sábado, 19 de julho de 2025

Apocalipse no STF - André Barrocal

CartaCapital

Flávio Dino encara a missão de restabelecer o equilíbrio político no Brasil. Terá o apoio da corte?

Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, é um cristão devoto. Outro dia abriu uma divergência na Corte e votou contra o relatório de um colega, Kassio Nunes Marques, que propõe derrubar uma lei potiguar que obriga bibliotecas públicas a manterem Bíblias, um processo inconcluso. Em 3 de julho, estava em Lisboa, em um convescote anual organizado por outro juiz do STF, Gilmar Mendes, e disse que, por ser religioso, acredita no “apocalipse”. Era um comentário metafórico para definir o possível desfecho de um caso explosivo em suas mãos. Três ações levadas ao Tribunal em 2024 defendem a inconstitucionalidade das emendas parlamentares impositivas e o formato “Pix”, um modo de liberação a jato dessas verbas orçamentárias. “Do ponto de vista institucional”, afirmou Dino, a anulação dessas emendas “seria uma coisa meio apocalíptica”. Uma refundação do sistema político, algo que o togado parece disposto a levar adiante.

Emendas são obras inseridas por deputados e senadores no orçamento. O gigantismo financeiro das liberações e seu caráter impositivo reconfiguraram a política. A partir de 2015, o Congresso mudou várias vezes a Constituição para obrigar o governo a direcionar às emendas uma fatia da receita e a liberar o dinheiro sem interferência ou negociação. De lá para cá, o bolo totalizou 289 bilhões de reais, dos quais 187 bilhões foram efetivamente gastos. A cifra anual saltou de 9 bilhões em 2015 para 50 bilhões em 2025. O Legislativo controla 1 de cada 4 reais que o governo tem para gerir livremente. Nasceu um parlamentarismo disfarçado, uma situação que Dino descreveu assim em um despacho de dezembro passado: “Não é excessivo afirmar que hoje, no mundo, há os países: a) presidencialistas; b) parlamentaristas; c) semipresidencialistas; e d) o Brasil, com um sistema de governo absolutamente singular”. E está certo isso?, indagou ao magistrado o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, durante visita ao STF em 18 de fevereiro. Resposta: “Me pergunto isso todo dia”.

Acabar com as emendas impositivas e o modelo Pix de liberação conteria a hipertrofia do Congresso

A morte do parlamentarismo à brasileira, na hipótese de o Supremo aceitar as três ações sob relatoria de Dino, provocaria o “apocalipse” prenunciado pelo juiz. A política nacional está viciada em emendas. Deputados e senadores não abrem mão desse poder, muito menos do dinheiro. Ao amarrarem os braços do governo com a “impositividade”, ficam livres para fazer jogo duro com o Palácio do Planalto e agir de forma mais “ideológica” (ou interesseira), e que se danem as contas públicas. Esse modelo, copiado por estados e municípios, atrapalha o planejamento dos investimentos públicos e beneficia oligarquias políticas em eleições influenciadas pelos recursos das emendas. Além, claro, de prestar-se a pilantragens. “É de clareza solar que jamais houve tamanho desarranjo institucional com tanto dinheiro público em tão poucos anos”, anotou Dino em um despacho. Segundo ele, é o maior caso de corrupção da história do País.

O juiz enxerga uma crise profunda do presidencialismo e da separação de poderes em decorrência das emendas. Acredita que nenhuma força política é capaz de governar o País hoje, pois construir maioria legislativa ficou complicadíssimo. “No momento em que você pega recursos da União, arrecadação tributária da União, e descentraliza, muito fortemente, pela via das emendas, você num certo sentido está sabotando a repartição constitucional de competências materiais”, declarou no evento em Lisboa.

Dino está em uma cruzada moralizadora das emendas há quase um ano. Tomou as primeiras decisões a respeito em 1º de agosto de 2024. Valeu-se do fato de ter herdado de Rosa Weber a ação, de autoria do PSOL, que tinha levado o Supremo a decretar, em dezembro de 2022, a morte do famigerado “orçamento secreto”, forma particularmente esperta de emenda. Como desdobramento da cruzada, a Controladoria-Geral da União fez inúmeras auditorias, enquanto o Congresso aprovou, em novembro de 2024, uma lei com regras um pouco menos frouxas. Em fevereiro, governo e Congresso selaram, e o STF chancelou, um plano de trabalho para que haja mais transparência e rastreabilidade do uso da verba.

