Volta do imposto sindical seria um retrocesso
O Globo
Projeto que ministro Luiz Marinho pretende
encaminhar ao Congresso estabelece valor fora da realidade
Mesmo antes de tomar posse, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva jamais escondeu a intenção de rever a reforma
trabalhista aprovada em 2017. O Ministério do Trabalho foi entregue a Luiz
Marinho, que comandou o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC como Lula e já fora
ministro em mandatos anteriores. Agora, enquanto o Supremo demora a julgar se é
constitucional haver uma contribuição obrigatória a sindicatos, Marinho
confirma que o governo
remeterá ao Congresso um projeto que, na prática, recria o imposto sindical (ainda
que com outro nome).
Até 2017, cada trabalhador recolhia o equivalente a um dia de trabalho por ano para sustentar a burocracia sindical. Na reforma, a obrigatoriedade acabou. Foi um avanço, pois os sindicatos deixaram de ter uma fonte cativa de recursos sem fazer esforço e precisam se aproximar das categorias que representam. Os sindicalistas, há décadas habituados ao privilégio, tiveram de começar a justificar com seu trabalho o sustento das entidades.
Era, por sinal, exatamente o que Lula, os
metalúrgicos do ABC e a CUT defendiam para acabar com os sindicatos dirigidos
por “pelegos”. O imposto sindical foi foco de um sem-número de escândalos de
enriquecimento ilícito. Com a reforma, a fonte das maracutaias secou. Em 2017,
último ano de sua vigência, o imposto arrecadou R$ 3,6 bilhões. Com a extinção,
prevê-se que neste ano a estrutura sindical receberá R$ 68 milhões dos
afiliados. Não é pouco dinheiro. Se não satisfizer às necessidades, os
sindicalistas poderão ampliar a arrecadação com capacidade de trabalho e poder
de convencimento. Mas parece mais fácil aproveitar o governo de um
ex-sindicalista para recuperar o manancial de dinheiro fácil.
A atual versão do projeto que deverá ser
enviado ao Congresso em setembro estabelece o teto de 1% do salário anual do
trabalhador, descontado da folha salarial. Pode parecer pouco, mas não é.
“Antes, um trabalhador que ganhava R$ 3 mil mensais tinha de pagar R$ 100 ao
ano”, diz o sociólogo José Pastore, da USP, estudioso do mercado de trabalho.
“Com o novo teto, considerando o 13º salário, a remuneração anual pode chegar a
R$ 39 mil, o que resultaria numa contribuição de R$ 390.” Mesmo que seja
possível justificar a cobrança de uma taxa para arcar com o custo das
negociações coletivas, o patamar sugerido pelo governo é escandalosamente alto
(o quádruplo da antiga contribuição sindical).
O projeto do Ministério do Trabalho vincula
a aprovação do acordo coletivo ao pagamento da nova contribuição, uma forma
indireta de torná-la compulsória. Nas palavras do economista José Márcio
Camargo, da PUC-Rio e da Genial Investimentos, o projeto é “péssimo” por
“obrigar o trabalhador a pagar por algo que não escolheu”. Além disso, aumenta
o custo de contratação, sobretudo dos menos qualificados.
Acomodadas ao modelo vigente de sindicato
único por categoria, as lideranças sindicais preferem fazer pressão pela volta
das contribuições compulsórias a aceitar modernizá-lo. Autorizar mais de um
sindicato por categoria traria uma competição bem-vinda no uso dos recursos dos
trabalhadores e melhoraria a qualidade do serviço prestado. Para alguns
economistas e estudiosos, sem o monopólio cartorial, uma contribuição
obrigatória poderia ser justificável. Mas, se com o monopólio ela é
inaceitável, mesmo sem ele seria um abuso.
Apagão não justifica pressão para
substituir energia eólica por térmica
O Globo
Gestão competente seria capaz de conciliar
estabilidade da geração e impacto ambiental da rede elétrica
Antes do diagnóstico técnico final, as
autoridades atribuíram o apagão da semana passada à falha numa linha de
transmissão da Chesf, subsidiária da Eletrobras, entre Quixadá e Fortaleza, no
Ceará. O ministro de Minas e Energia,
Alexandre Silveira, disse que o problema isoladamente não seria capaz de
provocar queda da energia em 26 unidades da Federação. Mesmo assim, as atenções
imediatamente se voltaram ao parque de geração eólica instalado no Ceará.
