terça-feira, 5 de agosto de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

BC deve adotar mais rigor ao fiscalizar fintechs

O Globo

Uso de startups financeiras pelo crime organizado exige ação mais urgente ao disciplinar mercado

Banco Central (BC) tem o dever de aumentar a supervisão no mercado de startups e empresas voltadas para produtos financeiros digitais, as fintechs. O Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), as duas maiores organizações criminosas do país, têm usado bancos digitais para receber e lavar dinheiro do tráfico, fraudes e outros crimes. Nos últimos seis anos, R$ 28,2 bilhões passaram por oito fintechs investigadas pela polícia e pelo Ministério Público, como revelou reportagem do GLOBO. A quantia é apenas uma amostra de um fluxo maior. Ao crime organizado não faltam sofisticação nem versatilidade. Opera criptoativos, concede empréstimos de fachada e recebe pagamentos internacionais. O desafio diante do BC é coibir a ação criminosa, mas sem criar um ambiente regulatório que eleve custos de forma a asfixiar a inovação trazida por empreendedores idôneos.

A reportagem do GLOBO traz relatos preocupantes. Criada em 2019, a fintech 4tbank está registrada em nome de uma jovem de 24 anos. Em quatro anos, movimentou meio bilhão de reais, dos quais R$ 80 milhões em espécie. A investigação sugere que o verdadeiro dono da empresa, João Gabriel de Mello Yamawaki, foragido, tenha vínculos com o PCC (seu advogado nega). Em abril, o mesmo 4tbank foi vinculado ao CV. Outra fintech na mira dos policiais é a 2GO Instituição de Pagamento, acusada de lavar cerca de R$ 6 bilhões em transações por pelo menos 15 países. A promotoria afirma que ela faz parte de “um sistema bancário ilegal”, tendo recebido recursos de empresas de fachada ligadas a investigados por roubo, tráfico e fraudes. A defesa da 2GO nega atos ilícitos.

“É um negócio altamente vantajoso”, diz Lincoln Gakyia, promotor que investiga o crime organizado há mais de 20 anos. O criminoso “abre o próprio banco digital, que permite comprar criptoativos e movimentar dinheiro no mundo todo”. O PCC, dizem as investigações, aprendeu com máfias estrangeiras a usar meios digitais para receber pelos carregamentos mensais de cocaína para a Europa. “PCC e ‘Ndrangheta [máfia do sul da Itália] estão cada vez mais conscientes das novas tecnologias”, diz o acadêmico Antonio Nicaso, da Universidade Queen’s, autor de vários livros sobre a Máfia italiana. Criminosos digitais também trabalham para as facções brasileiras. O PCC é suspeito de envolvimento no recente golpe que atingiu o sistema Pix, em desvio de cerca de R$ 800 milhões.

O imperativo de combater o crime organizado deve ser encarado tendo em mente a necessidade de preservar um ambiente favorável à inovação. O Brasil não pode abrir mão do desenvolvimento trazido pelas fintechs. Em relatório de julho, o Fundo Monetário Internacional (FMI) reconhece o papel positivo da regulação concebida pelo BC para fazer do conjunto de startups financeiras “um importante player em crédito ao consumidor”. Hoje elas respondem por 25% do mercado de cartões de crédito e mais de 10% de empréstimos não consignados. Nos segmentos em que os bancos tiveram de enfrentar a nova concorrência, os juros caíram de forma significativa.

Mas, ante a urgência trazida pelos criminosos, é temerário o cronograma do BC prevendo fiscalização plena das fintechs apenas em 2029. O momento é de ajuste regulatório. É preciso fechar a porta ao crime e manter as fintechs como força no mercado financeiro

Prende-solta revela incapacidade do país de deter ciclo perverso da violência

O Globo

Jovem de 21 anos tem 86 passagens pela polícia. Só neste ano, envolveu-se em quatro delitos em 24 dias

A história do jovem Patrick Rocha Maciel expõe um triste retrato do Brasil. Aos 21 anos, ele acumula nada menos que 86 passagens pela polícia — praticamente uma a cada três meses de vida. Sua folha corrida revela, de forma contundente, a incapacidade do país de amparar suas crianças e deter o ciclo perverso da criminalidade. Como mostrou reportagem do GLOBO, ele tinha apenas 10 anos quando entrou pela primeira vez numa delegacia, flagrado numa bicicleta de aluguel furtada (à época, era inimputável). Voltou dezenas de vezes, acusado por delitos como roubo, lesão corporal, invasão de domicílio ou ameaça.

