MEC acerta ao querer restringir abusos do Fies
O Globo
Fundo estudantil se tornou foco de
inadimplência e meio de sustentação de faculdades de baixa qualidade
O ministro da Educação, Camilo
Santana, pretende pôr um freio no descontrolado Fundo de
Financiamento Estudantil (Fies), programa de crédito a estudantes criado para
facilitar o acesso às universidades privadas. Em entrevista
ao GLOBO, Santana afirmou que o governo enviará até o fim do
ano um projeto ao Congresso com propostas para adotar critérios mais rígidos de
acesso e reduzir a inadimplência, dois problemas crônicos.
Um dos objetivos, diz Santana, é diminuir a abrangência para 100 mil inscritos. Hoje são 144 mil (em 2014, chegaram a 700 mil). A ideia é que o novo Fies seja menor e mais dirigido, destinado aos que mais precisam de ajuda para ingressar numa universidade particular. Diferentemente do que ocorre na educação básica, no Brasil estabelecimentos privados respondem por 85% do ensino superior. “Para atingir a meta do Plano Nacional de Educação, garantir 50% das matrículas dos jovens de 18 a 24 anos no ensino superior, o papel das universidades particulares será importante”, afirma Santana.
O Fies foi criado em 1999 com o objetivo de
ampliar o acesso ao ensino superior. Estudantes sem condições de arcar com as
mensalidades poderiam cursar universidades particulares quitando a dívida
depois de formados. Em mais de duas décadas, o programa se transformou em
muleta para o populismo de diferentes governos, que só se preocupavam em
ampliar o número de beneficiados, a despeito da inadimplência. Houve uma
explosão de vagas em faculdades particulares, interessadas no dinheiro fácil
garantido pelo governo. A prova mais eloquente de que não deu certo é a
quantidade de reformulações por que o programa já passou sem resultados
satisfatórios.
O Fies virou uma fábrica de endividados. Hoje
há 1,2 milhão de contratos inadimplentes, com saldo devedor de R$ 54 bilhões.
Há casos em que não pagar a dívida se explica, mas estudos já demonstraram que
parcela significativa dos inadimplentes teria condições de arcar com as
mensalidades. O Fies se tornou, nas palavras de Santana, “política mais
financeira que social”.
Os próprios governantes contribuem para o
descrédito. Não pagou? Sem problema, o governo perdoa. Obviamente, rende votos.
No ano passado, o governo Jair Bolsonaro deflagrou renegociações generosas
depois que o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva acenou com perdão às
dívidas. Promessa eleitoreira semelhante foi feita nos Estados Unidos por Joe
Biden, hoje às voltas com dificuldades para passar pelo Congresso americano seu
perdão a dívidas estudantis. Por aqui, Lula sancionou no início do mês uma lei
que prevê renegociação com descontos generosos aos inadimplentes. Fica a
sensação de que só os otários pagam, enquanto os espertos aguardam a anistia
que cedo ou tarde oficializará o calote.
A intenção de facilitar o acesso ao ensino
superior é louvável, mas o Fies não pode se tornar um subsídio disfarçado para
universidades privadas de baixa qualidade, como infelizmente acontece. Não há
dúvida de que o programa precisa ser reformulado e, considerando o histórico de
fracassos, a reformulação tem de ser geral. Antes de tudo, ele deveria
beneficiar os estudantes mais necessitados. Não se pode perder de vista que se
trata de um contrato: estuda-se e paga-se depois quando empregado. Sem isso o fundo
não se sustenta. Santana precisará provar que o novo Fies será realmente novo.
Crise na empresa que criou ChatGPT expõe
necessidade de regular IA
O Globo
Fundador da OpenAI foi demitido e
recontratado em dias, ao que tudo indica com base em temores incertos
Em novembro do ano passado, a americana
OpenAI conquistou fama global ao lançar o ChatGPT,
robô de bate-papo capaz de se comunicar de modo praticamente indistinto dos
humanos. Foi o estopim para que, de uma hora para outra, a tecnologia
promissora conhecida como inteligência
artificial (IA) se tornasse assunto nas redes sociais, escolas,
lares e bares. A façanha fez de Sam Altman, fundador e principal executivo da
OpenAI, o rosto da nova tecnologia — e da empresa a startup mais badalada,
valorizada e invejada do mundo.
