CartaCapital
Flávio Dino encara a missão de restabelecer o
equilíbrio político no Brasil. Terá o apoio da corte?
Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, é um cristão devoto. Outro dia abriu uma divergência na Corte e votou contra o relatório de um colega, Kassio Nunes Marques, que propõe derrubar uma lei potiguar que obriga bibliotecas públicas a manterem Bíblias, um processo inconcluso. Em 3 de julho, estava em Lisboa, em um convescote anual organizado por outro juiz do STF, Gilmar Mendes, e disse que, por ser religioso, acredita no “apocalipse”. Era um comentário metafórico para definir o possível desfecho de um caso explosivo em suas mãos. Três ações levadas ao Tribunal em 2024 defendem a inconstitucionalidade das emendas parlamentares impositivas e o formato “Pix”, um modo de liberação a jato dessas verbas orçamentárias. “Do ponto de vista institucional”, afirmou Dino, a anulação dessas emendas “seria uma coisa meio apocalíptica”. Uma refundação do sistema político, algo que o togado parece disposto a levar adiante.
Emendas são obras inseridas por deputados e
senadores no orçamento. O gigantismo financeiro das liberações e seu caráter
impositivo reconfiguraram a política. A partir de 2015, o Congresso mudou
várias vezes a Constituição para obrigar o governo a direcionar às emendas uma
fatia da receita e a liberar o dinheiro sem interferência ou negociação. De lá
para cá, o bolo totalizou 289 bilhões de reais, dos quais 187 bilhões foram
efetivamente gastos. A cifra anual saltou de 9 bilhões em 2015 para 50 bilhões em
2025. O Legislativo controla 1 de cada 4 reais que o governo tem para gerir
livremente. Nasceu um parlamentarismo disfarçado, uma situação que Dino
descreveu assim em um despacho de dezembro passado: “Não é excessivo afirmar
que hoje, no mundo, há os países: a) presidencialistas; b) parlamentaristas; c)
semipresidencialistas; e d) o Brasil, com um sistema de governo absolutamente
singular”. E está certo isso?, indagou ao magistrado o presidente de Portugal,
Marcelo Rebelo de Sousa, durante visita ao STF em 18 de fevereiro. Resposta:
“Me pergunto isso todo dia”.
Acabar com as emendas impositivas e o modelo
Pix de liberação conteria a hipertrofia do Congresso
A morte do parlamentarismo à brasileira, na
hipótese de o Supremo aceitar as três ações sob relatoria de Dino, provocaria o
“apocalipse” prenunciado pelo juiz. A política nacional está viciada em
emendas. Deputados e senadores não abrem mão desse poder, muito menos do
dinheiro. Ao amarrarem os braços do governo com a “impositividade”, ficam
livres para fazer jogo duro com o Palácio do Planalto e agir de forma mais
“ideológica” (ou interesseira), e que se danem as contas públicas. Esse modelo,
copiado por estados e municípios, atrapalha o planejamento dos investimentos
públicos e beneficia oligarquias políticas em eleições influenciadas pelos
recursos das emendas. Além, claro, de prestar-se a pilantragens. “É de clareza
solar que jamais houve tamanho desarranjo institucional com tanto dinheiro
público em tão poucos anos”, anotou Dino em um despacho. Segundo ele, é o maior
caso de corrupção da história do País.
O juiz enxerga uma crise profunda do
presidencialismo e da separação de poderes em decorrência das emendas. Acredita
que nenhuma força política é capaz de governar o País hoje, pois construir
maioria legislativa ficou complicadíssimo. “No momento em que você pega
recursos da União, arrecadação tributária da União, e descentraliza, muito
fortemente, pela via das emendas, você num certo sentido está sabotando a
repartição constitucional de competências materiais”, declarou no evento em
Lisboa.
Dino está em uma cruzada moralizadora das
emendas há quase um ano. Tomou as primeiras decisões a respeito em 1º de agosto
de 2024. Valeu-se do fato de ter herdado de Rosa Weber a ação, de autoria do
PSOL, que tinha levado o Supremo a decretar, em dezembro de 2022, a morte do
famigerado “orçamento secreto”, forma particularmente esperta de emenda. Como
desdobramento da cruzada, a Controladoria-Geral da União fez inúmeras
auditorias, enquanto o Congresso aprovou, em novembro de 2024, uma lei com
regras um pouco menos frouxas. Em fevereiro, governo e Congresso selaram, e o
STF chancelou, um plano de trabalho para que haja mais transparência e
rastreabilidade do uso da verba.