O apagão deflagrou uma corrida de lobbies.
“Tem gente tentando aproveitar a situação para pôr a culpa na energia eólica e
facilitar projetos de lei para encher o país de térmicas”, disse Elbia Gannoum,
presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica). A reação tem
como pano de fundo a competição entre as fontes limpas, hídrica, eólica e
solar, e a instalação de termelétricas a gás para usar as reservas descobertas
na exploração do pré-sal.
As
hidrelétricas responderam por 75,8% da energia elétrica consumida no Brasil
entre janeiro e junho. As demais fontes não são desprezíveis.
Usinas térmicas responderam por 8,1%, ante 11,9% das eólicas e 3,3% das
solares. A previsão para o segundo semestre é que as fontes limpas continuem
acima de 90%. Mesmo assim, as térmicas — que geraram 21,4% na crise de 2021 —
serão ampliadas em razão do jabuti inserido na lei de privatização da
Eletrobras impondo sua instalação onde não há consumo que justifique.
O principal argumento usado por seus
defensores é que são uma modalidade de geração de “despacho rápido”. Basta começar
a queimar o gás e a energia chega às tomadas, ao contrário da geração eólica ou
da solar, que demoram a alcançar a potência necessária para que possam ser
transmitidas aos linhões que alimentam o sistema. O lobby das térmicas usou a
demora para restabelecer o fornecimento nos estados do Nordeste depois do
apagão como argumento contra as eólicas.
É verdade que a energia eólica e a solar
não são constantes. Pode haver variação brusca em função das condições
meteorológicas: mais ou menos vento, mais ou menos nuvens. Mas nada que um
sistema integrado de distribuição alimentado por várias fontes não consiga
suportar. As hidrelétricas em operação podem sustentar a rede para absorver as
oscilações típicas da geração eólica e da solar. As térmicas também têm papel
fundamental para evitar choques bruscos no fornecimento.
Cada fonte geradora de energia tem seu
impacto ambiental. Diante da necessidade de reduzir as emissões de gases, não
faz sentido optar por termelétricas em vez de instalar um parque eólico ou
solar nas regiões propícias. Sobretudo porque o custo de produção das fontes
limpas já é competitivo. Ao contrário do que alegam seus lobistas, essas fontes
não necessitam mais de subsídios, depois invariavelmente pagos pelo consumidor
na conta de luz.
A rede elétrica brasileira já está dentro
dos padrões necessários para gerenciar o equilíbrio entre, de um lado, a estabilidade
da geração e, de outro, o impacto ambiental. Desde que a gestão seja
competente.
É preciso desmontar a bomba fiscal dos
precatórios
Valor Econômico
Se nada for feito, passivo atingirá R$
199,9 bilhões em 2027
O governo Lula corre contra o tempo para
desmontar a bomba-relógio armada pelo antecessor Jair Bolsonaro com a PEC dos
Precatórios. Apesar de estar programada para explodir em 2027, ela demanda o
encontro de uma solução em breve, para sinalizar o controle das contas públicas
quando o próximo Plano Plurianual (PPA) for divulgado. O novo PPA, que precisa
ser entregue até o fim deste mês, vai cobrir o período de 2024 para terminar
exatamente em 2027.
Também chamada de PEC do calote, a PEC dos
Precatórios foi articulada pelo ex-ministro da Economia Paulo Guedes, em fins
de 2021, para abrir espaço para os gastos públicos no ano seguinte, quando
Bolsonaro disputaria a reeleição. Guedes afirmou que um “meteoro fiscal” iria
atingir o país em 2022 ao constatar que deveria pagar R$ 90 bilhões em
precatórios. Na verdade, era até previsível que a covid-19, a digitalização da
Justiça e medidas de ajuste nos gastos sociais resultassem no aumento dos
precatórios, que são dívidas líquidas e certas da União, transitadas em julgado
- e Guedes havia sido avisado disso.