Um ano depois, a OpenAI voltou a surpreender,
desta vez pela confusão. Há pouco mais de duas semanas, o conselho de
administração demitiu Altman sem dar explicações. Quatro dias depois, quando
mais de 700 funcionários ameaçavam pedir demissão para acompanhá-lo noutro
empreendimento, a empresa voltou atrás. Altman retornou ao comando e houve
mudanças no conselho. Ninguém entendeu direito o que tinha acontecido.
Uma disputa de narrativas tenta explicar o
imbróglio na OpenAI. Para alguns, foi um embate entre autoproclamados
idealistas, preocupados com a segurança da tecnologia (os ex-integrantes do
conselho), e quem está menos alarmado com potenciais efeitos negativos e deseja
desenvolvê-la rápido (Altman e seus apoiadores). A valer uma versão plausível,
a OpenIA avançou no desenvolvimento da inteligência artificial geral (IAG),
meta teórica em que computadores executarão qualquer tarefa intelectual humana
— e os conselheiros ficaram assustados.
Diante de uma nova tecnologia, é fácil se
perder em debates sobre como é maravilhosa ou ameaçadora. Nessas horas, é
importante lembrar que a humanidade já passou por situações semelhantes.
Avanços que permitem a máquinas substituir trabalho humano são tão velhos como
a história da indústria. A eletrificação a partir do início do século XX
revolucionou a produção nas fábricas e a vida em sociedade. A exploração do
petróleo transformou o transporte, a produção agrícola e o modo como vivemos. A
própria tecnologia digital e de comunicação provocou mudanças radicais na
organização da sociedade, com efeitos até na política.
A cada nova transformação, novas regras e
instituições foram criadas para garantir que as tecnologias fossem usadas em
benefício da maioria. Com a IA não poderá ser diferente. Algoritmos precisam
ter o bem-estar humano como bússola, elevando a produtividade do trabalho,
aumentando a qualidade de pesquisas ao sugerir parcerias entre acadêmicos de
perfis complementares ou produzindo informações melhores para seres humanos
tomarem decisões. Garantir que isso ocorra não é tarefa de idealistas,
presidentes de startups como a OpenAI ou das gigantes do Vale do Silício. O
lançamento do ChatGPT em 2022 mostrou ao mundo o potencial da IA. As empresas
devem continuar a ter a liberdade e os incentivos para desenvolvê-la. Mas o
drama da demissão inesperada e recontratação a jato de Altman também tornou
evidente a necessidade de governos regularem o uso da tecnologia.
Legislativo garante sobrevida e subsídio a
energias poluentes
Valor Econômico
O país dá sinais de que as energias limpas
que estão sendo incentivadas não conseguem, por desejo do Legislativo e/ou do
Executivo, se emancipar dos combustíveis fósseis, subsidiados
Projetos que ampliam ou criam fontes de
energias renováveis entram de um jeito e saem de outro do Congresso - o novo é
aprovado mantendo a sobrevida de velhas energias poluentes, exatamente as que
se quer substituir. O projeto de lei que regulamenta a exploração de energia
eólica em alto mar é o mais recente exemplo disso. Emergiu da votação da Câmara
com um adendo que nada tem a ver com seu objeto, garantindo a manutenção das
térmicas a carvão até 2050 com garantia de preço, cujos contratos estão em vias
de extinção ou expirariam em 2028. Os “jabutis” do setor de energia criaram seu
próprio sistema interligado: a obrigatoriedade de construção de térmicas a gás
nos locais onde não há gás e de PCHs, inseridas na privatização da Eletrobras,
foram pousar, modificadas, no PL 11247-18, que agora retorna à Câmara dos
Deputados.
Um pouco antes, a oposição de entidades do
setor elétrico conteve no nascedouro a gestação de uma MP que concederia mais
36 meses às usinas que deveriam produzir energia renovável com direito a
subsídio de 50% nas tarifas de transmissão e distribuição, mas que até agora
não têm acesso ao sistema. A benesse custaria R$ 6 bilhões e iria, como é praxe
no setor elétrico, para a conta dos consumidores. Uma usina de subsídios
aumentou a conta de desenvolvimento energético (CDE) a R$ 30 bilhões até
novembro. E, pela forma distorcida com que o sistema opera, quanto mais sobra
energia, mais cara ela se torna.