Patrick morava no Morro da Providência, comunidade do Rio dominada pelo Comando Vermelho, e costumava vender balas nas ruas de Copacabana, quando deveria estar numa escola. A delinquência é uma trágica herança. Sua mãe, segundo a polícia, somava sete anotações criminais, além de ter sido investigada por maus-tratos, abandono de incapaz e por submeter criança ou adolescente a vexame ou constrangimento. Ela morreu em 2023.

É provável que, na adolescência, Patrick tenha passado mais tempo em unidades socioeducativas que em salas de aula. Quando precisa informar a escolaridade, costuma dizer que não concluiu o ensino fundamental. Nos processos judiciais, assina o primeiro nome, com caligrafia que revela pouca familiaridade com a escrita.

Unidades socioeducativas deveriam recuperar adolescentes para o convívio em sociedade. Mas pouco serviram a Patrick. Entre os 10 e os 17 anos, ele foi levado ao menos 12 vezes a instalações do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Rio, onde se envolveu em diversas confusões. Aos 17, foi acusado de lesão corporal e participação num motim de internos.

Com a maioridade, vieram os presídios e o interminável prende-solta propiciado pela labiríntica legislação penal brasileira. Em abril de 2022, menos de uma semana depois de deixar o presídio José Frederico Marques, voltou a ser preso, acusado de assaltar uma casa em Ipanema. Desde que completou 18 anos, já esteve pelo menos sete vezes no sistema penitenciário. Neste ano, depois de sair da prisão, se envolveu em quatro delitos em 24 dias. “Quando ele chegou à delegacia, nós já o reconhecemos. E sabíamos que, em breve, o veríamos de novo”, disse o delegado Ângelo Lages, da 12ª DP (Copacabana).

Os delitos em série de Patrick são um resultado eloquente das falhas em série do Estado e do fracasso das políticas públicas de combate à criminalidade. Prisões reiteradas não evitam os crimes; unidades socioeducativas não educam; e os presídios — controlados por mais de 70 facções criminosas — não funcionam como espaços de ressocialização, mas como fornecedores de mão de obra ao crime organizado. Por fim, a legislação leniente favorece a reincidência e o eterno vaivém no sistema penal. Governos não podem fingir não ver tamanha tragédia. Ou adotam políticas comprovadas, capazes de reparar cada elo dessa cadeia de falhas, ou então o país continuará a conviver com mais e mais casos como Patrick.

Parceria com Argentina ganha peso com ofensiva de Trump

Valor Econômico

Assumindo o pragmatismo, cabe ao Brasil opor-se à desunião no Mercosul e, em conjunto com os parceiros, buscar com afinco novos acordos comerciais

A Argentina, à medida que conserta sua economia, com apoio do Fundo Monetário Internacional, voltou a aumentar as importações do Brasil. No primeiro semestre deste ano os números melhoraram - as vendas brasileiras para o país avançaram 55,4% em comparação com o mesmo período do ano passado. A Argentina foi o terceiro maior destino das exportações brasileiras, com 5,5% do total, depois da China (28,8%) e dos Estados Unidos (12,1%). Os resultados são particularmente auspiciosos em um momento em que o presidente Donald Trump faz uma ofensiva radical pelo protecionismo.

As relações entre os dois países vizinhos, no entanto, necessitam não de ideologia, mas de diplomacia e cuidados mútuos em um momento muito delicado. Há uma diferença ideológica enorme entre os dois chefes do Executivo. O presidente Lula torceu pela vitória dos peronistas nas eleições de 2023 e sempre manteve uma parceria com os governos de Nestor e Cristina Kirchner. Javier Milei é um radical liberal, que acredita no avanço econômico impulsionado exclusivamente pelo setor empresarial e na redução no maior grau possível da influência do Estado na economia. Praticamente, não há diálogo entre os dois.

No entanto, não deixa de ser irônico que a liberalização radical da economia argentina, sustentada por cortes profundos nas contas públicas - tudo o que o Planalto e o PT abominam -, tenha aberto o caminho para a recuperação das relações comerciais entre Brasil e Argentina. Os Kirchner antes, e Alberto Fernández depois, embora politicamente aliados do presidente Lula e de Dilma Rousseff, aplicaram todo tipo de barreiras a mercadorias brasileiras, como as licenças não automáticas de importação, motivando no governo brasileiro resignada compreensão.