Apesar das convicções que demonstra sobre a
bagunça nacional provocada pelas emendas, o magistrado sabe que o Supremo está
numa posição delicada. O Congresso alterou a Constituição para emplacar a
impositividade das emendas e o formato “Pix”. Como a Corte
poderia simplesmente anular essas decisões? Certas manifestações públicas do
juiz sugerem que a solução seria relativizar as mudanças constitucionais. Se
tais alterações tiverem afetado outros dispositivos da Carta de 1988, o Supremo
tem o dever de apontar e corrigir o problema. O choque com o sistema
presidencialista é um deles. Outro é com a exigência de responsabilidade
fiscal. Em 2021, o Legislativo inseriu na Constituição que o País tem de manter
a dívida pública sob controle.
Para definir a solução, Dino convocou uma
audiência pública sobre as três ações que o PSOL, a Procuradoria-Geral da
República e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo apresentaram. O
debate foi realizado no Supremo em 27 de junho. Compareceram 30 expositores,
parte convidada pelo gabinete do ministro, parte presente por iniciativa
própria. No primeiro grupo, a maioria criticou as emendas, uma pista da visão
que o juiz gostaria de ver exposta. Só quem atravessou o samba foram os
representantes do governo, do Congresso e do TCU, órgão auxiliar do
Legislativo.
“É preciso devolver ao Executivo a gestão do
orçamento”, disse na audiência o economista Felipe Salto, ex-diretor da
Autoridade Fiscal Independente, órgão do Senado. “Precisamos cortar as
emendas.” Segundo ele, a evolução do tamanho das verbas anuais separadas para
os congressistas impede o controle da dívida pública. Esses recursos
representam perto de 25% daquilo que o governo pode gastar livremente. Nos
Estados Unidos, terra do Parlamento mais poderoso do mundo, equivale a 1%,
segundo Helio Tollini, especialista em finanças públicas. Este e um consultor
do Senado, Marcos Mendes, fizeram um estudo comparado entre o Brasil e 11
nações da OCDE, clube de ricos ou simpatizantes, e constataram a existência de
uma jabuticaba nacional. “O Congresso brasileiro tem um poder muito maior do
que o de países que a gente estudou, no sentido de indicar recursos para suas
bases eleitorais, isso não existe em nenhum lugar do mundo.”
Dino: “É de clareza solar que jamais houve
tamanho desarranjo institucional com tanto dinheiro público em tão poucos anos”
O envio de dinheiro para as bases influencia
as campanhas de prefeitos, e depois os alcaides tornam-se cabos eleitorais dos
parlamentares responsáveis pelas emendas. A advogada Marilda de Paula Silveira,
vice-coordenadora-geral da Transparência Eleitoral do Brasil, anotou na
audiência pública: no ano passado, 82% dos prefeitos se reelegeram, dos quais
98% de cidades destinatárias de emendas. Foi o maior nível de reeleição da
história, conforme a Confederação Nacional dos Municípios. Segundo Silveira, apenas
dois casos de potencial compra de votos via emendas chegaram à Justiça
Eleitoral. Um não andou por falta de legitimidade de uma das partes. O outro,
de 2018, envolveu o então governador do Tocantins, Mauro Carlesse, do PP. O
Tribunal Superior Eleitoral entendeu que Carlesse não poderia ser punido, pois
o alegado abuso de poder econômico teria sido por meio de dinheiro de “emenda
impositiva”, ou seja, supostamente sem uma decisão voluntária do acusado.
“Essas emendas hoje servem muito mais como
instrumento da gestão política dos seus atores, de interesses eleitoreiros, do
que de interesses maiores da sociedade brasileira”, afirmou o governador de
Mato Grosso, Mauro Mendes, do União Brasil, na audiência pública no STF. Em
Mato Grosso, também há emenda impositiva. Depois de sete anos no cargo, Mendes
disse que a impositividade ignora o princípio da eficiência da gestão pública,
previsto no artigo 37 da Constituição. E defendeu o “debate corajoso” do que
chamou de “anomalia”, a captura de uma fatia enorme do orçamento pelos
parlamentos. “Assim como o Executivo no passado fazia para tutelar o
Legislativo, hoje boa parte dos parlamentares faz para tutelar suas bases e o
processo eleitoral. É uma distorção do processo eleitoral brasileiro.”