As energias renováveis, que ampliaram sua
fatia rapidamente, são parte da solução, mas também do problema. O anúncio do
fim do prazo para inscrição de usinas com direito a subsídios levou a 3.987
outorgas, que, em operação, elevariam o estoque das renováveis a 169,4
gigawatts (GW), nada menos que 80% da capacidade instalada do país, de 211,7
GW. “Não pode colocar mais energia do que é consumido porque vai dar problema”,
avisou o diretor-geral do Operador Nacional do Sistema (ONS), Carlos Ciocchi,
que tem barrado o acesso das usinas às redes. “Lá atrás, o agente ficava
‘sentado na cachoeira’, marcando o local para receber a usina. É como quem
compra ingresso antecipado de um show para vender mais caro lá na frente. Por
isso, tem que ter critério, não dá para aprovar projeto que só existe no ‘power
point”, disse ao Valor (27 de novembro).
Ao mesmo tempo, pressões sobre deputados e
governo conseguiram contornar a aprovação de mais uma barragem de subsídios que
adviriam do projeto 2308/23, que incluiu o hidrogênio verde na matriz elétrica
nacional, aprovado pela Câmara em 29 de novembro sem os enormes incentivos
pretendidos. Em simulação, se 100 MW de energia eólica fossem destinados à
produção do novo combustível, o desconto no uso da rede de transmissão chegaria
a R$ 35 bilhões (Edvaldo Santana, Valor, 23 de novembro), praticamente
dobrando a conta que hoje é paga pelos consumidores.
Uma conjunção de fatores tornou o mercado de
energia sobreofertado. Além das chuvas abundantes, que encheram os
reservatórios, a oferta está crescendo a um ritmo que é o triplo da demanda e
quase todo o investimento nas energias renováveis é feito por empresas
privadas. Isso derrubou os preços no mercado livre, por enquanto um clube
fechado e reservado a poucos. Em 27 de julho, por exemplo, as distribuidoras
compravam energia a R$ 270 o MW, enquanto a mesma energia valia R$ 60 o MW no
mercado livre. Na conta do consumidor, o preço triplicava, considerando-se
todos os subsídios e penduricalhos adicionados.
O problema do projeto que regulamenta a
exploração da energia eólica offshore não está na energia em si, mas nos
jabutis, apesar de, no atual quadro de suprimento, ela não ser necessária até
2045, calcula Edvaldo Santana, ex-diretor da Aneel e colunista do Valor.
Com o baixo interesse nos 8.000 MW em térmicas a gás (em locais sem gás), eles
migraram para o PL das eólicas. A fatia das PCHs (pequenas centrais
hidrelétricas) subiu a 4,9 mil MW, a um custo estimado de R$ 8,6 bilhões (Folha
de São Paulo, 30 de novembro). Térmicas com oferta de 4,25 mil MW foram
mantidas, com separação entre obras e fornecimento de gás, a um custo de R$ 16
bilhões anuais, quando entrarem em operação, por 15 anos. A aprovação do
projeto incluiu ainda a permanência de mercado cativo para as 21 térmicas a
carvão, que hoje custam R$ 1 bilhão por ano. Elas terão sobrevida garantida até
2050, o ano em que a maioria dos países participantes do Acordo de Paris
promete zerar as emissões de carbono.
O país dá sinais de que as energias limpas
que estão sendo incentivadas não conseguem, por desejo do Legislativo e/ou do
Executivo, se emancipar dos combustíveis fósseis, subsidiados. Também
preocupante é o fato de que o Congresso ter aprovado projetos ruins como esses
por folgada maioria (no caso do PL 11247, por 403 a 18). Os planos do Executivo
para explorar a Margem Equatorial do Amazonas merecem mais discussões sobre as
ressalvas para que não indiquem ainda mais contradições entre ações e discurso em
um governo que pretende ter papel de primeira linha no combate ao aquecimento
global.