Com a renovação do acordo com o FMI, Milei liberou o câmbio sem que, inicialmente pelo menos, a inflação tenha avançado, como se temia. O corte de gastos públicos, que garantiu o primeiro superávit fiscal em mais de duas décadas, permitiu o fim das restrições comerciais, o pagamento mais expedito dos compromissos com as compras externas e o fim quase total das barreiras às importações. A Argentina voltou a crescer, e a inflação declinou de 25% mensais, quando Milei foi eleito, para 1,5% agora.

A retomada do comércio entre os dois países é especialmente importante depois que Trump estabeleceu tarifas de importação, penalizando o Brasil com 50% para quase metade das exportações, e instituindo taxa de 10% para a Argentina. Na pauta de exportação do Brasil para os EUA predominavam os bens manufaturados, composição diferente da observada com a China, maior parceiro comercial, em que a maioria vendida é de commodities. Agora, com a barreira quase intransponível das tarifas para os EUA, a Argentina ganha maior importância como parceira, pois os produtos manufaturados representam a maior fatia do comércio bilateral.

As vendas para a Argentina concentram-se em máquinas e outros itens da indústria de transformação, além de veículos de passeio, partes e acessórios automotivos. No primeiro semestre, as exportações de automóveis, tratores e outros veículos terrestres, suas partes e acessórios lideraram, com crescimento de 121,8% na comparação com igual período de 2024. A Argentina foi, por seu lado, beneficiada com o aumento das importações do Brasil: foi o quarto país nas compras brasileiras, US$ 6,16 bilhões (4,5%), depois da China (26,3%), dos Estados Unidos (16%) e da Alemanha (5,2%).

Embora o relacionamento entre Lula e Milei esteja em ponto morto, o comércio tem evoluído positivamente pela via do pragmatismo, que tem levado ambos a evitarem disputas ideológicas desnecessárias. Ainda assim, há desafios importantes em curso. Milei tem indicado que seu governo quer negociar um acordo bilateral com os Estados Unidos, de cujo governo é um aliado incondicional. As regras do Mercosul proíbem tornar realidade esse desejo, compartilhado até há pouco pelo governo de centro-direita uruguaio de Lacalle Pou, que perdeu as eleições para a Frente Ampla, de esquerda, de Yamandú Orsi.

Os governos petistas sempre defenderam o bloco, buscando ampliá-lo à esquerda, com pouco sucesso. Velha aliada, a Venezuela rompeu com o presidente Lula e estabeleceu tarifas para mercadorias brasileiras de 15% a 77%, depois de anos suspensa do Mercosul.

A punição de Trump ao Brasil e a mudança de fluxos comerciais que a guerra tarifária poderá provocar levaram agora alguns setores empresariais brasileiros a pregar a unilateralidade nas iniciativas por novos acordos também aspirada por Milei. Na prática, seria o desmantelamento do Mercosul, um retrocesso em si, agravado pela tendência crescente do mundo ao protecionismo. Assumindo o pragmatismo, cabe ao Brasil opor-se à desunião no Mercosul e, em conjunto com os parceiros, buscar com afinco novos acordos comerciais, que contribuam, ao mesmo tempo, para uma maior abertura da economia, que garanta ao país mais exportações e mais produtividade.

Aumentou o custo de defender os Bolsonaros

Folha de S. Paulo

  • No Datafolha, 61% afirmam que não votariam em candidato que defenda indulto ao ex-presidente
  • Não deveria ser necessário ler resultado de pesquisa para tomar distância de postulantes a tiranetes que tramam contra o país

Datafolha acaba de estimar o elevado custo político com que um candidato de direita terá de arcar caso prometa oferecer indulto presidencial ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) na campanha de 2026. Mais de seis em cada dez entrevistados afirmam que deixariam de votar num postulante que fizesse tal promessa.

O fardo poderá recair sobre os governadores de São PauloTarcísio de Freitas (Republicanos), Minas, Romeu Zema (Novo), e Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil). Os três, cogitados para o Planalto, defendem o uso desse poder que a Carta faculta ao presidente da República para livrar Bolsonaro da cadeia, se ele for em breve condenado, como é provável, por tentativa de golpe.

As hipóteses da anistia —lei que teria de ser aprovada no Congresso Nacional para isentar de punição os condenados por subversão— e do perdão presidencial já enfrentavam dificuldades mesmo antes de Eduardo e Jair Bolsonaro se associarem à chantagem do presidente dos EUA, Donald Trump, contra as instituições brasileiras.

