O Globo
Para pontuar bem no Enem, é preciso rezar
pela cartilha do governo, e o aluno se adestra para escrever o que os
corretores querem ler
Está na Constituição Federal (art. 5º, VIII):
Se vale para o serviço militar, o exercício
profissional, o trabalho ao sábado etc., por que não para o Enem? Afinal, se
quiserem acertar algumas das questões, muitos terão de se manifestar
contrariamente àquilo em que acreditam.
Há quem ache que o agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo. Há quem veja no agro um ogro, o bicho-papão que provoca chuvas de veneno e violência (concreta e simbólica) contra a pessoa do pobre camponês. O tema permite ambas as abordagens, mas só os do segundo grupo (que ainda usam a palavra “camponês”) estarão contemplados no gabarito oficial.
Uma questão bem formulada proporia a
discussão de múltiplos pontos de vista, pondo à prova a capacidade de
compreender e articular argumentos contrastantes. Mas não: para pontuar bem, é
preciso rezar pela cartilha do governo de turno, e o aluno se adestra para
escrever o que os corretores querem ler e acionar o botão que lhe dará sua
recompensa — ainda que não corresponda ao que ele pensa.
Mais que avaliar o nível de conhecimento ou a
capacidade de análise crítica — fundamentais para o sucesso no ensino superior
—, o exame se empenha em selecionar os já catequizados ou passíveis de
catequização — sem deixar escapar a oportunidade de catequizar um pouco mais.
A palavra “molambo” é racista? Etimológica,
cultural e historicamente, não. Chegou até nós por meio da língua quimbunda, e
sempre significou pano velho, farrapo — prestando-se, e muito bem, a sentidos
figurados. Machado
de Assis fala em “um triste molambo de mulher”; o samba-canção de
Augusto Mesquita diz que a amada ficou “pra impedir que a loucura/fizesse de
mim/um molambo qualquer”. Molambento e esmolambado tornaram-se depreciativos
para pobres, maltrapilhos — não necessariamente afrodescendentes. Mas o Enem
endossa a tese do cunho racial — perdendo a chance de discutir polissemia e uso
simbólico da linguagem.
Uma saída para o irresistível apelo à
doutrinação seria fazer cadernos de prova conforme os matizes ideológicos. O
estudante escolheria entre a prova amarela (de direita), vermelha (de esquerda)
ou azul (liberal) — e as questões seriam corrigidas por bancas alinhadas com
cada uma dessas vertentes. Assim, para ter acesso à universidade, nem o jovem
conservador precisaria se ajoelhar no milho (ou na soja) e demonizar o
agronegócio, nem o progressista se submeter a chamar de “revolução” o golpe de
1964 ou o liberal endossar que “entre o masculino e o feminino só existam
mínimas diferenças” (e pudesse propor um placar mais apertado para esse 7 x 1
da cultura sobre a biologia).
Até lá, serão males menores exigir que o
aluno saiba o significado de landfills, leftovers e perishables enquanto o
responsável pelo conteúdo de ciências humanas não diferencia “hora” e “ora”. Ou
que demonstre domínio da escrita — e o enunciado da redação tartamudeie com
“enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado”.
(Nas questões subjetivas de múltipla escolha,
bem podia haver opção equivalente ao voto em branco. Assim, ninguém precisaria
tentar adivinhar o que passa pela cabeça dos “especialistas”, que sabem das
canções do Caetano mais que o próprio Caetano.)
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