Corrida à receita
Folha de S. Paulo
Vitórias do governo em tributação serão
ineficazes sem controle das despesas
Nas semanas finais do ano legislativo, o
governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) procura aprovar o restante do pacote que
visa reduzir isenções fiscais e, assim, aumentar a receita e ao menos diminuir
o déficit do Tesouro Nacional. Obteve-se algum sucesso na semana passada, mas
ainda longe do necessário para o equilíbrio das contas.
O Congresso aprovou
a nova forma de tributação de ganhos "offshore", de contas
e empresas sediadas no exterior, e dos fundos de investimento chamados
exclusivos, destinados a grandes investidores. Nos dois casos, a Fazenda
buscava equiparar as normas dos tributos sobre tais rendimentos a aplicações
equivalentes no Brasil.
Já os parlamentares diminuíram a carga de
impostos almejada pelo governo, que estima obter cerca de R$ 20 bilhões em
2024, algo menos que 0,2% do PIB —caso os contribuintes não driblem as novas
regras, deslocando seus haveres para outros negócios.
Nas três últimas semanas ativas do Congresso,
a administração petista também espera aprovar a tributação federal sobre parte
do ICMS que deixa de ser pago por empresas beneficiadas por isenções fiscais
estaduais.
Foi instalada uma comissão para analisar a
medida provisória que estabelece a cobrança do imposto, sob forte resistência
de empresas e estados. O governo espera obter ao menos 0,3% do PIB com essa
medida em 2024.
Na pauta ainda estão projetos menores, como a
tributação sobre apostas esportivas; espera-se o anúncio da alíquota do imposto
sobre importações de pequeno valor. Ademais, é possível que seja apreciada em
2023 a nova norma para juros sobre capital próprio, um modo de distribuição de
lucros aos acionistas.
Neste ano a ofensiva arrecadatória também
incluiu, entre outras providências, uma abusiva alteração das regras de solução
de litígios, que devolveu ao governo o direito de desempatar votações no
tribunal administrativo da Receita.
Tudo somado, porém, ainda não são visíveis na
arrecadação de impostos os efeitos das propostas já chanceladas. A receita
tributária diminui em relação a 2022.
Mesmo que venha a ser bem-sucedido nas
propostas remanescentes no Congresso, o governo continuará com chances muito
remotas de obter o suficiente para cumprir a meta de déficit zero no próximo
ano —ainda mais
com a esperada desaceleração da economia.
A necessidade
de controle de gastos, evidente desde o início, tornou-se uma
obviedade constrangedora com os maus resultados orçamentários deste ano.
Eliminar privilégios tributários é correto, mas não se deve contar com o
aumento de uma carga total já excessiva.
Sem força
Folha de S. Paulo
Carente de planejamento, operação de
segurança federal no RJ é ineficaz até aqui
Como qualquer política pública, programas de
segurança devem se basear em evidências, inclusive com análise do
custo-benefício, cotejando ganhos para a sociedade e gastos públicos. Tome-se o
caso da Força Nacional em operação no Rio de Janeiro desde outubro, em tese para
lidar com a crise de segurança no estado.
A ausência de um plano estruturado que guie a
atuação dos agentes começa a cobrar a sua fatura. Prorrogada pelo governo
federal até janeiro, a presença da Força Nacional no Rio não será continuada
devido a alguma constatação de sua eficiência. O cenário, na realidade,
mostra-se o oposto.
Manter como vitrine um programa federal de
segurança no estado parece ser o principal propósito do governador Cláudio
Castro (PL) e do Ministério da Justiça, a despeito dos números.
Levantamento da GloboNews, com dados obtidos
por meio da Lei de Acesso à Informação, revela que a operação gastou R$ 10
milhões em 45 dias, resultando em 10 mil abordagens que não levaram a nenhuma
apreensão de drogas ou armas —mesmo com 300 agentes deslocados de outros
estados para patrulhar rodovias com esse fim.
As maiores despesas foram com novos
equipamentos como fuzis e granadas (R$ 3,5 milhões) e pagamento de diárias aos
policiais de outros estados (R$ 3,6 milhões).
