sábado, 2 de agosto de 2025

O tarifaço e a hegemonia dos EUA - Ronaldo Carmona*

O Globo

O alvo de Donald Trump é o papel do Brasil na conformação multipolar das relações de poder mundial

O Brasil está sob ataque de potência estrangeira voltada ao seu setor produtivo. Cabe ao país refletir sobre a questão sob a ótica da geopolítica, que organiza as relações internacionais contemporâneas numa renhida disputa pelo poder, tendo em vista a redefinição da potência hegemônica no mundo.

Para os Estados Unidos, há um duplo objetivo com as tarifas. O primeiro, endógeno, é reindustrializar o país no contexto da agenda do movimento Make America Great Again, que busca reverter o declínio de sua hegemonia. Afinal, o protecionismo já foi um caminho bem-sucedido trilhado pelos Estados Unidos para se tornar a potência hegemônica no século XX. Alexander Hamilton que o diga.

Um segundo objetivo, exógeno, refere-se ao balanço de forças no sistema internacional: subjugar e forçar rendições — como no acordo com a União Europeia — ou a reorganização de alianças, caso das sanções à Índia por sua relação com a Rússia.

A interpretação de que o “tarifaço” de Trump foi atenuado é meia-verdade — o foi em bens e produtos em que interessa a Washington a não imposição de tarifas elevadas. Mas em áreas críticas ao Brasil (especialmente agro e manufaturas industriais), somos o país com as maiores tarifas anunciadas pelos Estados Unidos. As justificativas para as sanções são políticas. Tecnicamente, são inconsistentes, pois nossa balança é deficitária com os Estados Unidos.

Porém, a razão oculta é de natureza estratégica: o papel potencial do Brasil na construção de um sistema internacional com múltiplos polos de poder, sem hegemonismos. Trump expressou essa questão em sua reação ao Brics, presidido pelo Brasil, especialmente no que diz respeito ao “núcleo duro” de sua agenda relacionada ao reequilíbrio do poder mundial: a substituição da hegemonia do dólar, meio pelo qual os Estados Unidos colocam o mundo para financiá-los desde Bretton Woods.

O alvo de Trump é o papel do Brasil na conformação multipolar das relações de poder mundial, algo de nosso interesse nacional direto. Afinal, um mundo onde o poder seja mais diluído permite ao Brasil — país com escassos excedentes de poder e com crônicas vulnerabilidades — manobrar melhor, tendo em vista seu projeto nacional, não se subordinando a quaisquer interesses senão os seus próprios, numa atitude pendular em relação às grandes potências.

A justificativa política das sanções é, portanto, mero pretexto, mas funcional aos objetivos estratégicos por suas consequências diretas na política interna brasileira: mobilizar parte relevante da sociedade — que apoia o ex-presidente Jair Bolsonaro— em suporte quase automático aos Estados Unidos — uma quinta-coluna —, ainda que à custa de interesses vitais do Brasil.

Com isso, aprofundam a quebra da coesão nacional, num cenário ideal que permite os ataques ao Brasil e sob o qual operam. Divididos quanto aos nossos objetivos nacionais permanentes, somos presa fácil.

As grandes vulnerabilidades nacionais permitem a ação de grandes potências visando à contenção do potencial do Brasil. Uma das mais dramáticas, porém, é resultado de uma opção interna: três décadas de uma economia estruturalmente rentista, que comprometerá neste ano 8%-9% do PIB em juros. A crise fiscal decorrente disso impede o país de enfrentar questões estruturais grandes e urgentes.

Uma das principais é nossa vulnerabilidade militar. Num mundo cada vez mais perigoso e ameaçador a uma nação com as características do Brasil, somos rigorosamente um país desarmado na capacidade de dissuasão das grandes potências.

Desistir da busca de um mundo com poder mais diluído não é uma opção para o Brasil, motivo pelo qual o Brics é essencial — menos ainda render-se ou ser subjugado por potência estrangeira.

Nosso caminho é dobrar a aposta na autonomia nacional, enfrentar nossas vulnerabilidades nacionais crônicas e unir os brasileiros em torno da realização de nosso enorme potencial, como já conseguimos fazê-lo, num passado não muito distante.

*Ronaldo Carmona é professor de geopolítica da Escola Superior de Guerra

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