O Estado de S. Paulo
O chão da história de vocação iluminista não se pavimenta com soluções fáceis nem episódicas, muito menos fratricidas, ditatoriais ou radicais
Vi vemos uma
contemporaneidade convulsiva, transformada pela incidência das novas
tecnologias, pela emergência climática e por movimentos desafiantes aos laços
politicamente estruturados. Acrise desencadeada pelo governo norte-ameri canoco
mo tari faço aprofunda esse quadro. E ocadinho que amalgama tantos problemas
tem ingredientes vários. Experimentamos uma era de fluidez vertiginosa, que
soma as dimensões presencial e digital para uma existência em dupla ambiência,
atravessada por desprezo à factualidade, como bem mostra o fenômeno dramático
das fake news.
Temos um crítico momento em que as bases democrático-republicanas de nossa civilização sofrem ataques ao redor do planeta, sombreado por retrocessos patrocinados por radicalidades do espectro político. No rastro da pandemia e feroz disputa por hegemonia global, geraramse efeitos danosos inegáveis, como a desorganização de diversificadas cadeias de suprimento. Guerras, ataques ao multilateralismo e a emergência climática adicionam complexidades a uma fase histórica de enfraquecimento do sistema internacional erigido no pós-1945, ora inclinado a ser suplantado por crescente beligerância, recrudescente protecionismo e preocupante negacionismo.
No meio dessa cena de
persistentes transformações, temos um Brasil a nos desafiar à superação de
questões históricas, ao mesmo tempo à invenção dos fundamentos do futuro. Um
país que resiste a aprender com erros e sucessos, no mais das vezes, repetindo
o passado com etiquetas de “grandes novidades”. Uma nação que precisa mitigar
polarizações extremadas e se unir em torno do que nos deve congregar a todos: a
construção da prosperidade inclusiva. Um Brasil que precisa de estratégia para
as travessias desse novo tempo e suas tempestades, como a tortuosa
reconfiguração geopolítica em curso.
Este é o contexto em que
convido o leitor a pensar sobre o fazer político atual, com meu novo livro.
Política em tempos de grandes mudanças, que nomeia este artigo, é o título da
edição, disponível a partir de 6 de agosto na Amazon. A política é uma atividade
dinâmica, umbilicalmente conectada às atualidades. Desse modo, é mais do que
pertinente elaborar como fica a política neste nosso tempo tão cataclísmico. É
o que proponho, reunindo desafios, apontamentos, reflexões e indagações acerca
dessa atividade essencial à condição humana.
Esse olhar sobre a
contemporaneidade quer inspirar e ensejar uma ação política atenta aos sinais e
em diálogo com as marcas da temporalidade atual, de modo a se reinventar o agir
político e, ao mesmo tempo, garantir que práticas e valores civilizatórios até
aqui conquistados sejam mantidos a favor da dignidade humana.
Defendo que essa agenda
política geral se baseie na ideia de universalismo, ou seja, a visão de que
distâncias e diferenças entre os humanos não suplantam nossa fraternidade na
dignidade. E essa realidade de irmandade estrutural deve ser dinamizada pelo propósito
de justiça socioeconômica e viabilizada por meio do progresso sustentável.
Essa perspectiva é a que
venho defendendo em minhas décadas de ação política e cidadã, como bem
expressam artigos que publico em espaços como este. Aliás, depois de uma
introdução sobre a conjuntura política atual e um capítulo sobre a agenda
brasileira inescapável neste momento, ambos os textos inéditos, apresento no
livro um conjunto de 34 artigos publicados na imprensa desde 2022.
Em vários desses artigos
selecionados, conto com a honrosa parceria de Adriano Scarpa, Ana Carla Abrão,
André Guimarães, Eduardo Mufarej, Fabio Giambiagi, Guilherme Leal, José Antonio
Martinuzzo, José Carlos da Fonseca Jr., Marcello Brito, Marcos Mendes, Natália
Renteria, Paulo Artaxo, Regis Mattos, Roberto S. Waack e Welber Barral. A
compor o livro, textos especiais de Luciano Huck, que assina o prefácio; de
Marcos Lisboa, autor do posfácio; de Samuel Pessôa, nas orelhas; e de Ana Paula
Vescovi, na contracapa da publicação.
Em todos os quadrantes do
mundo democrático, vivemos hoje um tempo desafiador de reinvenção da prática
política e mesmo de reconquista de mentes e corações para a política
emancipatória, longe das radicalidades tão danosas ao necessário diálogo e às
conexões em torno da boa vontade.
Há milênios, Heráclito (c.
550-c. 480 a.C.) já observara a constância da mudança. Segundo reporta Platão,
ele afirmava que “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, posto que, num
segundo momento, nem o rio nem o sujeito são os mesmos. Lidar com o fato de que
“amanhã não seremos o que fomos nem o que somos”, de acordo com Ovídio, nunca
foi simples. Agora pense em lidar com esse vetor de mutação inevitável e
irrecorrível de modo alucinante? É o que estamos experimentando, com
desafiantes consequências.
O chão da história de
vocação iluminista não se pavimenta com soluções fáceis nem episódicas, muito
menos fratricidas, ditatoriais ou radicais. É uma laboriosa tarefa da nossa
capacidade de promover novos inícios, como vislumbrou Hannah Arendt. Guiados pelo
espírito humano, distinguido pelas faculdades de pensar, desejar e agir, e de
fazer tudo isso com filtros ético-morais, temos uma obra infindável de
construção da civilização humanística, tão provocada e desafiada nesses tempos
de grandes mudanças.
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