Havia a incompatibilidade no tempo, pois não cabe eximir de culpa quem ainda não foi condenado de forma inapelável, como é o caso de vários réus, incluindo o ex-presidente, processados no Supremo Tribunal Federal (STF). Havia o precedente da própria corte constitucional, que já invalidou indulto presidencial em situação semelhante.

Havia também o desgaste político de desmoralizar a legislação votada pelo Congresso, e sancionada por Jair Bolsonaro, destinada a proteger o Estado democrático de Direito de seus violadores.

A vilania de Eduardo e Jair de aliarem-se a um agressor estrangeiro que causará danos multibilionários à renda e aos empregos no Brasil fez diminuir ainda mais as chances de a pauta da impunidade progredir. Os presidentes da Câmara e do Senado tomaram mais distância da família tóxica.

O constrangimento penetrou a centro-direita. Nenhum dos governadores que já defenderam o indulto a Bolsonaro compareceu às lamentáveis manifestações de endosso ao achaque trumpista neste domingo (3). Tarcísio e Zema, cujas reações iniciais ao tarifaço haviam sido abomináveis, parece que aprenderam algo.

Registre-se, a propósito, a boa condução do governador do Paraná, Ratinho Jr. (PSD), nesse tema. Também cotado para a disputa presidencial no ano que vem, não se comprometeu com o perdão a Bolsonaro nem derrapou na reação ao tarifaço. O Datafolha mostrou que é tão competitivo quanto Tarcísio contra Lula.

Se a crise com os EUA servir para isolar de vez o cancro representado pelo radicalismo bolsonarista no Brasil, terá produzido ao menos um desfecho positivo.

Não é necessário ler resultados de pesquisa para avaliar a impostura que é se aproximar de alguém que não tem prurido de tramar contra o próprio país. Entre uma família de postulantes a tiranetes autocentrados e o Brasil, a escolha deveria ser fácil e clara.

Ciência made in Brazil

Folha de S. Paulo

  • Programa para atrair pesquisadores formados aqui que atuam lá fora é válido, mas deve ser monitorado
  • O Conhecimento Brasil receberá aportes em torno de R$ 600 milhões, o que inclui passagens aéreas, compra de materiais, auxílios e bolsas

Aumentar a concessão de diplomas de ensino superior e de pós-graduação não é suficiente. É preciso que os formados consigam produzir conhecimento e contribuir para o desenvolvimento do país após saírem da universidade. E o Brasil enfrenta deficiências nessa seara.

Em relação à titulação imprescindível para a área acadêmica e científica, o número de diplomas de doutorado emitidos saltou de 2.854 em 1995 para 20.679 em 2021, segundo levantamento do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, organização social supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, publicado no ano passado.

No entanto a taxa de emprego formal entre doutores titulados desde 1996 caiu de 74,8% em 2009 para 67,7% em 2021. Assim, muitos pesquisadores saem do país em busca de melhores oportunidades profissionais.

Para conter o fenômeno da "fuga de cérebros", repatriando cientistas, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançou o Conhecimento Brasil em 2024.

O programa, que tem duração de até cinco anos, receberá aporte do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico em torno de R$ 600 milhões —para passagens aéreas, compra de materiais, auxílios e bolsas mensais (R$ 13 mil para doutor e R$ 10 mil para mestre).

Foram escolhidos 567 projetos, dos quais 251 de pesquisadores que já moram no Brasil. Apesar de o edital prever a seleção de profissionais que tenham concluído doutorado ou pós-doutorado no exterior e estejam residindo no país, a proporção causa estranheza, dada a função do programa anunciada em 2024.

Não está claro se a falta de mais brasileiros expatriados na lista se deve a verbas e oportunidades melhores em outras nações, mas essa já era uma condição conhecida desde o início.

Ademais, o edital estabelecia que 40% dos recursos deveriam ser direcionados às regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, que acabaram recebendo 30%. O Sudeste, com mais polos científicos, obteve a maior fatia (51%).

O objetivo do Conhecimento Brasil é correto, mas, como toda política pública, deve ser monitorada para que se avaliem resultados e se identifiquem distorções.

Também é necessário deixar ideologias e corporativismos de lado e rever o financiamento público das universidades, que há tempos se mostra insustentável, a partir de pagamentos de alunos mais abastados e parcerias público-privadas. Ainda melhor do que atrair cérebros, é fazer com que eles não queiram partir.