A PEC colocou um teto para o pagamento de
precatórios em 2022 e jogou os valores devidos para quitação escalonada nos
anos seguintes, juntamente com as dívidas de cada ano, uma autorização que
inicialmente valia até 2036 e depois foi reduzida para até 2026 pelo Senado.
Desse modo, deverá ser paga em 2027 toda a totalidade devida nesse período de
adiamentos. Com isso, o governo Bolsonaro abriu espaço no Orçamento para tornar
o Auxílio Brasil de R$ 400 permanente e distribuir outros gastos, mesmo sem
fonte fixa de recursos.
Em 2021, o saldo de precatórios a pagar era
ligeiramente superior a R$ 100 bilhões. Ao fim de 2022, estava perto de R$ 142
bilhões. Dados do governo mostram que o passivo de precatórios não pagos foi de
R$ 21,9 bilhões em 2022, chegará a R$ 68,4 bilhões em 2024 e alcançará R$
199,99 bilhões em 2027, se nada for feito antes, inviabilizando o Orçamento
daquele ano. Ou seja, se esse valor tiver que ser totalmente pago em 2027 não
haverá espaço para as despesas discricionárias, sem recursos para investimento
e custeio da máquina pública. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU) e a
Instituição Fiscal Independente (IFI), o pagamento de precatórios poderá causar
déficit primário de 1% a 2% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2027.
Daí a corrida por uma saída. Vários setores
do governo estudam soluções. O Ministério da Fazenda e a Advocacia-Geral da
União (AGU) preparam nova resolução para permitir o uso de precatórios no
pagamento de outorgas e de débitos inscritos na dívida ativa e na compra de
imóveis da União. A PEC dos Precatórios trazia essa permissão.
O Brasil tem ampla experiência com esse
tipo de negociação. As privatizações do fim do século passado foram feitas com
as então chamadas moedas podres, títulos de dívida do governo negociados com
deságio no mercado secundário. O comprador do Banerj, por exemplo, o Itaú,
pagou cerca da metade do valor pedido usando essas moedas. Mas essas operações
ficaram com má fama e se chegou a dizer que estatais foram vendidas a “preço de
banana”.
O fato é que o mecanismo não foi usado no
governo Bolsonaro e foi suspenso para reavaliação no início do governo Lula. A
espanhola Aena havia tentado utilizar precatórios como parte do pagamento da
concessão de onze aeroportos, entre eles o de Congonhas, em agosto de 2022,
feito pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Mas desistiu neste ano. A
XP Infra foi outra empresa que abriu mão de usar os precatórios e pagou em
dinheiro a outorga de R$ 141 milhões pela concessão dos aeroportos Campo de Marte
e Jacarepaguá, dedicados à aviação executiva. A Rumo precisou entrar na Justiça
para utilizar os títulos no pagamento de uma concessão de ferrovia. Mas foram
usados precatórios no leilão de 5G.
Outra alternativa em estudo é classificar
os precatórios como despesa financeira, o que excluiria seus valores do
resultado primário. A saída chegou a ser cogitada por Guedes, que recuou porque
foi chamada de manobra para escapar do teto de gastos. A contabilização dos
precatórios como despesa financeira teria que ser proposta como PEC, o que
significa ser aprovada pelo Congresso. Para vencer eventuais resistências,
avalia-se contabilizar somente o estoque de precatórios como despesa financeira
com a justificativa de que é herança do governo anterior. Já o futuro fluxo
anual continuaria sendo classificado e pago como despesa primária, entrando na
meta fiscal.
Não há um caminho fácil. O uso dos precatórios como moeda em concessões e leilões não causa perdas ao governo, mas sim ao detentor original dos títulos se for negociada com deságio elevado, o que depende da confiança no pagamento pontual pelo governo. De toda forma, não é solução para o estoque total, mas faz a fila andar. A saída contábil depende da boa vontade do Congresso, o que pode significar mais barganhas políticas.
Juízes e seus parentes
Folha de S. Paulo
STF põe imparcialidade em risco ao formar
maioria contra regra de impedimento
Segundo o Código de Processo Civil, juízes
não podem atuar em processos nos quais "figure como parte cliente do
escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou
afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau", mesmo que a parte
seja representada por outro escritório.