Os números revelam a baixa eficácia de
políticas de segurança fundadas apenas no policiamento ostensivo, e não em
inteligência e investigações. Em um mês de atuação da Força Nacional, só sete
caminhões foram revistados.
Deslocar para o Rio de Janeiro agentes de
outras regiões sem conhecimento da realidade local, em vez de incrementar as
forças de segurança no estado, inclusive a Polícia Rodoviária Federal, serve
mais para maquiar o problema do que para de fato combater o crime.
Os próprios
policiais estão entre os atingidos pelo amadorismo da política. Na
terça (28), dois agentes da Força Nacional tiveram suas armas roubadas por
traficante no Complexo do Chapadão, após entrarem no local por engano ao usar
aplicativo de GPS.
No mesmo dia, outro agente foi assassinado na
Vila Valqueire, ao intervir em uma briga entre vizinhos.
Cabem aos governos nas esferas estadual e federal explicitar objetivos estratégicos e corrigirem os rumos, diante das evidências de que a operação pouco resultado trouxe até o momento.
O silêncio obsequioso da esquerda identitária
O Estado de S. Paulo
Movimentos feministas e negros, geralmente
barulhentos, apenas murmuraram seu descontentamento diante da mais nova traição
de Lula à causa que ele prometeu abraçar quando tomou posse
Ao indicar o ministro da Justiça, Flávio
Dino, para o Supremo Tribunal Federal, o presidente Lula da Silva causou
considerável frustração entre os petistas, que não gostam de Dino, e,
sobretudo, entre os militantes dos movimentos de esquerda que fazem das
questões raciais e de gênero o centro de sua luta política – o chamado
“identitarismo”. Dos petistas, é claro, não se esperam mais que queixumes, pois
quem manda no PT, praticamente desde sua fundação, é Lula, e não é ajuizado
enfrentar o demiurgo. Já da tal esquerda “identitária” se esperava uma reação
barulhenta e raivosa, como é habitual para essa turma, mas eis que dela só
temos notícia de um obsequioso silêncio.
Até a última segunda-feira, as convicções em
torno da possível nomeação de uma mulher (e, preferencialmente, uma mulher
negra) se ancoravam nos simbolismos da posse de Lula. Na festa organizada por
Janja, sua esposa, o petista recebeu a faixa presidencial de oito brasileiros
calculadamente escolhidos para representar a diversidade brasileira – estavam
ali, entre outros, um indígena, um metalúrgico, uma criança, um professor, uma
pessoa com deficiência e uma mulher negra. Não satisfeito com a força da imagem
na subida da rampa, prometeu em discurso fazer uma convocação nacional para um
“mutirão pela igualdade”.
Acostumados a interpretar como revelação
mística a parolagem lulista, movimentos sociais que trabalham com causas de
gênero e de raça acreditaram na promessa presidencial. Aos poucos, ao
perceberem que o novo governo estava longe da prometida diversidade, passaram a
empenhar-se numa campanha em favor da indicação de uma ministra negra para o
Supremo. Artigos, declarações públicas, publicações nas redes sociais e até
outdoors instalados em outros países, durante viagens do presidente, compuseram
o arsenal da campanha, que envolveu ativistas, influenciadores digitais e
personagens dedicados à causa. O primeiro desgosto logo chegaria com a nomeação
de Cristiano Zanin, o ex-advogado de Lula durante o seu calvário na Lava Jato.
A pá de cal veio nesta semana.
Como se sabe agora, se o recém-indicado
passar pela sabatina no Senado, o STF terá somente a ministra Cármen Lúcia como
mulher em sua composição. Desde a redemocratização, a Corte teve apenas três
mulheres: Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber, indicadas respectivamente
por Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff. O STF também exibirá a
segunda menor representatividade feminina na América do Sul. A própria Rosa
Weber afirmou que o déficit de representatividade feminina nos espaços de poder
significa “um déficit para a própria democracia”. Para porta-vozes da campanha
em favor de uma mulher negra, a política e o Judiciário reproduzem atributos da
sociedade brasileira, marcadamente patriarcal, machista, sexista e, em vários
níveis, racista – entre 171 ministros em mais de 130 anos, houve apenas três
ministros negros no Supremo.