Apesar das convicções que demonstra sobre a bagunça nacional provocada pelas emendas, o magistrado sabe que o Supremo está numa posição delicada. O Congresso alterou a Constituição para emplacar a impositividade das emendas e o formato “Pix”. Como a Corte poderia simplesmente anular essas decisões? Certas manifestações públicas do juiz sugerem que a solução seria relativizar as mudanças constitucionais. Se tais alterações tiverem afetado outros dispositivos da Carta de 1988, o Supremo tem o dever de apontar e corrigir o problema. O choque com o sistema presidencialista é um deles. Outro é com a exigência de responsabilidade fiscal. Em 2021, o Legislativo inseriu na Constituição que o País tem de manter a dívida pública sob controle.

Para definir a solução, Dino convocou uma audiência pública sobre as três ações que o PSOL, a Procuradoria-Geral da República e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo apresentaram. O debate foi realizado no Supremo em 27 de junho. Compareceram 30 expositores, parte convidada pelo gabinete do ministro, parte presente por iniciativa própria. No primeiro grupo, a maioria criticou as emendas, uma pista da visão que o juiz gostaria de ver exposta. Só quem atravessou o samba foram os representantes do governo, do Congresso e do TCU, órgão auxiliar do Legislativo.

“É preciso devolver ao Executivo a gestão do orçamento”, disse na audiência o economista Felipe Salto, ex-diretor da Autoridade Fiscal Independente, órgão do Senado. “Precisamos cortar as emendas.” Segundo ele, a evolução do tamanho das verbas anuais separadas para os congressistas impede o controle da dívida pública. Esses recursos representam perto de 25% daquilo que o governo pode gastar livremente. Nos Estados Unidos, terra do Parlamento mais poderoso do mundo, equivale a 1%, segundo Helio Tollini, especialista em finanças públicas. Este e um consultor do Senado, Marcos Mendes, fizeram um estudo comparado entre o Brasil e 11 nações da OCDE, clube de ricos ou simpatizantes, e constataram a existência de uma jabuticaba nacional. “O Congresso brasileiro tem um poder muito maior do que o de países que a gente estudou, no sentido de indicar recursos para suas bases eleitorais, isso não existe em nenhum lugar do mundo.”

Dino: “É de clareza solar que jamais houve tamanho desarranjo institucional com tanto dinheiro público em tão poucos anos”

O envio de dinheiro para as bases influencia as campanhas de prefeitos, e depois os alcaides tornam-se cabos eleitorais dos parlamentares responsáveis pelas emendas. A advogada Marilda de Paula Silveira, vice-coordenadora-geral da Transparência Eleitoral do Brasil, anotou na audiência pública: no ano passado, 82% dos prefeitos se reelegeram, dos quais 98% de cidades destinatárias de emendas. Foi o maior nível de reeleição da história, conforme a Confederação Nacional dos Municípios. Segundo Silveira, apenas dois casos de potencial compra de votos via emendas chegaram à Justiça Eleitoral. Um não andou por falta de legitimidade de uma das partes. O outro, de 2018, envolveu o então governador do Tocantins, Mauro Carlesse, do PP. O Tribunal Superior Eleitoral entendeu que Carlesse não poderia ser punido, pois o alegado abuso de poder econômico teria sido por meio de dinheiro de “emenda impositiva”, ou seja, supostamente sem uma decisão voluntária do acusado.

“Essas emendas hoje servem muito mais como instrumento da gestão política dos seus atores, de interesses eleitoreiros, do que de interesses maiores da sociedade brasileira”, afirmou o governador de Mato Grosso, Mauro Mendes, do União Brasil, na audiência pública no STF. Em Mato Grosso, também há emenda impositiva. Depois de sete anos no cargo, Mendes disse que a impositividade ignora o princípio da eficiência da gestão pública, previsto no artigo 37 da Constituição. E defendeu o “debate corajoso” do que chamou de “anomalia”, a captura de uma fatia enorme do orçamento pelos parlamentos. “Assim como o Executivo no passado fazia para tutelar o Legislativo, hoje boa parte dos parlamentares faz para tutelar suas bases e o processo eleitoral. É uma distorção do processo eleitoral brasileiro.”