No sábado (19), contudo, o
Supremo Tribunal Federal formou maioria para derrubar esse dispositivo moralizador.
Ainda permaneceria válido somente o impedimento do magistrado em casos que
envolvam diretamente seus familiares —um princípio republicano elementar.
A decisão pode beneficiar ministros que têm
esposas e filhos na advocacia, casos de Cristiano Zanin, Gilmar Mendes, Dias
Toffoli, Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin.
No momento, o processo está suspenso por um
pedido de vista. Seis magistrados votaram a favor da inconstitucionalidade da
restrição (Gilmar, Fux, Zanin, Toffoli, Moraes e Kássio Nunes Marques).
O tema foi levado ao STF há cinco anos pela
Associação dos Magistrados Brasileiros, sob a justificativa de que a norma
seria excessivamente restritiva, ao limitar a atuação de parentes de juízes em
escritórios de advocacia sem evidenciar, no entanto, a parcialidade.
A Procuradoria-Geral da República e a
Advocacia-Geral da União se manifestaram a favor da permanência do dispositivo.
Setores da magistratura consideram a regra
demasiadamente proibitiva, mas sua mera derrubada tampouco contempla as nuances
necessárias para lidar com os processos concretos.
O ministro Luís Roberto Barroso, ao votar a
favor da restrição, sugeriu condicionantes para a aplicação: caberia às partes
suscitar a existência de um impedimento em prazo razoável; caso contrário, não
se poderia imputar óbice ao juiz por fato desconhecido.
Cabe ao Supremo trazer mais objetividade às
regras de impedimento, e, ao Congresso, aperfeiçoar a lei. Limitações bem
demarcadas são necessárias, mas não é o que se vê na prática. Pesquisas mostram
que são os próprios julgadores que declaram se são impedidos ou não, quando
questionados.
Mais grave: em uma análise dos pedidos de
impedimento ou suspeição no STF em mais de três décadas, constatou-se que todos
os questionamentos foram arquivados por ministros da corte.
Está em jogo a imparcialidade do juiz,
crucial para separar o público do privado num país onde é comum confundir as
duas esferas.
É preciso adotar regras ponderadas, até
para evitar que partes as utilizem para direcionar casos a determinados magistrados.
Restrições excessivas não são bem-vindas,
mas diluir o controle sobre as teias de interesse entre juízes e partes
tampouco é cabível.
Quilombolas em risco
Folha de S. Paulo
Contagem inédita da população deve orientar
políticas fundiária e de segurança
Em contagem inédita, o censo deste
ano apontou que os quilombolas são 1.327.802 no país. Identificada
com base em autorreconhecimento, essa população, ainda hoje sob ameaça de
violências diversas, é semelhante à de capitais como Belém e Porto Alegre.
Tais comunidades se formaram, nos tempos da
colonização, a partir da resistência de negros trazidos à força para cá desde a
década de 1570 —em mais de três séculos de escravidão, cerca de 5 milhões
vieram do continente africano.
Nos últimos
dez anos, ao menos 30 líderes quilombolas foram assassinados,
segundo a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). Um novo
caso, particularmente covarde e brutal, chamou a atenção para os conflitos nos
quais essa parcela dos brasileiros está envolvida.
Na noite de quinta-feira (17), Bernadete
Pacífico, 72, conhecida como Mãe Bernadete, líder do quilombo Pitanga dos
Palmares e coordenadora nacional da Conaq, foi morta a
tiros dentro do terreiro de candomblé que liderava na cidade de Simões Filho,
na região metropolitana de Salvador.
É imprescindível que as investigações em
torno desse crime perseverem além da comoção imediata que ele provocou.
Bernadete e família relatavam ameaças há anos —ela o fez em julho deste ano à
presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Rosa Weber.
Quilombolas estão sujeitos a conflitos pela
posse de terras e até a represálias de criminosos como traficantes de drogas.
Apenas 12,6% deles, afinal, vivem em territórios oficialmente titulados.