O presentão de Moraes a Bolsonaro

O Estado de S. Paulo

Ao mandar prender ex-presidente em casa por suposta violação de ordens mal redigidas e abusivas, o ministro dá de bandeja a Bolsonaro o que ele mais busca: oportunidades de posar de mártir

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes decretou a prisão domiciliar de Jair Bolsonaro em caráter preventivo. Além disso, Moraes determinou a apreensão de todos os celulares em poder do ex-presidente por considerar que ele teria violado as medidas cautelares impostas pela Primeira Turma ao participar remotamente das manifestações pela anistia aos golpistas ocorridas ontem. Bolsonaro foi ouvido por seus apoiadores em Copacabana, zona sul do Rio, por intermédio de seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que publicou o conteúdo das mensagens em suas redes sociais e depois apagou, decerto ciente do risco que isso envolvia.

A ordem de Moraes é decorrência direta de uma grosseira confusão, é forçoso dizer, criada pelo próprio ministro. Prender Bolsonaro em casa é um desafio à compreensão lógica dos fatos e, a rigor, uma afronta ao propósito das medidas cautelares ordenadas por ele mesmo. Em primeiro lugar, Bolsonaro não deveria ter sido privado de usar as redes sociais, o que significa, na prática, censurá-lo previamente. Como já dissemos nesta página, o ex-presidente fez por onde merecer o uso de tornozeleira eletrônica e a restrição de circulação. Contudo, a proibição de uso das redes sociais foi um claro exagero de Moraes, ao fim referendado pela maioria de seus pares na Primeira Turma.

Para piorar, os termos dessa proibição eram tão vagos e confusos – Moraes vedou a “instrumentalização de entrevistas ou discursos públicos como ‘material pré-fabricado’ para posterior postagem nas redes sociais de terceiros previamente coordenados” – que é lícito inferir que a intenção do ministro ao redigi-los de forma intrincada, considerando que não se trata de alguém que não domine o vernáculo, era manter Bolsonaro sob um controle abusivo de sua palavra. Dessa madeira torta não haveria de brotar galho reto.

Em sua decisão, Moraes afirmou que, “agindo ilicitamente, o réu Jair Messias Bolsonaro se dirigiu aos manifestantes reunidos em Copacabana, no Rio de Janeiro, produzindo dolosa e conscientemente material pré-fabricado para seus partidários continuarem a tentar coagir o STF e obstruir a Justiça, tanto que o telefonema com seu filho Flávio Nantes Bolsonaro foi publicado na plataforma Instagram”.

Por mais descabida que seja, a vedação de uso das redes sociais imposta a Bolsonaro foi uma decisão juridicamente válida que, por óbvio, tinha de ser cumprida pelo réu. Se não foi, Moraes deveria ter mandado Bolsonaro para a cadeia, não ordenado seu confinamento domiciliar – até porque foi de casa que o ex-presidente violou a ordem inicial. Isso não faz sentido algum, o que autoriza a suspeita de que o regime de prisão escolhido pelo ministro neste momento faça parte de um cálculo político.

Ao fim e ao cabo, Moraes deu um presente a Bolsonaro. Com a bagunça que ele mesmo fez, o ministro ajudou o ex-presidente a espalhar o discurso de que seria um “perseguido” pela Justiça. Isso em nada contribui, muito ao contrário, para o esforço monumental que o Supremo tem de fazer para reverter a percepção de uma parcela expressiva da sociedade brasileira de que o julgamento do ex-presidente não é técnico nem muito menos imparcial.

Ora, é evidente que Bolsonaro tem reiteradamente desafiado as instituições democráticas. Inclusive, é réu no STF justamente por isso, razão pela qual à Corte cabe agir com redobrada prudência. Tumultos ocasionados por seus próprios ministros, ainda mais atingindo uma figura sabidamente nociva à ordem democrática como o ex-presidente, contribuem para corroer a autoridade do Supremo. Um ato arbitrário não deixa de ser arbítrio quando praticado contra quem traz o autoritarismo na alma.

Toda essa confusão gerada por Moraes, sobretudo ao aplicar uma sanção por suposta violação de regras mal redigidas por ele mesmo, entregou ao ex-presidente justamente o que ele mais busca: oportunidades de posar como mártir. Agindo assim, Moraes conspurca a autoridade do STF. Oxalá não tenha comprometido a responsabilização legítima de Bolsonaro por ter se envolvido até a medula numa tentativa de golpe de Estado.

