segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Herzog, 50 anos, por Miguel de Almeida

O Globo

Soube pelo professor de química que o jornalista fora assassinado no DOI-Codi. Eu tinha 16 anos

Passava da uma da tarde na esquina da Alameda Santos com Rua Leôncio de Carvalho. Era minha hora de almoço numa primavera com tempo nublado, 50 anos atrás. Sentado num muro baixo, lia o paulistano Jornal da Tarde. No pé da página, a notícia da morte de Vladimir Herzog.

De noite, na escola, soube pelo professor de química que o jornalista fora assassinado no DOI-Codi. Eu tinha 16 anos e lembro-me de sentir naquele momento o que uma ditadura faz com seus adversários: mata.

Dias depois, amigos mais velhos me contaram ter estado na missa em memória do jornalista, um ato ecumênico acontecido na Catedral da Sé e que reunira cerca de 8 mil pessoas. Pelos relatos, compreendi que não fora somente uma celebração religiosa, a reza compungida pela alma do morto. Além de tudo, os presentes lutavam em defesa da liberdade de viver sem temor e não ser subjugados por um regime autoritário. Ali se rezava por todos nós.

À luz da História, a missa celebrada entre outros por Dom Paulo Evaristo Arns e pelo rabino Henry Sobel, duas figuraças com quem conviveria anos depois, marca o início da derrubada da ditadura militar. O governo do general Ernesto Geisel prometia uma abertura lenta e gradual, quando se percebeu ser o regime um corpo disforme integrado por policiais maus e policiais bons — como se isso fosse possível num regime de exceção. Havia uma briga interna. Desde seu início, em março de 1964, já desapareciam desafetos políticos — prática tornada hábito sob Emílio Médici, com a banalização da tortura e o puro assassinato, como acontecera com Herzog e ocorreria com o operário Manoel Fiel Filho, ambos no reinado de Geisel, em desafio a sua autoridade. Apenas em 1977, com a demissão do ministro do Exército, Sylvio Frota, Geisel conseguiria ter em mãos seu projeto de liberalização (nos seus termos, fique claro).

Não se derruba uma ditadura sem passar por um longo processo. O mesmo vale para chegar a um golpe, como o de 1964, que precisou de muitos anos de sedição, políticos incompetentes e, no caso específico, dinheiro americano para a compra de deputados e senadores golpistas

A reação à morte de Vlado Herzog serviu para a classe média apoiadora do golpe perceber o caráter assassino do regime. Herzog não integrava a luta armada, não pegava em armas, era somente um jornalista de esquerda, de trato afável, amante de teatro. Como ele, milhões de outros brasileiros faziam oposição intelectual aos generais. Com seu desaparecimento, caía a ficha de que qualquer um poderia ser eliminado. O filme “Pra frente, Brasil”, dirigido por Roberto Farias, lançado em 1982, baseia-se num fato real. Um cidadão comum é confundido pelos agentes da repressão com um militante da luta armada. Preso, embora dissesse ser tudo engano, é barbaramente torturado. Não havendo liberdades democráticas, com o Estado de Direito suspenso e a imprensa sob censura, a simples delação anônima podia resultar em tortura e morte.

Terminada a ditadura, um acordo de covardia institucionalizou a impunidade dos torturadores. Ao contrário do Chile e da Argentina, que julgaram seus assassinos, o Brasil varreu sob o tapete sua sujeira. Até elegeu depois alguns como deputados, mostrando como a sociedade é também um corpo disforme onde convivem o médico e o monstro. Apenas os militares foram pintados como algozes, esquecendo o apoio civil dado ao regime em nome de uma pretensa luta contra a paranoia do comunismo.

O renitente apoio ao capitão Bolsonaro, julgado e condenado por tentativa de golpe, mostra a doença autoritária da sociedade brasileira. Os manifestantes nas portas dos quartéis ou na invasão dos prédios dos três Poderes, agora pintados pela conhecida contemporização brasileira, colocariam novamente no cadafalso outros cidadãos como Vladimir Herzog ou Rubens Paiva.

Passados 40 anos da volta da democracia, e 50 daquela tarde de tempo nublado na cidade de São Paulo, o Brasil ainda paga pela herança da ditadura. Não se pode dizer que a doença passou. Permanecemos uma sociedade violenta. A cordialidade brasileira, aquela que encanta turistas e alimenta nosso ego, sempre foi verniz fino sobre a brutalidade. Existe um ex-presidente, com seus seguidores civis capazes de elogiar torturadores e um regime que prendia e matava a esmo. E existem patriotas em defesa de um golpe de Estado, com a volta dos militares ao poder, desfilando pelas ruas de camisa amarela. Eles não querem nada mais que o fim da nossa liberdade — e não apenas para quem lê notícias encostado num muro baixo.

 

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