Renato Ramalho, da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, a Anape, disse na audiência pública que 23 estados têm orçamento impositivo, um total de 12 bilhões de reais por ano. Cada deputado federal, comentou ele, tem o poder de definir sozinho o destino de 37 milhões de ­reais, mais que o estado de Sergipe tem para cuidar da malha rodoviária neste ano. Na cidade gaúcha de Pelotas, a Câmara de Vereadores não apenas obrigou o prefeito a gastar com emendas impositivas, como também instituiu um cronograma de pagamentos que, se descumprido, significa crime de responsabilidade, ou seja, é passível de impeachment. As emendas, declarou ele, deveriam estar atreladas aos planos do Executivo, priorizar obras em curso ou paradas e estar limitadas a um porcentual das despesas, não das receitas públicas.

Após dez anos de experiência com emendas impositivas, disse Élida Graziane Pinto, professora de Finanças Públicas da FGV, é possível fazer uma avaliação histórica e empírica do fenômeno. E a conclusão não é nada boa. As emendas são uma forma nova de “coronelismo político”, crava. Mais: os paramentares deram-se o direito de indicar ONGs que receberão verbas de emenda, uma forma de driblar a Lei de Licitações. Chegou ao gabinete de Dino a informação de que uma organização não governamental de castração de cães e gatos foi criada em São Paulo só para receber dinheiro de emenda. Um deputado mandou dinheiro para asfaltar ruas no próprio condomínio em que mora, caso de Fábio Teruel, do MDB paulista. No Congresso, comenta-se que um parlamentar da Região Norte enviou recursos de emenda para uma faculdade paulista de medicina, porque o filho estuda lá e não paga mensalidade.

Os representantes do Congresso na audiência pública destoaram, obviamente. Aliás, deveriam ter comparecido os próprios presidentes da Câmara, Hugo Motta, e do Senado, Davi Alcolumbre, mas a dupla deu bolo em Dino. No mesmo dia do debate, a Polícia Federal saiu logo cedo às ruas em mais uma operação contra falcatruas com emendas. A propósito, em Patos, cidade da Paraíba governada pelo pai de Motta, houve falcatruas com recursos direcionados pelo deputado para obras rodoviárias. Entre maio e junho, o Ministério Público Federal denunciou 13 acusados em diferentes crimes. Todos viraram réus, entre eles Eulanda Ferreira da Silva, chefe da área de convênio da gestão do prefeito Nabor Wanderley. O dinheiro separado por Motta chegou a Patos por meio de um convênio da prefeitura com o Ministério do Desenvolvimento Regional.

De volta à audiência pública no STF. Advogada-geral do Senado, Gabrielle Tatith Pereira afirmou que as emendas atendem cidades e populações pobres e que o Legislativo existe para conter os poderes do Executivo. “A impositividade vem para assegurar a participação de partidos e parlamentares de oposição, antes preteridos na alocação de recursos”, declarou. Advogado-geral da Câmara, Jules Michelet Pereira acrescentou que a taxa de reeleição da Câmara em 2022 foi de 40%, em linha com os 47% de 2018 e os 43% de 2014, indício de que não haveria a renovação de mandatos por obra da farra dos recursos.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem repetido, em entrevistas, a imagem cunhada por Dino de quatro sistemas de governo no mundo, um dos quais exclusivo do Brasil das emendas. E o faz de forma crítica, de quem vê problemas para governar. Líder de Lula no Senado e principal conselheiro político presidencial, o petista Jaques Wagner, da Bahia, pensa da mesma forma. Considera as emendas o “oxigênio” do Congresso. A uma revista do PT, disse em junho que elas são fruto de uma relação “comercializada” estabelecida por Bolsonaro com o Legislativo e que criam dificuldades para Lula.

