sábado, 2 de agosto de 2025

Porque hoje é sábado - Flávia Oliveira

O Globo

Saio das sextas-feiras de Oxalá para o dia de Iemanjá, minha orixá

Foi em abril de 2014 a minha estreia como colunista de artigos no GLOBO. Eu já trabalhava no jornal, ora centenário, havia quase duas décadas: fui repórter na Economia, editei cadernos especiais, tornei-me colunista com Negócios & Cia. Passei, então, a escrever duas vezes por semana na recém-criada editoria de Sociedade; circulei pelo Segundo Caderno; retornei à Sociedade; me assentei em Opinião. O primeiro texto como articulista, lá se vão 137 meses, se chamou “Tempos de bigorna”. O turbilhão de mudanças se avizinhava, e fui buscar inspiração num desenho animado da infância, aquele da Warner Bros. em que o Coiote perseguia o Papa-Léguas — e sofria as consequências...

Uma das armadilhas prediletas do protagonista vilão era fazer uma bigorna despencar de um penhasco para atingir o nada ingênuo inimigo. Invariavelmente, quem acabava planificado feito massa de pastel ou folha de papel era o canídeo. Para escrever, pesquisei com o artista Renato Martins, um mestre da forja, a função da bigorna. Descobri que a bigorna, um bloco de ferro revestido de aço que chega a pesar mais de 100 quilos, era o equipamento usado para dar forma ao metal amolecido pelo fogo. Era a metáfora de que precisava para tratar da adaptação ao mundo (até hoje) em transformação e ao meu novo ofício. Só que não do jeito Coiote, que, uma vez achatado, se recompunha com a mesma forma corporal e idênticas ideias.

Um par de anos depois, viajei para Cachoeira (BA) com minha única filha, Isabela, para pesquisar a história de nossa linhagem materna. Minha mãe, Dona Anna, nasceu na cidade histórica que vira capital do estado em todo 2 de julho, data da Independência do Brasil conquistada não pelo príncipe regente montado no cavalo branco às margens do Ipiranga, mas pela luta da gente do povo (mulheres, negros, indígenas) contra tropas portuguesas. Eu sabia que meu avô materno, Astrogildo Manoel de Oliveira, era ferreiro conhecido na região. Era conhecido como Pitu, apelido que legou a dois sucessores.

Quando baixei em Cachoeira, o segundo Pitu tinha morrido não fazia muito tempo. Os instrumentos e as formas que herdara de meu avô, ele deixou para Pitu, o terceiro. Entre eles, a bigorna. Encontrei numa oficina muito simples as ferramentas que pertenceram ao meu avô ferreiro. Pude vê-las e tocá-las, dois anos depois de escrever sobre bigorna. Com a dele, Pitu forjou instrumentos sagrados para terreiros de candomblé e reparou grades de sacadas do casario colonial ainda visível na cidade. Era de Ogum, orixá capaz de fazer do ferro espada, escudo, arado.

Um ano antes de visitar Cachoeira, conheci, num acaso, a ialorixá Mãe Beata de Iemanjá. Também ela era filha do Recôncavo. Ao me apresentar, comentei com ela a coincidência geográfica, falei de minha mãe, já falecida, e mencionei meu avô. Quando ouviu Pitu, ela me olhou e disse:

— Tio Pitu. Era primo-irmão de minha mãe.

Chamou o filho que a acompanhava e disse:

— Adailton (hoje babalorixá do Ilê Axé Omiojuarô), venha conhecer sua prima.

Em seguida, num abraço, me ensinou:

— A ancestralidade é uma coisa muito forte.

Quando visitei a bigorna que pertencera a meu avô, eu já compreendia a força da ancestralidade. O encontro foi pontuado de emoção, não de surpresa. Nesta semana, que marca o aniversário de 100 anos do GLOBO e mais uma mudança na minha coluna, agora aos sábados, a Flup me convocou para mediar uma conversa com Conceição Evaristo e Leci Brandão sobre literatura, samba, afromatriarcado. Uma, 78 anos, professora aposentada, escritora, formuladora do conceito de escrevivência, entendido como a produção literária que emerge das experiências pessoais e coletivas de gênero, raça e classe; outra, 80, cantora e compositora, eleita quatro vezes deputada estadual em São Paulo, pelo PCdoB.

A mesa, parte do processo formativo da edição 2025 da Festa Literária das Periferias (Flup) batizado de Mora na Filosofia, foi intitulada “As coisas que mamãe me ensinou”, verso que dá nome à canção que Leci gravou no álbum “Um ombro amigo”, de 1993. De memórias e desabafos e ensinamentos e canções forjou-se o diálogo entre as filhas de Dona Joana Joaquina (Conceição) e de Dona Lecy (Leci), mediado pela filha da Dona Anna, numa noite de terça — ou quarta-feira — em que a ancestralidade se revelou, de novo e sempre, em todo o seu esplendor.

Hoje é sábado, amanhã é domingo/A vida vem em ondas, como o mar, avisou o poeta Vinícius de Moraes no poema “Dia da Criação”. Cá estou — com um Rio de Janeiro, um Brasil e um mundo, fascinantes e brutais, ainda em transformação — abigornada em novo dia. Saio das sextas-feiras de Oxalá para os sábados de Iemanjá, minha orixá, e Oxum, de minha mãe, minha filha, tantas irmãs. E bem na data em que completo 56 anos. Abraço e agradeço.

 

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