Renato Ramalho, da Associação Nacional dos
Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, a Anape, disse na audiência
pública que 23 estados têm orçamento impositivo, um total de 12 bilhões de
reais por ano. Cada deputado federal, comentou ele, tem o poder de definir
sozinho o destino de 37 milhões de reais, mais que o estado de Sergipe tem
para cuidar da malha rodoviária neste ano. Na cidade gaúcha de Pelotas, a
Câmara de Vereadores não apenas obrigou o prefeito a gastar com emendas
impositivas, como também instituiu um cronograma de pagamentos que, se
descumprido, significa crime de responsabilidade, ou seja, é passível de
impeachment. As emendas, declarou ele, deveriam estar atreladas aos planos do
Executivo, priorizar obras em curso ou paradas e estar limitadas a um
porcentual das despesas, não das receitas públicas.
Após dez anos de experiência com emendas
impositivas, disse Élida Graziane Pinto, professora de Finanças Públicas da
FGV, é possível fazer uma avaliação histórica e empírica do fenômeno. E a
conclusão não é nada boa. As emendas são uma forma nova de “coronelismo
político”, crava. Mais: os paramentares deram-se o direito de indicar ONGs que
receberão verbas de emenda, uma forma de driblar a Lei de Licitações. Chegou ao
gabinete de Dino a informação de que uma organização não governamental de
castração de cães e gatos foi criada em São Paulo só para receber dinheiro de
emenda. Um deputado mandou dinheiro para asfaltar ruas no próprio condomínio em
que mora, caso de Fábio Teruel, do MDB paulista. No Congresso, comenta-se que
um parlamentar da Região Norte enviou recursos de emenda para uma faculdade
paulista de medicina, porque o filho estuda lá e não paga mensalidade.
Os representantes do Congresso na audiência
pública destoaram, obviamente. Aliás, deveriam ter comparecido os próprios
presidentes da Câmara, Hugo Motta, e do Senado, Davi Alcolumbre, mas a dupla deu
bolo em Dino. No mesmo dia do debate, a Polícia Federal saiu logo
cedo às ruas em mais uma operação contra falcatruas com emendas. A propósito,
em Patos, cidade da Paraíba governada pelo pai de Motta, houve falcatruas com
recursos direcionados pelo deputado para obras rodoviárias. Entre maio e junho,
o Ministério Público Federal denunciou 13 acusados em diferentes crimes. Todos
viraram réus, entre eles Eulanda Ferreira da Silva, chefe da área de convênio
da gestão do prefeito Nabor Wanderley. O dinheiro separado por Motta chegou a
Patos por meio de um convênio da prefeitura com o Ministério do Desenvolvimento
Regional.
De volta à audiência pública no STF.
Advogada-geral do Senado, Gabrielle Tatith Pereira afirmou que as emendas
atendem cidades e populações pobres e que o Legislativo existe para conter os
poderes do Executivo. “A impositividade vem para assegurar a participação de
partidos e parlamentares de oposição, antes preteridos na alocação de
recursos”, declarou. Advogado-geral da Câmara, Jules Michelet Pereira
acrescentou que a taxa de reeleição da Câmara em 2022 foi de 40%, em linha com
os 47% de 2018 e os 43% de 2014, indício de que não haveria a renovação de
mandatos por obra da farra dos recursos.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem
repetido, em entrevistas, a imagem cunhada por Dino de quatro sistemas de
governo no mundo, um dos quais exclusivo do Brasil das emendas. E o faz de
forma crítica, de quem vê problemas para governar. Líder de Lula no Senado e
principal conselheiro político presidencial, o petista Jaques Wagner, da Bahia,
pensa da mesma forma. Considera as emendas o “oxigênio” do Congresso. A uma
revista do PT, disse em junho que elas são fruto de uma relação
“comercializada” estabelecida por Bolsonaro com o Legislativo e que criam
dificuldades para Lula.
