O Estado de S. Paulo
Em seu afã global de afirmação, esta esquerda particularista procura extrapolar sua visão limitada a todo o planeta. O resultado é risível, não fosse trágico
A discussão sobre o significado da esquerda –
ou das esquerdas – é um imperativo moral e político, pois sob o manto de sua
mensagem universal as maiores barbaridades foram cometidas. E refiro-me à
esquerda marxista em suas várias vertentes, com a honrosa exceção da esquerda
social-democrata, considerada por essa mesma esquerda como de direita. A
esquerda proclama sua bandeira ser a justiça social, quando em seu nome
inúmeras injustiças foram cometidas, a exemplo da União Soviética, do Holodomor
na Ucrânia, da China, do Camboja e de Cuba.
A esquerda elaborada por Marx e Engels, via seus prolongamentos em Lenin, Trotsky, Stalin e Mao, estava baseada na ideia de uma luta de vida e morte entre a “burguesia” e o “proletariado”, produto ela mesma das contradições internas do regime capitalista de produção, a caminho de sua própria ruína. A salvação da humanidade seria tarefa de uma classe redentora, o proletariado. No entanto, a crise final do capitalismo não se consumou, tendo dado lugar a crises periódicas, denominadas por Schumpeter de “destruição criativa”, de cujo desenvolvimento emergiria uma retomada do capitalismo numa escala maior e mais abrangente. Contudo, num país social e economicamente atrasado, formulou Lenin a teoria do partido revolucionário, encarregado de levar a cabo aquilo que a classe proletária seria incapaz de realizar. Em lugar do proletariado, a pequena burguesia letrada torna-se a nova vanguarda.
Com a evolução do capitalismo, alargando seus
horizontes graças a instituições democráticas, uma participação maior dos
trabalhadores no produto do trabalho e do capital, instaurando o Estado
Democrático de Direito, a proposta de uma esquerda revolucionária foi
sepultada. A luta de classes no sentido marxista do termo desaparece, e é
substituída pela genérica oposição entre “opressores” e “oprimidos”, sob cuja
denominação tudo cabe, a gosto do freguês.
A esquerda se mostrou totalmente sem rumo. Na
América Latina, porém, surgiu uma novidade, instaurada por Hugo Chávez, segundo
o qual a conquista do poder não se faria mais por um ato de violência, mas por
eleições. A democracia seria, assim, instrumentalizada com o intuito de solapar
os seus próprios alicerces, com a instauração final de uma ditadura.
Atualmente, surgiu uma nova acepção da
esquerda, a da esquerda identitária, voltada num primeiro momento para a
afirmação do direito das minorias, transformando-se gradativamente numa nova
forma de oposição entre essas minorias e os outros, como se só ela contasse a
partir de agora. O outro passaria a ser eliminado, sendo sua expressão
denúncias do tipo “racista”, “branco”, “heterossexual” e “dominador”. Não valem
mais a pessoa, a individualidade, em seu conhecimento e cultura próprios, mas a
cor da pele e a orientação sexual. Abandona-se completamente a noção marxista
de subversão do capitalismo, e é substituída por ações identitárias, tidas
então por progressistas. Trata-se de uma luta interna por poder, prestígio e
dinheiro. É a afirmação da particularidade em detrimento da universalidade.
Marx, literalmente, deve estar se remoendo em sua tumba. Lenin quase saiu
correndo de seu mausoléu.
Ocorre que a esquerda identitária nasce nos
campi americanos, regiamente financiados por empresas privadas. O seu contexto
histórico, aliás, é totalmente diferente do da sociedade brasileira, na medida
em que lá inexistiu praticamente a mestiçagem, enquanto aqui é predominante,
configurando mais de 40% da população brasileira, segundo o IBGE. Por outro
lado, a luta pela emancipação feminina, pela igualdade de direitos – traço
definidor deste movimento nas décadas de 70 e 80 do século passado, de afirmação
universal da mulher –, transforma-se em ações identitárias e particularistas.
Entretanto, esta esquerda particularista, em seu afã global de afirmação,
procura extrapolar sua visão limitada a todo o planeta. O resultado é risível,
não fosse trágico.
Escolheu como protagonista histórico o Islã
mais radical, e o seu apoio ao Hamas e ao Irã é a sua mais cruel expressão. Em
lugar do “proletariado”, emergem os “terroristas”, cuja missão consistiria em
extirpar os “opressores”. O seu pensamento é dito “decolonial”, mas nada mais é
do que o descalabro conceitual de fanáticos que se recusam ao diálogo. A
violência torna-se algo elogiável, mesmo incentivado. No século passado,
Eldridge Cleaver, expoente dos Black Panthers, considerava um ato
revolucionário estuprar mulheres brancas, treinando nos guetos, com mulheres
negras. Atualmente, o mutismo das feministas de esquerda acerca do sequestro e
do estupro de mulheres judias é escandaloso. Da mesma maneira, o silêncio é
total acerca da ablação do clitóris em meninas na África muçulmana. No Irã,
mulheres são assassinadas e torturadas por suas vestimentas consideradas
inadequadas por homens religiosos. E a esquerda identitária compactua com todas
essas atrocidades. Uma esquerda colonizada.
*Professor de Filosofia na Ufrgs
Um comentário:
Eu sou de esquerda e não compactuo com nada disso.
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