos motivos certos, que seria um repúdio ao golpismo dos militares, mas pelos motivos errados, a frustração dos bolsonaristas porque eles não deram o golpe de Estado.

— Mais uma manifestação dessa tradição tão negativa no Brasil de relacionamento problemático entre civis e militares. O fato de haver uma expectativa de golpe, de intervencionismo militar que, ao não se realizar, gera frustração em uma parte da população. Isso é um indicador muito triste, lamentável. E se insere, historicamente, numa tradição de longuíssima duração.

O pior dessa reunião no sábado do presidente Lula com os chefes das Forças Armadas, e das centenas de reuniões do presidente com os comandantes militares, é que paira no ar a impressão de que eles precisam ser compensados para que possam se “acalmar”, quando partiu deles a ameaça sobre a ordem constitucional.

— Tudo começou mal no governo Lula. Primeiro teve aquela coisa de nomear logo o ministro José Múcio para acalmar os militares. Depois aceitar a nomeação de comandantes interinos durante o governo Bolsonaro, com Lula já para assumir. Depois promessas de investimento. Isso sempre aconteceu no Brasil, há as ameaças de intervenção e, em seguida, aumentam-se os orçamentos militares e são feitas promessas de compensação.

O professor lembra que o projeto de dar protagonismo aos militares fracassou, e os levou ao desgaste. Isso deveria provar, mais uma vez, que a interferência dos militares na política não dá certo nunca.

— Eu estou convencido de que isso só será resolvido com o gesto político e simbólico de alterar o artigo 142 da Constituição — disse Carlos Fico.

Esse era o mesmo pensamento do historiador e cientista político José Murilo de Carvalho. Numa entrevista que eu fiz com ele, em 2020, em meio às ameaças de militares ao STF, o professor, recentemente falecido, alertou para a ambiguidade do texto constitucional.

“O artigo 142 diz que elas estão sujeitas ao presidente da República e acrescenta que se destinam ‘à garantia dos poderes constitucionais’. Há uma enorme dificuldade: como estar sujeitas a um poder e, ao mesmo tempo, garantir os três? É caminho aberto para interpretações conflitantes e dá margem a essas declarações ameaçadoras ao STF ( feitas na época pelo general Heleno). Ele faria a mesma ameaça se fosse para defender o Congresso e o STF contra ataques do seu chefe no Executivo?”, perguntou o grande professor José Murilo.

Estamos no século 21 carregando a mesma distorção do século 19. A de que as Forças Armadas são a garantia dos poderes constitucionais, apesar de serem elas as maiores ameaças a esses mesmos poderes.

 

2 comentários:

marcos disse...

Questão de ter aquilo roxo. O resto é cascata.

Os caras fora da caserna são uns jumentos armados que se metem a gerir e dá nisso. Foi assim com Deodoro, Floriano, com os tenentes de Vargas e com os generais de 1964.

O problema da direita brasileira é ser mais burra do que eles.

MAM

ADEMAR AMANCIO disse...

Pois é!