O Globo
O alvo de Donald Trump é o
papel do Brasil na conformação multipolar das relações de poder mundial
O Brasil está sob ataque de
potência estrangeira voltada ao seu setor produtivo. Cabe ao país refletir
sobre a questão sob a ótica da geopolítica, que organiza as relações
internacionais contemporâneas numa renhida disputa pelo poder, tendo em vista a
redefinição da potência hegemônica no mundo.
Para os Estados Unidos, há
um duplo objetivo com as tarifas. O primeiro, endógeno, é reindustrializar o
país no contexto da agenda do movimento Make America Great Again, que busca
reverter o declínio de sua hegemonia. Afinal, o protecionismo já foi um caminho
bem-sucedido trilhado pelos Estados Unidos para se tornar a potência hegemônica
no século XX. Alexander Hamilton que o diga.
Um segundo objetivo, exógeno, refere-se ao balanço de forças no sistema internacional: subjugar e forçar rendições — como no acordo com a União Europeia — ou a reorganização de alianças, caso das sanções à Índia por sua relação com a Rússia.
A interpretação de que o
“tarifaço” de Trump foi atenuado é meia-verdade — o foi em bens e produtos em
que interessa a Washington a não imposição de tarifas elevadas. Mas em áreas
críticas ao Brasil (especialmente agro e manufaturas industriais), somos o país
com as maiores tarifas anunciadas pelos Estados Unidos. As justificativas para
as sanções são políticas. Tecnicamente, são inconsistentes, pois nossa balança
é deficitária com os Estados Unidos.
Porém, a razão oculta é de
natureza estratégica: o papel potencial do Brasil na construção de um sistema
internacional com múltiplos polos de poder, sem hegemonismos. Trump expressou
essa questão em sua reação ao Brics, presidido pelo Brasil, especialmente no
que diz respeito ao “núcleo duro” de sua agenda relacionada ao reequilíbrio do
poder mundial: a substituição da hegemonia do dólar, meio pelo qual os Estados
Unidos colocam o mundo para financiá-los desde Bretton Woods.
O alvo de Trump é o papel do
Brasil na conformação multipolar das relações de poder mundial, algo de nosso
interesse nacional direto. Afinal, um mundo onde o poder seja mais diluído
permite ao Brasil — país com escassos excedentes de poder e com crônicas
vulnerabilidades — manobrar melhor, tendo em vista seu projeto nacional, não se
subordinando a quaisquer interesses senão os seus próprios, numa atitude
pendular em relação às grandes potências.
A justificativa política das sanções é, portanto, mero pretexto, mas funcional aos objetivos estratégicos por suas consequências diretas na política interna brasileira: mobilizar parte relevante da sociedade — que apoia o ex-presidente Jair Bolsonaro— em suporte quase automático aos Estados Unidos — uma quinta-coluna —, ainda que à custa de interesses vitais do Brasil.
Com isso, aprofundam a
quebra da coesão nacional, num cenário ideal que permite os ataques ao Brasil e
sob o qual operam. Divididos quanto aos nossos objetivos nacionais permanentes,
somos presa fácil.
As grandes vulnerabilidades
nacionais permitem a ação de grandes potências visando à contenção do potencial
do Brasil. Uma das mais dramáticas, porém, é resultado de uma opção interna:
três décadas de uma economia estruturalmente rentista, que comprometerá neste
ano 8%-9% do PIB em juros. A crise fiscal decorrente disso impede o país de
enfrentar questões estruturais grandes e urgentes.
Uma das principais é nossa
vulnerabilidade militar. Num mundo cada vez mais perigoso e ameaçador a uma
nação com as características do Brasil, somos rigorosamente um país desarmado
na capacidade de dissuasão das grandes potências.
Desistir da busca de um
mundo com poder mais diluído não é uma opção para o Brasil, motivo pelo qual o
Brics é essencial — menos ainda render-se ou ser subjugado por potência
estrangeira.
Nosso caminho é dobrar a
aposta na autonomia nacional, enfrentar nossas vulnerabilidades nacionais
crônicas e unir os brasileiros em torno da realização de nosso enorme
potencial, como já conseguimos fazê-lo, num passado não muito distante.
*Ronaldo Carmona é professor
de geopolítica da Escola Superior de Guerra
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