“É preciso devolver ao Executivo a gestão do
orçamento”, afirmou o economista Felipe Salto, ex-diretor da Autoridade Fiscal
Independente, órgão do Senado
Até aqui, o governo tem, no entanto,
defendido a constitucionalidade das emendas impositivas e do tipo “Pix”. “A
AGU, portanto, reafirma sua posição na atual quadra pela compatibilidade das
disposições questionadas”, afirmou na audiência pública o advogado-geral da
União, Jorge Messias. Segundo ele, é preciso esperar mais um tempo para uma
“completa avaliação”, após a lei complementar de novembro de 2024 e o
plano de trabalho de fevereiro de 2025. “Que cada instância respeite o
papel da outra, evitando o acentuamento de conflitos que possam interditar o
progresso”, declarou Messias na audiência pública, comentário de quem teme que
a eventual derrubada das emendas impositivas e do tipo Pix pelo Supremo
cause um terremoto em Brasília. “É hora de superar os conflitos”, prosseguiu, e
de buscar “paz” e “estabilidade”. “A paz verdadeira é fruto da justiça”,
retrucou Dino em seguida. “O senhor no Executivo e o Legislativo que se virem
com a paz, a minha parte aqui é mais a parte da Justiça, para que haja paz.”
Em 23 de outubro do ano passado, Messias e
Dino participaram de uma reunião no Supremo com o presidente da Corte, Luís
Roberto Barroso, e o então chefe da Câmara, Arthur Lira, do PP. A certa altura,
lembra uma testemunha, Dino cobrou do deputado a liberação total, pelo
Congresso, de informações sobre autoria e destino de emendas entre 2019 e 2024.
Messias olhou para o parlamentar de uma maneira de quem achava a cobrança um
pouco demais e de quem se solidarizava com Lira.
Não é difícil entender certa dubiedade do
governo, nem por que o juiz se sente um cavaleiro solitário nesta cruzada,
apesar de, no Congresso, muita gente estar convicta de que ele age em
dobradinha com Lula. Há vários ministros parlamentares e, portanto, autores de
emendas. Recorde-se: em dezembro de 2022, dias antes da posse do presidente
Lula, o time petista selou um acordo no Congresso para aprovar a “PEC da
Transição”, que daria alguns bilhões de fôlego financeiro ao novo governo para
gastos sociais. A proposta foi aprovada dois dias depois de o STF julgar que o
“orçamento secreto” deveria morrer. Aquele acordo no Congresso foi uma espécie
de “pecado original” da gestão Lula 3, na visão de um petista do Senado. O
preço político foi o aumento de 1,2% para 2% do bolo da receita federal
destinado a emendas individuais. Cerca de 10 bilhões de reais “mortos”
pelo julgamento do STF sobre o orçamento secreto foram ressuscitados nas
negociações da PEC da Transição.
Além disso, o avanço de investigações da PF
sobre desvios de emendas começa a atingir petistas. O líder do governo na
Câmara, José Guimarães, do Ceará, tornou-se alvo de um inquérito aberto
recentemente, por ordem de Mendes. Um prefeito petista da cidade baiana de
Ibipitanga foi preso em junho em outra frente de apuração, numa operação
autorizada por Nunes Marques. De qualquer forma, quem primeiro deve prestar
contas à Justiça por falcatruas com emendas é o PL de Jair Bolsonaro. Josimar
do Maranhãozinho e Pastor Gil, ambos eleitos pelo Maranhão de Dino, e Bosco
Costa, de Sergipe, são réus desde abril. Em agosto, serão realizados sete dias
de depoimentos na ação penal, aos cuidados de Cristiano Zanin, o que significa
que o processo está na fase final.
Também está nos estertores a chamada
instrução processual levada adiante por Dino nas ações contra as emendas
parlamentares. No momento em que o juiz liberar o caso para um veredicto,
caberá ao presidente do Supremo decidir quando, e se, pautar o julgamento.
Tarefa que caberá, provavelmente, a Edson Fachin, próximo presidente do STF, a
partir de setembro. Fachin participou do encerramento da audiência pública de
27 de junho como representante de Barroso, que estava fora de Brasília. E
comentou sobre as ações: “Um dos temas mais relevantes para o sentido da
República e do Estado Democrático de Direito”.
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