O Globo
O estudante não é obrigado a concordar com o
ponto de vista de nenhum autor para acertar qualquer questão
Tortura ideológica, manipulação de
informações, projeto de alienação, tentativa de doutrinação. Essas foram
algumas das expressões usadas para descrever o Enem aplicado no último domingo.
Grupos se articularam pela anulação de questões supostamente enviesadas. Até um
divertido vídeo de Caetano
Veloso em dúvida numa questão da prova motivou críticas ao exame. O
Enem tem problemas, sem dúvida, mas um debate menos rasteiro sobre ele demanda
informações e nuances.
Antes de tudo, vale lembrar que o Enem é uma prova, e ninguém muda sua visão de mundo ao resolver 180 questões em dois dias. Mas, sim, o Enem é uma avaliação com características claras e um perfil crítico, que, historicamente, sempre abordou assuntos como exclusão, preconceito, desigualdade e minorias sociais. Cada concurso público tem um perfil. O Enem é assim. Há 25 anos.
Na parte de ciências humanas, cada questão é
formada por pelo menos um texto de apoio, às vezes mapas ou gráficos, às vezes
fragmentos assinados por autores mais conhecidos ou menos. Neste ano,
apareceram nomes como Sartre, Foucault, Adorno e Horkheimer, Mílton Santos e
Paulo Freire. Noutras edições, de Karl Marx a Adam Smith, passando por
escritores contemporâneos, já teve um pouco de tudo. Em cada um desses textos,
há opiniões e análises, nem sempre boas ou bem explicadas, algumas de fato
discutíveis. Mas essas são as exceções, e não a regra. Basta olhar as provas.
E aqui vem um ponto fundamental: o estudante
não é obrigado a concordar com o ponto de vista de nenhum autor para acertar
qualquer questão. Afirmar isso é desconhecimento técnico. Na verdade, o Enem
não é sequer formulado a partir dos conteúdos programáticos. A “matéria da
prova” é apenas instrumento para avaliar habilidades e competências, que são as
bases do complexo cálculo da nota, realizado por uma metodologia chamada Teoria
de Resposta ao Item.
A esse respeito, a prova de ciências humanas
tem demandado, acima de tudo, habilidades de interpretação, uma vez que, em boa
parte das questões, o principal desafio do estudante é, a partir do que
aprendeu em sala de aula, demonstrar que consegue compreender as ideias do
autor. Num mundo com um fluxo tão intenso de informações — muitas delas falsas
—, é imprescindível que o Enem cobre questões ligadas a essa habilidade, pois
isso força as escolas a desenvolver essa proficiência no estudante ao longo da jornada
escolar. Somente assim esse jovem se tornará um cidadão capaz de entender
informações, comparar pontos de vista e, assim, formular suas próprias
opiniões. Não é essa uma das funções da escola, afinal?
Na prova de redação, a lógica é a mesma:
temas críticos, muitas vezes dirigidos a minorias sociais, injustiças,
exclusões, desigualdades. O aluno deve explicar o problema e sugerir uma
solução, revelando, assim, a capacidade analítica e propositiva esperada de um
cidadão que concluiu o ensino médio, algo hoje inacessível a praticamente
metade da população brasileira. Temas como violência contra a mulher,
intolerância religiosa, racismo, exclusão de surdos, estigmas de doenças
mentais, desvalorização de povos tradicionais e invisibilidade do trabalho
doméstico não deveriam gerar polêmica. Mas geram. Isso diz muito mais sobre o
país que sobre a prova.
O Enem tem inúmeros problemas, não só
pedagógicos, mas também de operação, logística, custo e segurança. Pouco se
discute o baixíssimo nível médio dos candidatos que fazem a prova,
especialmente depois dos estragos brutais na escolaridade causados pela pandemia.
Corrigir a redação do Enem é um choque de realidade que pouca gente imagina. E
a sociedade está cometendo um erro que o aluno no Enem deve evitar a qualquer
custo quando escreve sua dissertação: tangenciar o tema, desviar o debate do
que realmente importa.
*Rafael Pinna é professor e diretor escolar
Um comentário:
Muito bom o artigo.
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