Valor Econômica
As frequentes violações dos direitos humanos
pelas polícias e a fragilidade da segurança refletem suas origens na cultura da
repressão à senzala
O fim da ditadura militar (1964-1985) não
representou o fim da baderna estrutural. A de que ela foi expressão, a que
dotara o país de uma organização política anômala e desfavorável à democracia.
A coisa vem de longe. Desde, pelo menos, a
independência. A constituição do Estado brasileiro tem uma característica que o
distancia do que é próprio do verdadeiro Estado moderno, que na Europa nascia
quando houve aqui o Grito do Ipiranga. O que deu nascimento a um Estado
brasileiro antimoderno, baseado no poder do atraso, um tipo como contrapartida
do outro.
As anomalias retrógradas e autoritárias do período presidencial encerrado em dezembro de 2023 se determinam pela estrutura defeituosa desse passado que persiste e resiste. Somos muito atrasados achando que somos muito modernos.
Somos peculiares. Fernando Henrique Cardoso,
num ensaio sociológico de 1971, já havia chamado a atenção para o fato de que,
diversamente do que aconteceu com os outros países latino-americanos, a
independência brasileira não resultou de uma revolução política motivada por um
projeto de nação. Uma insurreição da sociedade.
No modo como foi proclamada nossa
independência, não foi a sociedade que criou o Estado. Mas o Estado que
inventou a sociedade que o legitimasse.
Porém, qual sociedade? O Brasil era sociedade
escravista - de escravos e senhores de escravos, com uma categoria média de
funcionários públicos, algumas forças policiais mais do que militares
propriamente ditos, a ordem assegurada por capitães do mato.
As frequentes violações dos direitos humanos
pelas polícias e a decorrente fragilidade da segurança da sociedade refletem
suas origens na cultura da repressão à senzala. Escravos e escravização ainda
existem aqui apesar das leis que tratam do direito do trabalho.
O latifúndio foi aqui fruto da escravidão,
enquanto monopólio do território pela minoria racial para sujeitar o trabalho
dos desvalidos, fonte de lucro extraordinário à margem da lei.
A criminalidade fundiária ainda responde pelo
açambarcamento de dezenas de milhões de hectares de terra, desprovidos da
legitimidade do fundamento na cadeia dominial que a leve aos registros
decorrentes da Lei de Terras de 1850.
Não é exagero e descabimento reconhecer as
persistências de um passado não superado num presente não realizado. É
necessidade de construção de uma consciência crítica que ilumine o caminho para
fora do buraco da política meia-boca em que estamos metidos, dominados ou
ameaçados por uma maioria de políticos que personificam o meia-boquismo de
nossas piores tradições.
O Brasil originou-se de uma colagem de
diversidades e diferenças resultantes do acaso e da circunstância. São poucas
nossas tradições de orientação. Nunca tivemos protagonistas legítimos do
processo histórico, como o das classes sociais que nasciam no mundo, cujo
conflito engendrou a sociedade moderna.
Aqui não temos conservadores, temos
reacionários. Não temos revolucionários porque os que assim se acham não têm
ideia do que é o fazer história e a historicidade da criação política
democrática. E do que é a superação das contradições sociais. Direita e
esquerda vivem da falsidade do retornelo das polarizações para não sair do
mesmo lugar.
O Brasil é, politicamente, uma peneira furada
por cujos furos se infiltram os poderios dispersos, o do poder local do
latifúndio ao município; o das corporações das forças armadas ao das igrejas e
religiões.
O Estado se tornou mero instrumento desses
poderios. Em diferentes momentos, o Exército tem sido um deles, que se infiltra
na estrutura do Estado em nome de seus valores e privilégios corporativos. Não
raro inventa inimigos para legitimar-se, como faz com a esquerda e os
comunistas. Rotula segmentos sociais e combate rótulos, sataniza e questiona
direitos.
As religiões fazem isso, a seu modo.
Infiltram-se na estrutura do Estado. Violam a Constituição. No Congresso,
surgiu a “bancada da Bíblia”, que congrega os religiosos das várias
denominações. Deram funções de templo a palácios e instituições. Para preservar,
democraticamente, a liberdade religiosa, o Estado brasileiro não tem religião.
Religião não é categoria política e partidária que possa legitimamente impor ao
país o direito de representação política.
Essa e outras anomalias da estrutura do
Estado fragmentário no Brasil se expressam na existência no Congresso de uma
“bancada da bala”. Os representantes de uma corporação de defensores da
violência e da violação dos direitos humanos, portanto, da lei, que se legitima
no eleitorado que fala em nome dos que acham que a sociedade se edifica na
violência privada e não na civilização e na lei.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).
Um comentário:
Palavras e ideias fortes, mas bem argumentadas!
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