Valor Econômico
Falta de comando militar do golpismo moderno
foi fundamental para insucesso
Os golpes de Estado, ou tentativas dele, se
dividem em sua tipologia própria, mas todos se parecem. Reeditar 1964 sempre
foi uma aspiração do ex-presidente Jair Bolsonaro e do grupo de militares que o
cercou no poder, e há elementos de que ele o tentou pelo menos duas vezes, de
acordo com uma especialista na ruptura de março de 60 anos atrás, a
historiadora mineira Heloisa Starling. A pesquisadora lança nesta sexta-feira o
livro “1964: Como foi desmontada a democracia no Brasil”, pela Companhia das
Letras. Para ela, bebeu-se da mesma fonte.
Há basicamente dois tipos de golpe: a Quartelada e o Pronunciamento. Em comum, ambos têm uma primeira fase, que é a da conspiração. O desfecho é um só: a ruptura institucional por meio da ação da caserna. A Quartelada se dá com as ruas em silêncio. O Pronunciamento tem como segunda fase a criação de um ambiente de desordem, de um clamor popular pela intervenção militar, forte o suficiente para revesti-la de legitimidade.
O golpe de 31 de março teve aspectos
caóticos, relatados por Starling na obra, já que havia mais de um núcleo
conspirador em ação, mas claramente se seguiu a um clamor das ruas induzido.
Foi um Pronunciamento. As similitudes do passado remoto com o passado recente
são perturbadoras, como sugerem os sinais de que o comandante do Exército no
governo Bolsonaro teria confirmado a discussão em reunião com o presidente de
uma minuta de teor golpista, em dezembro de 2022.
“Tem alguns padrões que se repetem. Quando
olhamos as pessoas de verde e amarelo, as mulheres conservadoras nas ruas, as
palavras de ordem, a bandeira do Brasil, tudo isso está em 1964 e reapareceu
agora”, acredita Starling.
Ela lembra que Bolsonaro e os militares que
fizeram parte de sua entourage “foram formados sob o comando de militares que
atuaram ativamente na ditadura, inclusive na condição de repressão. Não foram
formados pela turma do general Golbery”.
Estariam portanto predispostos à conspiração,
pelo raciocínio da historiadora. Bolsonaro e seu entorno já demonstraram
admiração por uma série de personalidades do regime militar que jogaram a favor
do endurecimento do regime ou agiram diretamente na repressão. Para citar três,
mencione-se o general Silvio Frota, o coronel Brilhante Ustra e o Major Curió.
Para a historiadora, pelo menos duas vezes,
em 7 de setembro de 2021 e agora em 8 de janeiro de 2023 houve sinais de que
estaria em curso a segunda fase de uma modalidade de golpe, o da fabricação do
clamor popular. Na primeira ocasião Bolsonaro comandaria o golpe da própria
Presidência e da segunda vez a aposta seria fazer com que o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva perdesse o controle da situação e cedesse aos apelos para
instalar uma operação de Garantia de Lei e da Ordem (GLO). Em nenhuma das duas
situações, entretanto, até onde se sabe, chegou-se a uma situação de fato.
“Houve as tentativas. É muito visível que houve uma conversa entre os eventos
de 1964 e os dessa década. Só que agora felizmente não deu certo”, comenta
Starling.
E porque não deram certo? Starling elenca
quatro fatores, que fizeram a diferença entre o passado remoto e o passado
recente: o primeiro a ser lembrado é o da conjuntura internacional. Em 1964, os
Estados Unidos estavam dispostos até mesmo a uma intervenção militar. No
governo Bolsonaro, mandaram emissários para avisar que reconheceriam
imediatamente o resultado eleitoral.
O segundo fator é a posição do Judiciário. A
historiadora relembra que em 1964 o então presidente do Supremo Tribunal
Federal, Ribeiro da Costa, acompanhou e avalizou a posse do então presidente da
Câmara, Ranieri Mazzilli, como presidente da República, depois de uma
destituição totalmente inconstitucional de João Goulart. Horas antes, o
presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarara a Presidência vaga,
mesmo Goulart tendo avisado que estava em território brasileiro. “O presidente
do STF estava lá, naquela madrugada. Claramente apoiou o golpe. E agora a
instituição que de maneira mais sólida defendeu a democracia foi o Judiciário,
particularmente o Supremo. É uma diferença fundamental”, destaca.
O terceiro fator que fez o contraste com 1964
foi a postura do Legislativo, segundo a historiadora. O presidente do Senado,
Rodrigo Pacheco (PSD-MG), defendeu a democracia. O quarto fator foi o da mídia,
que em 1964 se perfilou em sua maioria pela ruptura, e essa década centrou
forças na defesa das instituições.
Há um quinto fator, não citado por Starling,
mas que compõe o rol das diferenças entre as duas situações históricas, que é a
questão do comando militar, ou, no caso, a falta do comando. Em 1964 havia o
marechal Castello Branco. As investigações recentes indicam que quem tentava
arregimentar a caserna agora era Braga Netto. O teor chulo das conversas
interceptadas de Braga Netto com outros conspiradores contra o atual comandante
do Exército, Tomás Paiva, e contra o comandante de então, Freire Gomes, indica
o grau de falta de autoridade do golpismo moderno.
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