O gasto fiscal direto do programa é expressivo: saiu de algo como 0,5% do PIB, em 2019, para 1,5% do PIB, em 2024
O cenário geopolítico
internacional adverso surge numa conjuntura macroeconômica brasileira de contas
públicas desequilibradas e baixa produtividade da economia. Frente a esse
contexto, esta coluna avalia e traz reflexões sobre o atual momento de uma política
pública nacional importante sob vários ângulos: o Bolsa Família. O programa,
reconhecido por seu sucesso no combate à pobreza, sofreu acentuadas
transformações durante a pandemia que merecem ser cuidadosamente analisadas.
Como se sabe, a pandemia levou a profundas
mudanças no programa Bolsa Família. O benefício mensal médio do programa, que
em 2019 girava em torno de R$ 190, foi elevado até chegar, em 2024, a cerca de
R$ 670. Além disso, o número de beneficiários pulou de 14 milhões para 21
milhões. O orçamento anual do Bolsa Família, por sua vez, que era de R$ 35
bilhões em 2017, subiu para R$ 170 bilhões.
Essa enorme transformação do
Bolsa Família provocou mudanças no impacto do programa no mercado de trabalho.
Na sua primeira fase, até 2019, diversos estudos indicavam, de forma geral, não
haver efeito relevante do Bolsa Família na oferta de trabalho. Alguns desses
estudos até detectaram um efeito positivo de aumento da oferta de trabalho
feminino. Agora, porém, como sugere pesquisa recente conduzida por meu colega
Daniel Duque, o Bolsa Família, no seu novo nível muito ampliado de benefício
médio, causa um impacto bastante forte de redução da oferta de trabalho de
homens (mas não de mulheres), especialmente de jovens e nas regiões Norte e
Nordeste. Já em termos de ocupação em emprego formal, há um intenso efeito
negativo do Bolsa Família em homens de todas as faixas etárias e regiões do
país.
Duque destaca que o benefício
médio do Bolsa Família hoje corresponde a cerca de 35% da renda mediana do
trabalho no Brasil, comparado a 15% até 2019. Não deve causar surpresa,
portanto, que o programa, que em sua primeira fase não afetava a oferta de trabalho,
tenha passado a fazê-lo quando o benefício passou a representar uma parcela
muito maior do salário mediano brasileiro.
Por conta da significativa
ampliação no valor dos benefícios, sob a ótica social, o Bolsa Família passou a
produzir efeitos ainda mais favoráveis ao empoderar as pessoas de baixa renda
para que possam recusar condições abusivas de trabalho. Além do mais, há
inúmeras estatísticas que corroboram a melhoria de indicadores sociais ligados
à pobreza, à fome e às áreas de educação e saúde. No que se refere às contas
públicas, por seu turno, os dados não são animadores. O gasto fiscal direto é
expressivo: saiu de algo como 0,5% do PIB, em 2019, para 1,5% do PIB, em 2024.
Adicionalmente, o aumento da informalidade e a opção adotada por muitas pessoas
em idade laboral de não trabalhar também impacta negativamente as contas
públicas ao promover a perda de arrecadação tributária, além de afetar o nível
de produção da economia.
Em função do diagnóstico de Duque, um importante sinal de alerta deve ser
acionado: não é razoável que um programa de natureza assistencial opere para
reduzir incentivos ao trabalho. Além do que, como destacam há anos meus colegas
Marcelo Néri e Ricardo Paes de Barros, programas sociais devem ser escadas, não
redes de segurança permanentes. Por conta disso, alguns importantes ajustes de
rota devem ser pensados para tornar o Bolsa Família uma política pública que,
ao invés de promover desincentivo ao labor, fosse útil para inserir seus
beneficiários no mercado de trabalho.
A solução não está no retrocesso,
mas na evolução do programa. Por isso, o cuidado em preservar suas grandes
conquistas deve nortear nossas ações futuras. Dentre as possíveis novas linhas
de atuação do Bolsa Família, colocar foco no movimento de empreendedorismo
popular, que tem despontado como alternativa interessante para muitos jovens,
parece ser uma boa opção. Com isso, o Bolsa Família seria uma das peças de um
grande projeto de promoção do empreendedorismo no Brasil. No caso, entre outras
ações, o aprimoramento do MEI (Microempreendedor Individual) também deveria
estar em questão.
Uma outra possibilidade é
utilizar o Bolsa Família em um dos grandes desafios nacionais: preparar a
classe trabalhadora para a nova realidade da automação e do protecionismo
global. Não resta dúvida, a Inteligência Artificial, que já é uma realidade, dá
sinais de que ocupará um espaço cada vez mais expressivo no mercado de
trabalho.
Enfim, o essencial é que o novo
desenho do Bolsa Família tenha como eixo central apoiar os trabalhadores de
baixa renda para que sejam inseridos da forma mais produtiva no mercado de
trabalho.
Por fim, é fundamental destacar
que, apesar de as medidas protecionistas dos EUA e o cenário eleitoral
desafiador dificultarem colocar na pauta prioritária da discussão política
reformas profundas, o debate técnico pode e deve começar agora. Afinal, como
ocorreu em todo o processo de reformulação dos sistemas previdenciário e
tributário, o realinhamento de um programa de forte impacto como o Bolsa
Família também requer muito debate e muita negociação. Por isso, é importante
que a discussão sobre o aperfeiçoamento do programa ganhe tração junto à
sociedade civil o quanto antes.
Em síntese, o aprimoramento do Bolsa Família deve combinar proteção social e
estímulo à produtividade - dois ingredientes essenciais para promover o
desenvolvimento socioeconômico do país. Se o programa não for reformado, a
oportunidade de transformar o Bolsa Família em ponte para a autonomia econômica
estará perdida.
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