segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Denis Lerrer Rosenfield * - A esquerda perdida

O Estado de S. Paulo

Em seu afã global de afirmação, esta esquerda particularista procura extrapolar sua visão limitada a todo o planeta. O resultado é risível, não fosse trágico

A discussão sobre o significado da esquerda – ou das esquerdas – é um imperativo moral e político, pois sob o manto de sua mensagem universal as maiores barbaridades foram cometidas. E refiro-me à esquerda marxista em suas várias vertentes, com a honrosa exceção da esquerda social-democrata, considerada por essa mesma esquerda como de direita. A esquerda proclama sua bandeira ser a justiça social, quando em seu nome inúmeras injustiças foram cometidas, a exemplo da União Soviética, do Holodomor na Ucrânia, da China, do Camboja e de Cuba.

A esquerda elaborada por Marx e Engels, via seus prolongamentos em Lenin, Trotsky, Stalin e Mao, estava baseada na ideia de uma luta de vida e morte entre a “burguesia” e o “proletariado”, produto ela mesma das contradições internas do regime capitalista de produção, a caminho de sua própria ruína. A salvação da humanidade seria tarefa de uma classe redentora, o proletariado. No entanto, a crise final do capitalismo não se consumou, tendo dado lugar a crises periódicas, denominadas por Schumpeter de “destruição criativa”, de cujo desenvolvimento emergiria uma retomada do capitalismo numa escala maior e mais abrangente. Contudo, num país social e economicamente atrasado, formulou Lenin a teoria do partido revolucionário, encarregado de levar a cabo aquilo que a classe proletária seria incapaz de realizar. Em lugar do proletariado, a pequena burguesia letrada torna-se a nova vanguarda.

Com a evolução do capitalismo, alargando seus horizontes graças a instituições democráticas, uma participação maior dos trabalhadores no produto do trabalho e do capital, instaurando o Estado Democrático de Direito, a proposta de uma esquerda revolucionária foi sepultada. A luta de classes no sentido marxista do termo desaparece, e é substituída pela genérica oposição entre “opressores” e “oprimidos”, sob cuja denominação tudo cabe, a gosto do freguês.

A esquerda se mostrou totalmente sem rumo. Na América Latina, porém, surgiu uma novidade, instaurada por Hugo Chávez, segundo o qual a conquista do poder não se faria mais por um ato de violência, mas por eleições. A democracia seria, assim, instrumentalizada com o intuito de solapar os seus próprios alicerces, com a instauração final de uma ditadura.

Atualmente, surgiu uma nova acepção da esquerda, a da esquerda identitária, voltada num primeiro momento para a afirmação do direito das minorias, transformando-se gradativamente numa nova forma de oposição entre essas minorias e os outros, como se só ela contasse a partir de agora. O outro passaria a ser eliminado, sendo sua expressão denúncias do tipo “racista”, “branco”, “heterossexual” e “dominador”. Não valem mais a pessoa, a individualidade, em seu conhecimento e cultura próprios, mas a cor da pele e a orientação sexual. Abandona-se completamente a noção marxista de subversão do capitalismo, e é substituída por ações identitárias, tidas então por progressistas. Trata-se de uma luta interna por poder, prestígio e dinheiro. É a afirmação da particularidade em detrimento da universalidade. Marx, literalmente, deve estar se remoendo em sua tumba. Lenin quase saiu correndo de seu mausoléu.

Ocorre que a esquerda identitária nasce nos campi americanos, regiamente financiados por empresas privadas. O seu contexto histórico, aliás, é totalmente diferente do da sociedade brasileira, na medida em que lá inexistiu praticamente a mestiçagem, enquanto aqui é predominante, configurando mais de 40% da população brasileira, segundo o IBGE. Por outro lado, a luta pela emancipação feminina, pela igualdade de direitos – traço definidor deste movimento nas décadas de 70 e 80 do século passado, de afirmação universal da mulher –, transforma-se em ações identitárias e particularistas. Entretanto, esta esquerda particularista, em seu afã global de afirmação, procura extrapolar sua visão limitada a todo o planeta. O resultado é risível, não fosse trágico.

Escolheu como protagonista histórico o Islã mais radical, e o seu apoio ao Hamas e ao Irã é a sua mais cruel expressão. Em lugar do “proletariado”, emergem os “terroristas”, cuja missão consistiria em extirpar os “opressores”. O seu pensamento é dito “decolonial”, mas nada mais é do que o descalabro conceitual de fanáticos que se recusam ao diálogo. A violência torna-se algo elogiável, mesmo incentivado. No século passado, Eldridge Cleaver, expoente dos Black Panthers, considerava um ato revolucionário estuprar mulheres brancas, treinando nos guetos, com mulheres negras. Atualmente, o mutismo das feministas de esquerda acerca do sequestro e do estupro de mulheres judias é escandaloso. Da mesma maneira, o silêncio é total acerca da ablação do clitóris em meninas na África muçulmana. No Irã, mulheres são assassinadas e torturadas por suas vestimentas consideradas inadequadas por homens religiosos. E a esquerda identitária compactua com todas essas atrocidades. Uma esquerda colonizada.

*Professor de Filosofia na Ufrgs

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Eu sou de esquerda e não compactuo com nada disso.