“É preciso devolver ao Executivo a gestão do orçamento”, afirmou o economista Felipe Salto, ex-diretor da Autoridade Fiscal Independente, órgão do Senado

Até aqui, o governo tem, no entanto, defendido a constitucionalidade das emendas impositivas e do tipo “Pix”. “A AGU, portanto, reafirma sua posição na atual quadra pela compatibilidade das disposições questionadas”, afirmou na audiência pública o advogado-geral da União, Jorge Messias. Segundo ele, é preciso esperar mais um tempo para uma “completa avaliação”, após a lei complementar de novembro de 2024 e o plano de trabalho de fevereiro de 2025. “Que cada instância respeite o papel da outra, evitando o acentuamento de conflitos que possam interditar o progresso”, declarou Messias na audiência pública, comentário de quem teme que a eventual derrubada das emendas impositivas e do tipo Pix pelo Supremo cause um terremoto em Brasília. “É hora de superar os conflitos”, prosseguiu, e de buscar “paz” e “estabilidade”. “A paz verdadeira é fruto da justiça”, retrucou Dino em seguida. “O senhor no Executivo e o Legislativo que se virem com a paz, a minha parte aqui é mais a parte da Justiça, para que haja paz.”

Em 23 de outubro do ano passado, Messias e Dino participaram de uma reunião no Supremo com o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, e o então chefe da Câmara, Arthur Lira, do PP. A certa altura, lembra uma testemunha, Dino cobrou do deputado a liberação total, pelo Congresso, de informações sobre autoria e destino de emendas entre 2019 e 2024. Messias olhou para o parlamentar de uma maneira de quem achava a cobrança um pouco demais e de quem se solidarizava com Lira.

Não é difícil entender certa dubiedade do governo, nem por que o juiz se sente um cavaleiro solitário nesta cruzada, apesar de, no Congresso, muita gente estar convicta de que ele age em dobradinha com Lula. Há vários ministros parlamentares e, portanto, autores de emendas. Recorde-se: em dezembro de 2022, dias antes da posse do presidente Lula, o time petista selou um acordo no Congresso para aprovar a “PEC da Transição”, que daria alguns bilhões de fôlego financeiro ao novo governo para gastos sociais. A proposta foi aprovada dois dias depois de o STF julgar que o “orçamento secreto” deveria morrer. Aquele acordo no Congresso foi uma espécie de “pecado original” da gestão Lula 3, na visão de um petista do Senado. O preço político foi o aumento de 1,2% para 2% do bolo da receita federal destinado a emendas individuais. Cerca de 10 bilhões de reais “mortos” pelo julgamento do STF sobre o orçamento secreto foram ressuscitados nas negociações da PEC da Transição.

Além disso, o avanço de investigações da PF sobre desvios de emendas começa a atingir petistas. O líder do governo na Câmara, José Guimarães, do Ceará, tornou-se alvo de um inquérito aberto recentemente, por ordem de Mendes. Um prefeito petista da cidade baiana de Ibipitanga foi preso em junho em outra frente de apuração, numa operação autorizada por Nunes Marques. De qualquer forma, quem primeiro deve prestar contas à Justiça por falcatruas com emendas é o PL de Jair Bolsonaro. Josimar do Maranhãozinho e Pastor Gil, ambos eleitos pelo Maranhão de Dino, e Bosco Costa, de Sergipe, são réus desde abril. Em agosto, serão realizados sete dias de depoimentos na ação penal, aos cuidados de Cristiano Zanin, o que significa que o processo está na fase final.

Também está nos estertores a chamada instrução processual levada adiante por Dino nas ações contra as emendas parlamentares. No momento em que o juiz liberar o caso para um veredicto, caberá ao presidente do Supremo decidir quando, e se, pautar o julgamento. Tarefa que caberá, provavelmente, a Edson Fachin, próximo presidente do STF, a partir de setembro. Fachin participou do encerramento da audiência pública de 27 de junho como representante de Barroso, que estava fora de Brasília. E comentou sobre as ações: “Um dos temas mais relevantes para o sentido da República e do Estado Democrático de Direito”.  

Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.

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