O Globo
Milei aplicou sua serra elétrica e quem está
pagando o custo de sua decisão não é a casta política, são os setores mais
vulneráveis
Buenos Aires - Em recente artigo intitulado
“Uma situação perigosa”, o economista salvadorenho Manuel Hinds, que comandou a
pasta de Economia em 1979 e de Finanças entre 1995 e 1999, considerado um dos
ideólogos da dolarização em seu país, analisou o programa econômico do
presidente da Argentina, Javier Milei,
e utilizou uma metáfora que pode parecer exagerada, mas não é.
Hinds, que por questionar o governo de Nayib Bukele foi perseguido e hoje vive exilado na Europa, comparou a Argentina com uma fazenda, na qual o dono, de uma hora para a outra, decide deixar de alimentar seus animais para reduzir custos e equilibrar contas. “Depois de alguns meses, a alimentação dos animais é retomada, com a esperança de que eles ainda estejam lá, e de que esta horrível solução não tenha de voltar a ser aplicada”, escreveu o economista, até pouco tempo atrás admirado por colegas que assessoram o presidente argentino.
As principais medidas aplicadas pelo governo
de Milei foram cortes de gastos para buscar o equilíbrio fiscal e uma
desvalorização de cerca de 50% do peso. Em paralelo, a inflação disparou. Os
argentinos estão sufocados por aumentos de preços internos que, em alguns
casos, variam diariamente. O impacto desse programa, que não parece ter um rumo
claro, é uma gradual paralisação da economia e, em consequência, uma queda
expressiva do consumo. Em fevereiro, a venda de alimentos e bebidas caiu,
segundo dados de empresas de consultoria privadas, 33,3%; a de medicamentos,
39%; e a de materiais elétricos e de construção, 28,2%. Várias fábricas estão
fazendo suspensões temporárias de suas produções.
“As pessoas mais afetadas por este terrível
imposto [a inflação] são os assalariados e os aposentados, ou seja, a classe
média, ou mais precisamente a antiga classe média. A estratégia segue a lógica
de um psicopata”, enfatiza Hinds, cujos artigos passaram a ter mais
visibilidade numa Argentina com quase 60% de taxa de pobreza.
O país virou um laboratório no qual Milei
implementa suas receitas para reduzir drasticamente o Estado sem sensibilidade
humana alguma. Em cada ambiente onde se circula, o mantra nacional de “no hay
plata” aparece. Estive recentemente numa reunião de condomínio na qual o
síndico falava como o presidente. Em resumo: o dinheiro acabou, precisamos
parar as obras, pisar no freio e esperar. Todos os moradores reclamaram pelo
aumento do condomínio, dos tributos imobiliários e, um deles, chegou a sugerir
uma rebelião fiscal. Quando a mesma situação se discute na casa de uma família
de classe média, a decisão é sobre que alimentos comprar, ou onde conseguir
doações de comida, nos casos mais dramáticos.
Fiquei impactada com o depoimento do dono de
um armazém a um canal de TV local, no qual o pequeno empresário dizia que tinha
decidido fechar o comércio que sua família teve durante décadas. Com lágrimas
nos olhos, este argentino de classe média afirmava que estava fazendo o
sacrifício que Milei pediu ao país, com a esperança de que dias melhores virão.
Será que virão? Me pergunto, e se perguntam muitos na Argentina.
A metáfora da fazenda de Hinds não é
exagerada. Milei aplicou sua serra elétrica e quem está pagando o custo de sua
decisão não é a casta política, são os setores mais vulneráveis. O país virou
um laboratório no qual, por enquanto, os únicos que se reproduzem são os
pobres.
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