Mais ambição para a primeira infância

O Estado de S. Paulo

Prometida por Lula há mais de um ano, política para a primeira infância está atrasada, mas ainda há tempo de construí-la como se deve: ambiciosa e com metas realistas e indicadores claros

Está previsto para o início deste mês o lançamento, enfim, da Política Nacional Integrada para a Primeira Infância, prometida por um decreto presidencial assinado há mais de um ano. Publicado em junho de 2024, o decreto dava 120 dias para que um comitê intersetorial, formado por representantes de ministérios e da sociedade civil, propusesse um plano efetivo destinado à promoção e à proteção dos direitos de crianças de até 6 anos. Celebrando a iniciativa à época, este jornal sublinhava a necessidade de, finalmente, a criança ser, de fato, a prioridade absoluta do País. Mas o longo tempo passado entre a criação do comitê e a instituição definitiva de tal política desabona grande otimismo. Embora estejamos prestes a ver um novo decreto, a longa demora recomenda desconfiança sobre o sentido de urgência e de prioridade dado ao tema pelo governo do presidente Lula da Silva.

Se há tempo de chamar a atenção do Palácio do Planalto, é importante dizer que o plano precisa ter a robustez compatível com seu papel histórico. É na primeira infância, afinal, que são dados os passos cruciais para o desenvolvimento infantil. Nessa etapa ocorrem os estímulos adequados que afetam, no longo prazo, indicadores de educação, saúde, trabalho, violência e desigualdade. E, embora sejam centrais na vida nacional, as crianças têm sido negligenciadas pelo País, apesar do que dizem a Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Marco Legal da Primeira Infância. O paradoxo explica o imperativo da política prometida: deve ser ambiciosa no propósito, criativa na estratégia, realista e integrada na governança entre União, Estados e municípios, consistente na concretude de suas metas e indicadores e, tão importante quanto tudo isso, detalhista nos métodos e nas ações propostas.

O Brasil tem hoje mais de 18 milhões de crianças na primeira infância, 55% das quais vivendo em famílias de baixa renda, e 60% que nunca frequentaram creche ou pré-escola, de acordo com dados apresentados ao governo pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e pelo Todos Pela Educação. Há, por baixo, 670 mil crianças de 0 a 6 anos em situação de pobreza ou extrema pobreza. Segundo o IBGE, em 2023, 45% das crianças brasileiras de 0 a 5 anos estavam em domicílios com renda mensal per capita de meio salário mínimo, enquanto entre a população geral o porcentual é de 27%. Ou seja, a pobreza atinge mais as crianças do que os adultos. Indicadores perversos as colocam ainda entre os mais vulneráveis a saneamento precário, insegurança alimentar e educação deficitária.

Há boas ideias em discussão, mas a execução segue como o principal desafio. Entre as propostas mais promissoras está a criação de um sistema integrado de dados sobre a primeira infância, que permita o monitoramento por gestores locais e o diálogo direto com as famílias. O risco, no entanto, é repetir os equívocos da Caderneta da Criança: uma solução com baixa adesão e pouco alcance do público-alvo. Atualmente, os dados do desempenho escolar de uma criança, por exemplo, não são integrados com os da carteira de vacinação. As crianças brasileiras têm um número no sistema de saúde e outro no Cadastro Único, que identifica as famílias brasileiras de baixa renda e permite o acesso de famílias aos programas e benefícios sociais. A política pode apontar também informações e ações para a abertura de vagas em creches, ampliação da vacinação e uma espécie de frente nacional de atendimento a famílias carentes onde há crianças nessa faixa de idade.

Para quem conhece a cosmologia lulopetista, contudo, o risco é Lula e seus exegetas aderirem ao desejo de alguns setores do governo e optarem por um texto mais genérico, menos ambicioso e menos detalhista. Se o governo optar por essa linha, isso vai significar um menor comprometimento de todos os envolvidos e tão somente assegurar os elementos mínimos para satisfazer as fantasias lulopetistas, onde invariavelmente há muito discurso e pouca prática. Impressiona que, diante de tantas derrotas políticas, Lula desperdice energia em disputas secundárias, em vez de concentrar esforços numa agenda central para a redução das desigualdades.

Mudanças bem-vindas

O Estado de S. Paulo

Após caso Master, Banco Central endurece as regras do Fundo Garantidor de Crédito (FGC)

O Banco Central (BC) acaba de anunciar mudanças, aprovadas em reunião extraordinária do Conselho Monetário Nacional (CMN), que endurecem as regras para o Fundo Garantidor de Crédito (FGC), uma espécie de seguro para investidores.

As alterações ocorrem após o caso Banco Master, cuja compra pelo BRB ainda precisa de aprovação do BC, gerar apreensão generalizada no mercado, especialmente entre os pequenos investidores.