Se depender de Lula, isso vai demorar para
mudar. O presidente escolheu 11 mulheres para um Ministério de 37 pastas, mas
não tardaria a rifar duas delas no primeiro estremecimento da sua base de apoio
no Congresso. Parte daquelas que restaram precisou enfrentar o esvaziamento das
prerrogativas de suas pastas, incluindo Marina Silva (Meio Ambiente) e Sonia
Guajajara (Povos Indígenas), ou, pela falta de recursos ou de iniciativas
concretas do governo, resume suas atividades a eventos, grupos de trabalho e
alguns esquálidos projetos – é o caso de Anielle Franco (Igualdade Racial) e
Margareth Menezes (Cultura). Não raro Lula reforça, em derrapadas retóricas,
seu apego a premissas machistas, e é bom lembrar que o PT apoiou uma anistia
aos partidos que não cumpriram regras de cotas de candidaturas femininas.
Ou seja, para Lula, as demandas da esquerda
identitária lhe servem na exata medida de seu potencial eleitoral, seja para
conquistar votos, seja para constranger adversários. No mais, Lula só tem uma
causa: o poder.
É hora de aprumar a PGR
O Estado de S. Paulo
Espera-se que, sob nova direção, a PGR volte
à normalidade institucional, isto é, dedique-se à sua missão constitucional, e
não à defesa de interesses outros que não o interesse público
Espera-se que o fim da entediante novela em
que se tornou a escolha do futuro chefe do Ministério Público Federal, com a
indicação do vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gonet, para a
Procuradoria-Geral da República (PGR), represente a volta da PGR ao leito da
normalidade institucional. Em condições normais de temperatura e pressão, esta
seria uma aspiração modesta, para não dizer descabida. Mas, nesses tempos
esquisitos, ter a PGR atuando novamente no estrito cumprimento de suas
atribuições constitucionais, e não como um instrumento de ação política, já
será um ganho e tanto para o País.
O Ministério Público, nunca é demais lembrar,
tem sua independência funcional assegurada pela Constituição para exercer “a
defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis”. Nos últimos anos, porém, houve um completo
desvirtuamento das prerrogativas do parquet, em particular da PGR, para levar a
cabo essa nobre missão. Seja por abusos de poder, seja por omissões, a
perversão da PGR em prol de interesses outros que não o interesse público levou
a um quadro de descrédito para a instituição e de insegurança jurídica para o
País.
O Brasil precisa de uma PGR normal, como já
dissemos. Vale dizer, uma PGR que zele, de fato, por aqueles bens jurídicos que
os constituintes originários resolveram incumbi-la de defender. Este jornal não
espera muito mais do que isso do sr. Paulo Gonet como futuro procurador-geral
da República, caso seu nome seja aprovado pelo Senado. Bastará exercer o papel
do Ministério Público determinado pela Lei Maior para que entre para a história
como aquele que resgatou a PGR da sarjeta em que foi atirada por alguns de seus
antecessores no cargo.
Para recuperar o prumo, a PGR deve se afastar
do estado de amorfia moral e funcional que marcou a gestão de Augusto Aras,
cuja subserviência ao ex-presidente Jair Bolsonaro e ao atual mandatário,
sobretudo ao primeiro, levou à omissão da PGR em alguns dos momentos mais
dramáticos para a sociedade brasileira na história recente. Tampouco a PGR sob
Gonet há de seguir a direção oposta, isto é, a onipresença desvairada que
caracterizou o mandato de Rodrigo Janot. Os males causados por sua atuação
messiânica e desafiadora da ordem jurídica à frente da PGR, no auge da Operação
Lava Jato, em nome de uma suposta purgação nacional, ainda não foram plenamente
superados.
É imperativo, portanto, que a PGR retome sua
função primordial: ser a defensora intransigente das leis e da Constituição,
independentemente de pressões políticas ou de agendas político partidárias.
Nada mais do que isso. Como instituição republicana, a PGR não pode ser refém
de interesses individuais ou corporativos nem tampouco pode ser transformada em
arena de disputas de natureza ideológica ou pessoal.