A Bahia, ponto de desembarque de escravos,
é o estado com maior número de pessoas dessa população, 397,1 mil; em seguida
vem o Maranhão, com 269,1 mil —juntos, os dois concentram pouco mais da metade
dos quilombolas no país, enquanto o Nordeste tem 68,2%.
Eles estão presentes em 1.696 dos 5.570
municípios brasileiros (30,4%) e em todas as regiões. Só 326 municípios, porém,
dispõem de áreas regularmente delimitadas.
O poder público dispõe pela primeira vez na história de uma contagem desse contingente e de sua distribuição no território nacional. Trata-se de informação preciosa, a ser complementada por mais dados, para a formulação de políticas capazes de mitigar a insegurança fundiária, a pobreza e a violência que ameaçam tais comunidades.
Está na hora de votar o arcabouço fiscal
O Estado de S. Paulo
Mesmo com todos os seus defeitos, o projeto
do governo é um passo necessário para recuperar a credibilidade do País. Não
pode, pois, ser usado como instrumento de chantagem política
A pauta de votações na Câmara viveu
momentos de completa paralisia nas últimas semanas. Prometida para o início
deste mês, a apreciação do arcabouço fiscal proposto pelo governo Lula está
empacada, à espera da conclusão das negociações sobre uma reforma ministerial
bastante peculiar. Há semanas, sabe-se que o Executivo quer alocar os deputados
André Fufuca (PP-MA) e Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) na Esplanada dos
Ministérios. O governo, no entanto, até agora não definiu quais Ministérios
eles devem assumir e já não descarta recriar pastas para acolher os novos
aliados do Centrão.
A exemplo do que costuma fazer nessas
situações, o presidente Lula da Silva tem renovado o arsenal de desculpas para
adiar a decisão – o processo de substituição de Daniela Carneiro (União-RJ) por
Celso Sabino (União-PA) no Ministério do Turismo, por exemplo, levou semanas
para se concretizar. Desta vez, Lula viajou à África do Sul para participar da
reunião do Brics e levou com ele o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. De lá,
Lula emendará encontros em Angola e São Tomé e Príncipe.
Enquanto a novela ministerial não é
concluída, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tem alegado falta de
consenso para não incluir o arcabouço na pauta de votações da Casa. Sabe-se
muito bem que o problema não é esse. Desde que aprovou a reforma tributária, o
Centrão decidiu sentar sobre os projetos de interesse do governo até que a
fatura seja paga – nesse caso, os cargos e as emendas que lhe foram prometidos.
Para justificar a letargia e valorizar seu
papel, Lira recorreu até mesmo a uma entrevista de Haddad ao jornalista
Reinaldo Azevedo, em que o ministro reconheceu o enorme poder que a Câmara
conquistou nos últimos anos e disse que os deputados não deveriam usálo para
“humilhar” o Senado e o Executivo. Haddad pode não ter escolhido bem suas
palavras, mas não disse nenhuma novidade.
A carapuça, no entanto, serviu
perfeitamente a Lira, que no mesmo dia reclamou de “manifestações enviesadas e
descontextualizadas”, afirmando que elas não contribuem para o diálogo e a
construção de pontes. Desde então, nem os novos ministros foram formalmente
anunciados nem a pauta de votações da Câmara foi destravada – especialmente os
itens da agenda econômica. Além do próprio arcabouço, os deputados têm
resistido a apreciar a medida que taxaria os fundos offshore. Sem o arcabouço,
a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) tampouco avança, muito menos o
Orçamento de 2024.
É um jogo político em que todos os lados
perdem e que não gera nada além de enfado. Já passou da hora de os deputados
desistirem dessa estratégia chantagista e retomarem os trabalhos na Câmara. É
do interesse de toda a sociedade, inclusive dos próprios deputados, que a
tramitação do arcabouço fiscal seja concluída de uma vez. Afinal, sem o
arcabouço, não haverá espaço fiscal para a execução de várias despesas, entre
elas as próprias emendas parlamentares.
O Executivo, por sua vez, precisa parar de
se iludir quanto à sua própria força. O governo não tem votos suficientes para
aprovar projetos importantes sem os votos do Centrão, e foi o governo que
acenou com cargos para conquistar seu apoio. Se Lula não tem intenção de dar
Ministérios a Fufuca e Costa Filho, que assuma o custo político dessa decisão
de uma vez. Não é possível que o País tenha de assistir a mais uma semana de
disputas fratricidas entre os atuais ministros para preservar seus próprios
cargos.