De acordo com as novas regras, a chamada contribuição adicional (CA), paga pelas instituições que contam com a garantia do FGC, dobra de 0,01% para 0,02%. Além disso, haverá redução de 75% para 60% da razão entre o valor de referência (VR), que é o saldo de depósitos elegível ao FGC, e as captações (depósitos) de referência para apuração dessa contribuição adicional.

Instituições associadas ao FGC que estiverem excessivamente alavancadas (com valor de referência superior a dez vezes o patrimônio líquido ajustado) terão de investir os recursos excedentes em ativos “seguros”, tais como títulos públicos federais.

Nos últimos anos, bancos de menor porte, como o Master, usaram o FGC como chamariz para vender Certificados de Depósito Bancário (CDBs) com rendimentos bastante superiores àqueles oferecidos pelos grandes bancos. Ocorre que, quanto maior a possibilidade de ganho, maior o risco, tanto para o investidor quanto para o próprio mercado – e o caso Master é exemplar disso. Rapidamente, a instituição de menor porte passou a responder por um porcentual muito elevado dos investimentos garantidos pelo FGC, usurpando o papel do fundo.

Ao mesmo tempo, o Master aplicava os recursos a ele confiados pelo investidor em ativos arriscados, como precatórios, títulos judiciais com alto risco de postergação de pagamento. No mercado financeiro, não era segredo para ninguém que o modelo de expansão do Master era insustentável. Tão insustentável que a Faria Lima especulou que o banco comandado pelo controverso banqueiro Daniel Vorcaro seria adquirido por uma grande instituição financeira por um valor simbólico.

Não foi o que aconteceu. Por ora, o futuro do Master pode estar nas mãos do BRB, o banco regional de Brasília cuja missão institucional não passa pelo salvamento de instituições financeiras encalacradas – e, no caso do Master, é importante não perder de vista que o banco se encalacrou por conta própria.

Independentemente de qual será o desfecho do caso Master, as mudanças aprovadas pelo CMN vão na direção certa de dar mais racionalidade ao FGC. Ainda assim, as medidas só passarão a valer a partir de 1.º de junho de 2026, para que as instituições tenham tempo de adaptar-se às novas regras.

Até lá, espera-se que o BC e o próprio mercado mantenham-se vigilantes e sigam aprimorando tanto as diretrizes formais quanto a autorregulação.

Embora o número de investidores pessoas físicas no Brasil venha crescendo fortemente nos últimos anos, o brasileiro ainda investe bem menos que cidadãos de outros países, inclusive mais pobres. Assim, evitar casos como o do Banco Master é um imperativo.

PL do Licenciamento ambiental: cautela é conduta de sobrevivência

Correio Braziliense

Ainda que Lula vete trechos do Projeto de Lei 2.159/ 2021, o país está longe de um direcionamento equilibrado e tecnicamente embasado para a questão ambiental

Debruçado sobre a crise com os Estados Unidos, o governo Lula tem que resolver, nesta semana, outra questão que também tem grande impacto sobre a vida dos brasileiros e suas pretensões políticas: vence na sexta-feira o prazo para que ele se posicione em relação ao Projeto de Lei 2.159/ 2021, conhecido como PL da Devastação, aprovado na Câmara e à espera de sanção presidencial. A notícia é de que estão sendo costuradas estratégias para vetar trechos do projeto que representam ameaça à questão ambiental, sem que o corte desencadeie novo ponto de tensão com o Congresso. Trata-se de empreitada que demanda tanto manejo político e diplomático quanto o que tem sido adotado na seara internacional.

A  bem-vinda ideia de criação de uma norma geral sobre o licenciamento ambiental não saiu como o esperado. O PL que chegou ao chefe do Executivo é recheado de temas polêmicos, dignos do apelido recebido. Há também à mesa relatórios enviados por entidades ambientais depois da criticada aprovação do PL— em sessão com votação virtual de madrugada, na véspera do recesso parlamentar —, com o objetivo de sensibilizar o governo quanto a possíveis desdobramentos da medida.

Um deles, do Observatório do Clima, indica retrocessos graves em 42 dos 66 artigos do projeto de lei. Na avaliação da entidade, uma das principais redes da sociedade civil na agenda ambiental, a legislação ameaça o meio ambiente, a saúde pública, a governança climática e o patrimônio cultural e arqueológico do Brasil. Em nota técnica também enviada ao Planalto, o Ministério Público Federal solicitou o veto de mais de 30 dispositivos do PL, sob o argumento de que, além de comprometer a proteção ambiental, ele viola a Constituição e infringe tratados internacionais ratificados pelo Brasil. 