Ao assumir posição tão crucial no arranjo
constitucional brasileiro, Gonet deve eleger como prioridade a restauração da
integridade institucional da PGR. Isso significa, na prática, conter os ímpetos
ativistas de setores do Ministério Público ainda recalcitrantes em submeter
suas “causas” ao que determinam as leis e a Constituição e, ao mesmo tempo,
afastar a PGR da apatia deliberada quando essa inação do parquet decorre de
arranjos antirrepublicanos.
A PGR não pode ser um braço do Poder
Executivo, muito menos um instrumento de revanche ou proselitismo ideológico de
quem quer que seja. Este jornal anseia por uma PGR que não só resgate a
confiança na instituição, mas também reforce o seu compromisso inabalável com
as leis, independentemente de quem elas venham a alcançar. Como defendemos
nesta página não faz muito tempo, servirá bem ao País um Ministério Público que
não seja “nem o algoz de políticos nem o seu servo – só um servo da lei, algoz
daqueles que a violam” (ver Por uma PGR normal, de 25/9/2023).
A vigência do Estado Democrático de Direito
depende fundamentalmente da autonomia e da integridade dos membros das
instituições responsáveis por sua proteção. Gonet há de ter isso em mente à
frente da PGR.
Cerrado em perigo
O Estado de S. Paulo
Plano contra desmate do bioma convoca o
agronegócio a adotar práticas sustentáveis
O desmatamento no Cerrado cresceu 3% nos 12
meses encerrados em agosto na comparação com igual período anterior, concluiu o
Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe). Foram dizimados mais de 11 mil
quilômetros quadrados de áreas nativas, das quais 75% nos quatro Estados onde a
fronteira agropecuária avançou mais aceleradamente nas últimas décadas,
comumente designados como Matopiba. Ao divulgar esses dados no último dia 28, o
governo teve o cuidado de ressuscitar o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento
e das Queimadas no Bioma Cerrado (PPCerrado). Desta vez, com o claro alerta ao
agronegócio de que sua conversão aos padrões de sustentabilidade não só
contribuirá para reduzir o desmatamento no bioma, como definirá seu futuro no
comércio internacional.
Tanto quanto na Amazônia, o combate à
devastação e aos incêndios no Cerrado tornou-se crucial para o Brasil cumprir,
em 2030, sua meta de desmatamento zero. Os números apresentados pelo Inpe
mostram, porém, que o País está na contramão desses esforços quando se trata do
Cerrado. Entre 2019 e 2022, sob a gestão de Jair Bolsonaro, totalmente avessa à
preservação ambiental, o desmatamento do bioma cresceu 40%. Justamente nesse
período de desmonte dos órgãos federais de proteção ao meio ambiente, os planos
voltados ao Cerrado foram revogados. Antes desse pico de negligência, porém, o
bioma já se via comprometido. Prova disso foi a perda de 12% de sua vegetação
nativa entre 2003 e o ano passado, uma área equivalente à do Estado de São
Paulo.
As causas da destruição dessa vegetação
nativa são há muito conhecidas, ampliadas e negligenciadas pelo poder público –
especulação fundiária, ineficácia da gestão hídrica, manejo inadequado do fogo,
desrespeito às unidades de conservação e dificuldades de monitoramento, além da
própria expansão territorial da agropecuária. Ao diagnóstico, porém, o
PPCerrado alinha um conjunto de iniciativas para cada raiz do desmatamento.
O plano, como assinalou a ministra do Meio
Ambiente, Marina Silva, foi elaborado a “muitas mãos”, inclusive do
agronegócio. A visão exposta sobre o impacto da agricultura e da pecuária,
fontes inalienáveis do maior dinamismo econômico dos 13 Estados do bioma,
felizmente escapou do dogmatismo ambientalista ao reconhecer elementos de
segurança jurídica, como o direito de exploração de até 80% da área das
propriedades rurais. Como contrapartida para o desmate não atingir tamanha
dimensão, propõe um modelo “ganha-ganha”, ainda a ser detalhado, com estímulos
e compensações.
