terça-feira, 5 de agosto de 2025

O Bolsa Família em tempos de turbulência global - Luiz Schymura

Valor Econômico

O gasto fiscal direto do programa é expressivo: saiu de algo como 0,5% do PIB, em 2019, para 1,5% do PIB, em 2024


Em julho, as más notícias do front econômico internacional dispararam sinais de alerta no Brasil. Três medidas simultâneas da administração americana criaram ventos contrários para nossas exportações: a imposição de novas tarifas sobre produtos brasileiros; a abertura de investigação sob a Seção 301 da Lei de Comércio dos EUA - que pode classificar práticas brasileiras como barreiras discriminatórias; e a provável aprovação de sanções automáticas contra países que mantêm relações comerciais com a Rússia.

O cenário geopolítico internacional adverso surge numa conjuntura macroeconômica brasileira de contas públicas desequilibradas e baixa produtividade da economia. Frente a esse contexto, esta coluna avalia e traz reflexões sobre o atual momento de uma política pública nacional importante sob vários ângulos: o Bolsa Família. O programa, reconhecido por seu sucesso no combate à pobreza, sofreu acentuadas transformações durante a pandemia que merecem ser cuidadosamente analisadas.

Como se sabe, a pandemia levou a profundas mudanças no programa Bolsa Família. O benefício mensal médio do programa, que em 2019 girava em torno de R$ 190, foi elevado até chegar, em 2024, a cerca de R$ 670. Além disso, o número de beneficiários pulou de 14 milhões para 21 milhões. O orçamento anual do Bolsa Família, por sua vez, que era de R$ 35 bilhões em 2017, subiu para R$ 170 bilhões.

Essa enorme transformação do Bolsa Família provocou mudanças no impacto do programa no mercado de trabalho. Na sua primeira fase, até 2019, diversos estudos indicavam, de forma geral, não haver efeito relevante do Bolsa Família na oferta de trabalho. Alguns desses estudos até detectaram um efeito positivo de aumento da oferta de trabalho feminino. Agora, porém, como sugere pesquisa recente conduzida por meu colega Daniel Duque, o Bolsa Família, no seu novo nível muito ampliado de benefício médio, causa um impacto bastante forte de redução da oferta de trabalho de homens (mas não de mulheres), especialmente de jovens e nas regiões Norte e Nordeste. Já em termos de ocupação em emprego formal, há um intenso efeito negativo do Bolsa Família em homens de todas as faixas etárias e regiões do país.

Duque destaca que o benefício médio do Bolsa Família hoje corresponde a cerca de 35% da renda mediana do trabalho no Brasil, comparado a 15% até 2019. Não deve causar surpresa, portanto, que o programa, que em sua primeira fase não afetava a oferta de trabalho, tenha passado a fazê-lo quando o benefício passou a representar uma parcela muito maior do salário mediano brasileiro.

Por conta da significativa ampliação no valor dos benefícios, sob a ótica social, o Bolsa Família passou a produzir efeitos ainda mais favoráveis ao empoderar as pessoas de baixa renda para que possam recusar condições abusivas de trabalho. Além do mais, há inúmeras estatísticas que corroboram a melhoria de indicadores sociais ligados à pobreza, à fome e às áreas de educação e saúde. No que se refere às contas públicas, por seu turno, os dados não são animadores. O gasto fiscal direto é expressivo: saiu de algo como 0,5% do PIB, em 2019, para 1,5% do PIB, em 2024. Adicionalmente, o aumento da informalidade e a opção adotada por muitas pessoas em idade laboral de não trabalhar também impacta negativamente as contas públicas ao promover a perda de arrecadação tributária, além de afetar o nível de produção da economia.

Em função do diagnóstico de Duque, um importante sinal de alerta deve ser acionado: não é razoável que um programa de natureza assistencial opere para reduzir incentivos ao trabalho. Além do que, como destacam há anos meus colegas Marcelo Néri e Ricardo Paes de Barros, programas sociais devem ser escadas, não redes de segurança permanentes. Por conta disso, alguns importantes ajustes de rota devem ser pensados para tornar o Bolsa Família uma política pública que, ao invés de promover desincentivo ao labor, fosse útil para inserir seus beneficiários no mercado de trabalho.

A solução não está no retrocesso, mas na evolução do programa. Por isso, o cuidado em preservar suas grandes conquistas deve nortear nossas ações futuras. Dentre as possíveis novas linhas de atuação do Bolsa Família, colocar foco no movimento de empreendedorismo popular, que tem despontado como alternativa interessante para muitos jovens, parece ser uma boa opção. Com isso, o Bolsa Família seria uma das peças de um grande projeto de promoção do empreendedorismo no Brasil. No caso, entre outras ações, o aprimoramento do MEI (Microempreendedor Individual) também deveria estar em questão.

Uma outra possibilidade é utilizar o Bolsa Família em um dos grandes desafios nacionais: preparar a classe trabalhadora para a nova realidade da automação e do protecionismo global. Não resta dúvida, a Inteligência Artificial, que já é uma realidade, dá sinais de que ocupará um espaço cada vez mais expressivo no mercado de trabalho.

Enfim, o essencial é que o novo desenho do Bolsa Família tenha como eixo central apoiar os trabalhadores de baixa renda para que sejam inseridos da forma mais produtiva no mercado de trabalho.

Por fim, é fundamental destacar que, apesar de as medidas protecionistas dos EUA e o cenário eleitoral desafiador dificultarem colocar na pauta prioritária da discussão política reformas profundas, o debate técnico pode e deve começar agora. Afinal, como ocorreu em todo o processo de reformulação dos sistemas previdenciário e tributário, o realinhamento de um programa de forte impacto como o Bolsa Família também requer muito debate e muita negociação. Por isso, é importante que a discussão sobre o aperfeiçoamento do programa ganhe tração junto à sociedade civil o quanto antes.

Em síntese, o aprimoramento do Bolsa Família deve combinar proteção social e estímulo à produtividade - dois ingredientes essenciais para promover o desenvolvimento socioeconômico do país. Se o programa não for reformado, a oportunidade de transformar o Bolsa Família em ponte para a autonomia econômica estará perdida.

 

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