As relações entre governo e Legislativo não
são sempre harmoniosas, mas há que respeitar certos limites nas negociações. O
arcabouço não traz garantias de uma política fiscal austera, pois permite o
aumento real de gastos em qualquer cenário de arrecadação. Suas metas são
desafiadoras, mas o projeto, mesmo com todos os senões, é um passo
indispensável rumo à recuperação da credibilidade do País. A sociedade pagou um
alto custo quando o governo de Dilma Rousseff abriu mão de uma âncora fiscal
crível. Diante de sua relevância, portanto, o arcabouço não pode mais ser usado
como se fosse berinjela no feirão do Centrão.
O alcance da crise chinesa
O Estado de S. Paulo
À beira de uma turbulência sem precedentes
nos seus setores financeiro e imobiliário, China escamoteia dados cruciais
sobre os riscos para sua economia e, por tabela, para a do mundo
A gigante do setor incorporador China
Evergrande pediu recuperação judicial às autoridades dos Estados Unidos no
último dia 18. Nada indica que se trate de um drama corporativo isolado, mas do
prenúncio de uma crise financeira sem precedentes na China e com potencial de
irradiar-se pelo planeta com força proporcional à de 2008. O quadro é altamente
preocupante. Reflete a incapacidade de Pequim enfrentar mazelas há muito
conhecidas nos seus mercados doméstico e externo. De outro lado, expõe a justa
desconfiança de investidores sobre o desempenho econômico chinês dado o gradual
aumento da censura de estatísticas desde 2012.
Alertas adicionais têm sido disparados nas
bolsas de valores de Xangai e Hong Kong, com a redução de exposição de
investidores estrangeiros aos ativos da China. Mais recentemente, as notícias
sobre a suspensão de pagamento de compromissos externos pela Country Garden,
concorrente da Evergrande, e pela Zhongrong International Trust,
comercializadora de produtos financeiros, agravaram a percepção de risco de
desmonte da indústria incorporadora e, a reboque, do setor financeiro do país.
As três companhias, assim como concorrentes menores, estão em franca crise há
anos.
Ambos os setores estiveram no centro da
estratégia de crescimento econômico no pós-crise de 2008. Ao centrar-se no
impulso ao mercado doméstico, a construção civil e a venda de imóveis ganharam
peso como meios de atrair investimentos, de mover a economia do país e de girar
parcelas significativas do setor financeiro. O equívoco dessa política
incentivada por Pequim é visível nos milhões de imóveis vazios, particularmente
nas chamadas cidades fantasmas, e na queda acentuada de seus valores.
Ao colapso desse modelo se soma o fracasso
do governo de Xi Jinping em fazer as mudanças e adaptações mais do que
necessárias. As medidas anunciadas nos últimos anos mostraram-se insuficientes
para evitar as crises financeira, imobiliária e no consumo, que se
retroalimentam. Nada disso seria preocupante não fosse a China responsável por
35% da atividade global neste ano, conforme estimativa do Fundo Monetário
Internacional (FMI), e uma das economias mais expostas ao mercado externo.
Outro fator acentua as preocupações. Por
maior que seja sua abertura desde os tempos de Deng Xiaoping e por mais
atraente que tenha se tornado aos grandes investidores nas últimas décadas, a
China continua a portar-se como uma imensa caixa-preta. Há rara clareza sobre o
quadro fiscal de governos e estatais provinciais, assim como a ação dos shadow
banks, os organismos não financeiros que há anos prestam socorro a essas
instituições e às do setor imobiliário. A opacidade abarca também milhares de
estatísticas gradualmente censuradas ao público desde a ascensão de Xi Jinping.
Antes apenas alvo de desconfiança, os dados econômicos tornaram-se escassos
demais no momento em que a China se converte em epicentro de uma potencial
crise global.