O Ministério do Meio Ambiente e o Palácio do Planalto avançam na discussão de alternativas a trechos polêmicos. É provável, por exemplo, o veto à permissão de criação de regras locais de licenciamento. A legislação prevê que estados e municípios possam dispensar licenças ambientais para obras e atividades econômicas, o que poderia levar a disputas de facilidades para atrair investimentos, além do enfraquecimento do Sistema Nacional de Meio Ambiente. A ministra Marina Silva tem sido enfática na defesa de uma regra nacional de licenciamento e, nesse quesito, parece viável o impedimento de possíveis leilões ambientais entre entes federativos.

Chegar a um consenso para a chamada Licença Ambiental Especial (LAE), porém, é bem mais difícil. Proposta pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre, a LAE prevê que atividades ou empreendimentos considerados estratégicos por um Conselho de Governo tenham um procedimento de licenciamento diferenciado — com uma etapa, em vez de três—, "ainda que utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente causadores de significativa degradação do meio ambiente". Entidades ambientais alertam para o risco de uso político do modelo. Alcolumbre, por sua vez, fala em eficiência em prol do desenvolvimento sustentável do país.

Fato é que, ainda que Lula vete trechos do Projeto de Lei 2.159/ 2021, o país está longe de um direcionamento equilibrado e tecnicamente embasado para a questão ambiental. O prometido amadurecimento não está por vir. Ao contrário, fala-se em um forte movimento de judicialização, danos irreversíveis à flora e à fauna e, no mínimo, um desconforto internacional às vésperas da COP30, em Belém. Nesse cenário, a cautela pregada pelo presidente na negociação do tarifaço de Trump é também conduta de sobrevivência no encaminhamento da legislação ambiental que está por vir

O Congresso Nacional e a soberania

O Povo (CE)

O Congresso Nacional volta hoje a funcionar normalmente, após recesso de duas semanas, e será importante a sociedade brasileira acompanhar o comportamento dos parlamentares, deputados e senadores, diante do momento histórico marcante que vivenciamos. A soberania nacional está em debate diante da atitude hostil de um governo estrangeiro que lança mão do instrumento da política tarifária e outras medidas sancionadas como forma de pressionar o Judiciário a rever sua atitude em relação a um agente político importante de quem é aliado, ex-presidente da República, acusado de participar de uma tentativa de golpe de Estado.

Trata-se de uma intromissão inaceitável e que, no normal, deveria unir o País em torno da defesa de sua soberania. Não é o que tem acontecido e forças expressivas do Congresso, aliadas de Bolsonaro, até estimulam o governo de Donald Trump na sua disposição de punir o Brasil sob o falso pretexto de que a nossa democracia está em xeque. É exatamente o contrário do que acontece na realidade.

O fato de termos instituições no funcionamento pleno tem permitido uma resposta exemplar a um movimento que, provas robustas o mostram, tinha como objetivo ignorar a vontade popular manifesta através das urnas nas eleições de 2022, pelo voto, e instalar um governo pela força. Ademais, caso houvesse de fato os problemas alegados pelo governo de outro país a decisão de enfrentá-los deveria ser nossa, da sociedade brasileira, nunca de autoridades forasteiras.

Os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP) e da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), estão obrigados a conduzir o processo a partir da responsabilidade que lhes cabe com o máximo de cuidado e observando primeiro, sempre, os interesses do País, líderes que são de um poder fundamental ao nosso equilíbrio político. Inclusive, tomando as providências internas necessárias para cobrar compromisso com o mandato popular de parlamentares que assumem estar trabalhando para que o governo de Donald Trump puna o Brasil como forma de pressionar o Estado brasileiro.

É importante que o Congresso apresente capacidade própria de conter os excessos cometidos por seus integrantes, valendo-se de uma liberdade que somente um ambiente democrático pode proporcionar. Não fosse isso, afinal, estariam calados, ou presos, aqueles que alardeiam quase diariamente um fantasioso quadro de ditadura de toga, referindo-se à firme atuação do STF e em especial do ministro Alexandre de Moraes. Não se deve impedir que haja críticas à situação, mas elas precisam estar no limite de uma relação entre os poderes que seja tão independente quanto harmônica. Respeitosa, portanto.

Alcolumbre e Motta têm diante deles a responsabilidade de conduzir o parlamento nacional em meio a uma quadra histórica desafiadora, fortalecendo a posição do País na defesa de sua soberania. É esperado que se demonstrem à altura da tarefa.

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