sábado, 19 de julho de 2025

Inimigo do povo? - Renê Trentin

CartaCapital

Denunciar quem vota contra os trabalhadores não basta, é preciso educar para a escolha consciente dos nossos representantes no parlamento

O fenômeno dos vídeos que viralizaram nas redes sociais, produzidos por setores progressistas com o emprego de Inteligência Artificial, em resposta às últimas medidas escandalosamente antipopulares do Congresso Nacional, mostrou, de modo inequívoco, que as mídias digitais são um campo de batalha política e ideológica, um poderoso instrumento de conquista de mentes e corações para um determinado projeto político. A campanha focou, sobretudo, em questões como a recusa de tributar os ricos na batalha do IOF e o aumento do número de deputados federais.

A direita e a extrema-direita há muito perceberam o potencial dessas mídias e as elegeram como seu principal ambiente e instrumento de militância ideológica. Os métodos por elas empregados não costumam, porém, primar pela ética e pelo compromisso com a verdade: difundem-se notícias falsas, mentiras, desinformação, preconceitos de todo tipo, ataques pessoais, discursos de ódio. Tudo em nome da manutenção dos mandatos dos representantes desses setores, à custa da ignorância e da vulnerabilidade intelectual em que buscam manter a população.

A esquerda, por sua vez, aparentemente menos íntima dessa modalidade de comunicação, parece ter finalmente acordado. Foram-se os tempos da panfletagem em porta de fábrica, do jornal impresso distribuído nas ruas, da visita de casa em casa chamando ingloriamente para discutir política. Evidentemente, não se excluem essas ações que, em determinadas circunstâncias, permanecem válidas e eficazes. E, olhando daqui, do futuro, aqueles tempos até parecem ter sido bons, mas já passaram. Hoje, dominar as ferramentas tecnológicas, incluindo a Inteligência Artificial, e inserir-se no mundo digital, é condição necessária para atingir as massas.

Os métodos e os objetivos da esquerda devem, contudo, ir além da resposta imediata a problemas conjunturais, por mais que isso também seja importante. O impacto positivo que os vídeos parecem ter produzido abre uma janela de oportunidade também para uma ação pedagógica de médio e longo prazo, que evidencie o papel do Poder Legislativo, em geral menos valorizado pelo eleitor, e a importância da escolha consciente – com consciência de classe – dos representantes parlamentares. Para tanto, seria interessante, por exemplo, não apenas denunciar nominalmente deputados e senadores comprometidos com banqueiros e grupos empresariais, e que votam contra o povo, mas também dar visibilidade àqueles que, comprometidos com as classes populares, votam a seu favor.

Ao reforçar o desprezo pelo Legislativo, corre-se o risco de aumentar a apatia popular nas eleições

A hashtag #CongressoInimigoDoPovo atingiu em cheio a hipocrisia da maioria dos parlamentares e pôs a nu seus verdadeiros compromissos e interesses. No calor da polêmica, essa estratégia foi importante: derrubaram-se máscaras, deram-se nomes aos bois, vestiram-se carapuças e obrigaram-se baratas a saí­rem do esgoto. Nesse sentido, a campanha midiática teve também valor pedagógico, ao evidenciar o caráter classista da composição do Congresso ­Nacional. Efeito semelhante teve a alcunha de “Hugo nem se importa”, atribuída ao presidente da Câmara Federal.

No entanto, a generalização da imagem do Congresso como inimigo do povo, abstraindo suas contradições internas e a multiplicidade de forças e posições políticas que abriga, não apenas produz uma ideia falseada daquela instituição como também pode trazer efeito deletério para a própria esquerda: a intensificação da rejeição popular a essa esfera de poder, levando a um desinteresse ainda maior da população pela eleição de candidatos proporcionais. Isso parece beneficiar apenas à direita que, certamente, seguirá recorrendo ao poder econômico e aos artifícios eleitoreiros a ele associados para se perpetuar no poder. Para o campo progressista, o desprezo popular pelo Congresso representará um obstáculo muito maior à eleição de parlamentares em número suficiente para viabilizar a implementação de políticas de interesse popular. E as eleições de 2026 estão logo aí…

A janela que se abriu pode e deve ser bem aproveitada pela esquerda. De fato, o momento atual parece propício para uma ação educativa que busque explicar de forma didática, atrativa e, ao mesmo tempo, rigorosa, políticas de interesse social como taxação de grandes fortunas e dividendos, fim dos incentivos fiscais a grandes empresas, isenção de Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais, extinção do orçamento secreto e do atual sistema de emendas parlamentares, fim dos supersalários de setores privilegiados do funcionalismo, redução da jornada de trabalho, prioridade nos investimentos públicos para a educação e saúde, defesa da democracia e da soberania nacional, reforma agrária, fortalecimento da agricultura familiar e combate efetivo ao aquecimento global. Por que, então, não começar, desde já, uma campanha de conscientização sobre essas e outras pautas e sobre os partidos e os parlamentares que com elas se comprometem, sem deixar de fazer a denúncia dos inimigos do povo? Por que não mostrar claramente que expurgá-los do Congresso só depende da vontade popular?

O momento é propício, as ferramentas existem e ao menos parte da esquerda mostrou que sabe usá-las com inteligência, criatividade e bom humor. Se haverá vontade política para seguir nesse caminho, veremos nos próximos capítulos. Mas parece indubitável que isso é necessário para que venhamos a ter um Congresso amigo do povo. •

*Professor titular da Faculdade de Educação da Unicamp.

Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.

 

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