Pequim insiste há anos em responder ao
mundo como se fosse uma economia menor e isolada. Somam-se incertezas sobre os
resultados de seus planos mais recentes para superar as crises que se
multiplicam em seu território, uma vez que os anteriores falharam e há maior
desconhecimento sobre a dimensão delas. O último corte da taxa básica de juros
e as recentes medidas tomadas pelo regulador do mercado de valores para “elevar
a confiança” dos investidores dificilmente acalmarão os mercados e suspenderão
especulações.
A frustração da perspectiva de expansão da
atividade do país em apenas 3,5% neste ano, calculada pelo FMI, está dada,
assim como o ceticismo sobre a performance da economia mundial nos próximos
anos, sobretudo das nações mais dependentes do mercado chinês.
A China se orgulha de ter trilhado um caminho próprio para se tornar uma potência global, mas aparentemente os limites desse modelo foram atingidos. O governo chinês, fiel à cartilha autoritária, prefere censurar estatísticas e postergar medidas nevrálgicas para enfrentar seus problemas. Se não quiser ser visto como um “tigre de papel” – aquele que, segundo Mao, referindo-se aos EUA, só é poderoso na aparência –, a China precisa mostrar que entendeu o tamanho de sua crise.
Saneamento capta em outro patamar
O Estado de S. Paulo
Emissões movimentam R$ 9,3 bilhões e comprovam mudança em investimentos no setor após marco regulatório
As bem-sucedidas captações de recursos das
empresas privadas de saneamento Aegea e Iguá, que movimentaram o setor financeiro
nas últimas semanas, comprovam o potencial de investimentos do segmento de água
e esgoto. Juntas, as duas companhias captaram R$ 9,3 bilhões. A forte demanda
pelos títulos superou R$ 14,5 bilhões e ratificou a confiança dos investidores
em uma fase mais favorável à infraestrutura de saneamento básico.
Com o lançamento de R$ 3,8 bilhões em
debêntures no fim de junho, a Iguá, que opera em seis Estados, quebrou o
recorde de valor em emissões incentivadas de infraestrutura no País. Neste mês,
a Aegea, presente em 13 Estados, ultrapassou a marca com captação semelhante,
no valor de R$ 5,5 bilhões. No caso da Aegea, a emissão rendeu ainda comissão
de quase R$ 1 bilhão aos sete bancos que coordenaram a operação, um feito raro
no mercado de capitais nacional, como mostrou a Coluna do Broadcast.
As cifras parrudas mostram que os
empreendimentos em saneamento básico ingressaram de fato em uma nova etapa, o
que só foi possível depois que o marco regulatório, aprovado há três anos, deu
segurança jurídica aos investimentos. A partir de então o setor, antes
monopolizado por estatais estaduais, muitas vezes ineficientes e onerosas, foi
apresentado à concorrência. Em São Paulo, a simples adesão recente do Município
à Unidade Regional de Serviços de Abastecimento de Água Potável e Esgotamento
Sanitário, passo importante para a privatização da Sabesp, fez o valor de
mercado da companhia subir R$ 2,7 bilhões em dois dias.
O novo marco legal do saneamento está dando
bons resultados. Ao contrário do que alegam os defensores da eterna dependência
estatal, não significa a ampla e irrestrita privatização do setor. A quebra do
monopólio apenas impôs a régua da capacitação para definir quem permanece no
jogo. Fica quem tem competência e fôlego financeiro para arcar com as obras necessárias
e tirar o País da constrangedora condição em que 100 milhões de brasileiros não
têm acesso à rede de esgoto e 35 milhões não têm água tratada.
Pesquisa recente da Associação e Sindicato
Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto
(Abcon), em parceria com a KPMG, mostrou que, para prover de saneamento básico
toda a população brasileira, são necessários R$ 893,3 bilhões em investimentos.
Não há tempo a perder diante do prazo legal para universalizar os serviços de
água e esgoto, que termina em dez anos. O estudo projetou que, mantido o ritmo
de expansão observado nos últimos cinco anos, somente em 2089 a meta seria
alcançada.