A argumentação do PPCerrado traz os dois pés em uma realidade incontornável. A conversão sustentável de 100% da produção no Cerrado e a adoção de instrumentos de rastreabilidade e de certificação de grãos e carnes serão cruciais para o Estado brasileiro atingir a meta de desmatamento zero nos cinco biomas brasileiros até o fim desta década – um anseio, aliás, da sociedade brasileira. Igualmente fará do Cerrado e do Brasil referências no comércio global de alimentos “verdes”. A relutância em abraçar as tecnologias e os processos produtivos sugeridos pelo plano significará opção consciente pelo fracasso.
COP28 é importante, mas insuficiente
Correio Braziliense
Os eventos climáticos extremos estão
aumentando tanto em frequência quanto em intensidade. Que o diga o Brasil, que
enfrenta neste ano uma seca histórica na Amazônia, tornados e enchentes no Sul
e ondas de calor no Sudeste e Centro-Oeste
Realizada em Dubai desde 30 de novembro, a
Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2023 — mais
conhecida pela sigla COP28 —, reúne mais de 200 países para discutir a crise
climática e tentar buscar soluções para os graves efeitos que ela vem causando
no mundo. Afinal de contas, o momento é crítico: 2023 foi confirmado como o ano
mais quente no planeta desde o início das medições oficiais, e eventos
climáticos extremos estão aumentando tanto em frequência quanto em intensidade.
Que o diga o Brasil, que enfrenta neste ano uma seca histórica na Amazônia,
tornados e enchentes no Sul e ondas de calor no Sudeste e Centro-Oeste.
Na conferência, vários discursos de
autoridades — inclusive do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da ministra
do Meio Ambiente, Marina Silva — ressaltaram a gravidade do momento que o
planeta atravessa, uma vez que a elevação das temperaturas globais vem afetando
a economia dos países, causando uma perda acelerada de biodiversidade e
interferindo profundamente na vida das pessoas. Também foram feitos anúncios
relevantes, como a promessa de 110 países (Brasil incluído) de triplicar até
2030 a produção de energia renovável, o compromisso dos Estados Unidos (EUA) de
parar de usar carvão — responsável por cerca de 40% das emissões de
combustíveis fósseis — nas suas usinas até 2035 e a criação de um fundo
bilionário para apoiar as regiões mais afetadas pela crise climática.
São iniciativas e medidas importantes. Mas o
mundo verde das conferências e dos debates vem se mostrando muito diferente do
real, que segue firme no uso dos combustíveis fósseis e não demonstra muita
vontade de parar — pelo contrário. Um exemplo desse descompasso é a própria
COP, que é realizada anualmente desde 1995, mas que provocou pouco ou quase
nada em termos de ação efetiva para frear as emissões dos gases do efeito
estufa. Outro exemplo do descolamento entre promessa e realidade é o Acordo de
Paris, fechado em 2015 e que pretendia limitar o aumento da temperatura global
a 1,5ºC. Oito anos depois, o mundo caminha a passos largos para um aumento
entre 2,5ºC e 3ºC, o que representa um aumento nos eventos climáticos extremos
de proporções ainda inimagináveis.
Os encontros e as cúpulas são importantes,
claro. É na discussão aberta e na troca de ideias que surgem as soluções
inovadoras. Na COP28, os representantes de diferentes países podem compartilhar
conhecimentos, experiências e perspectivas, promovendo um entendimento mais
profundo das complexidades envolvidas na mitigação dos efeitos da crise
climática. Mas faltam ações,medidas sérias e obrigatórias que não estejam ao
sabor do vento político de cada país, como a retirada, um tanto quanto abrupta,
dos EUA do Acordo de Paris pelo ex-presidente Donald Trump em 2017. Por
enquanto, ninguém assumiu, de forma clara e evidente, compromissos concretos e
ações imediatas, como um plano com metas e um cronograma de curto prazo para a
eliminação do uso de combustíveis fósseis, com uma punição severa para o país
que descumprir o acordado.
Mas, como os problemas climáticos do Brasil deixaram claro, é urgente que a mudança comece para valer. Chegou o momento de os líderes mundiais deixarem de lado a retórica vazia e abraçarem a responsabilidade coletiva. A COP28 não pode ser apenas palco para discursos; deveria ser o catalisador para a transformação global. O futuro do planeta depende da capacidade de agir agora, de maneira decisiva e unificada, para garantir um ambiente sustentável para as gerações futuras. Não há mais tempo a se perder.
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