Não dá para esperar 66 anos para garantir a
todos os brasileiros o mínimo de dignidade na vida cotidiana, com água tratada
na torneira e sem a convivência com valões de esgoto a céu aberto. Essa é uma
questão de saúde pública. Cabe ao governo cuidar para que a modicidade
tarifária seja uma prioridade respeitada pelo mercado. Com boa qualidade e preço
justo, tanto faz se o serviço é prestado por empresa privada, pública ou por
uma parceria entre elas.
O que esperar das eleições latinas
Correio Braziliense
Políticos ganham e perdem eleições;
candidatos de visões antagônicas podem ascender ao poder, desde que obtenham o
respaldo das urnas
Bernardo Arévalo, eleito presidente da
Guatemala no domingo, rompeu o longo predomínio da classe política tradicional
daquele país, com 58% dos votos. A ex-primeira-dama Sandra Torres, sua
adversária, perdeu a disputa pela terceira vez consecutiva, com 37% dos votos.
Arevalo é um presidente progressista, eleito com a bandeira da mudança, por um
eleitorado insatisfeito com a deterioração das instituições políticas e o
autoritarismo do governo guatemalteco.
No Equador, numa das eleições mais
violentas de sua história, Luísa González e Daniel Noboa vão disputar o segundo
turno das eleições, em 15 de outubro. González era favorita nas pesquisas,
liderou a disputa entre os oito candidatos, com 33% dos votos. É a candidata
apoiada pelo ex-presidente esquerdista Rafael Correa (2007-2017), um dos
principais aliados do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na América do Sul.
Noboa, com 24%, foi a grande surpresa do primeiro turno. É filho de Álvaro
Noboa, que perdeu para Correa em 2006.
No caso do Equador, a disputa para
substituir o atual presidente Guillermo Lasso teve como pano de fundo a espiral
de violência que tomou conta do país, ao lado dos problemas econômicos, que são
graves. Quito e outras cidades do país são entrepostos para envio de drogas
para a Europa. Foi uma campanha traumatizada pelo assassinato de Fernando Villavicencio,
executado por traficantes colombianos que denunciara. Christian Zurita, que o
substituiu, foi o terceiro mais votado, com 16% dos votos. Seu apoio a um dos
candidatos pode decidir a eleição.
Equador e Guatemala vivem os mesmos
problemas da maioria dos países da América espanhola. Muita corrupção, avanço
do tráfico de drogas, crise econômica e uma polarização direita versus
esquerda, que coleciona fracassos de ambas as partes, quando no poder. A
globalização teve grande impacto nesses países, que agora são palco de uma
guerra comercial entre os Estados Unidos e a China. Manteve-se o atraso
econômico, e as desigualdades aumentaram; o neoliberalismo fracassou nesses
países, mas o velho nacionalismo também não oferece as respostas adequadas.
Esse é um problema para a esquerda
latino-americana, que capitaliza a insatisfação das camadas populares com a
globalização, mas é incapaz de dar oferecer saídas exequíveis aos novos
problemas. A esquerda é prisioneira de paradigmas ultrapassados, entre os quais
o antiamericanismo, cujos eixos principais são a Revolução Cubana e o
bolivarianismo da Venezuela. Um olhar sobre o Chile de Salvador Allende, que
completa 50 anos do golpe do general Augusto Pinochet, pode lançar luzes para
sua renovação.
Salvador Allende valorizava o processo
democrático e sabia da necessidade de construir consensos. Enfrentou,
simultaneamente, uma oposição reacionária e as contradições de seu próprio
governo, dividido entre forças de esquerda moderadas e radicais. A esquerda no
poder via a garantia de liberdade, o respeito às instituições republicanas e o
império da lei como um instrumento de conquista de poder e não um fim em si
mesmo. Passado meio século daquele momento difícil, esses princípios ainda se
mostram valorosos.
Políticos ganham e perdem eleições; candidatos de visões antagônicas podem ascender ao poder, desde que obtenham o respaldo das urnas. Mas, no pêndulo ideológico que tem definido a história latino-americana nas últimas décadas, os raros períodos virtuosos foram marcados por governantes que prezaram a estabilidade política, a obediência à norma constitucional e um modelo econômico que atraia investimentos e diminua a profunda desigualdade social. Isso é que se espera dos vencedores do voto popular, independentemente do viés ideológico.
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