O Globo
Soube pelo professor de química que o
jornalista fora assassinado no DOI-Codi. Eu tinha 16 anos
Passava da uma da tarde na esquina da Alameda
Santos com Rua Leôncio de Carvalho. Era minha hora de almoço numa primavera com
tempo nublado, 50 anos atrás. Sentado num muro baixo, lia o paulistano Jornal
da Tarde. No pé da página, a notícia da morte de Vladimir Herzog.
De noite, na escola, soube pelo professor de
química que o jornalista fora assassinado no DOI-Codi. Eu tinha 16 anos e
lembro-me de sentir naquele momento o que uma ditadura faz com seus
adversários: mata.
Dias depois, amigos mais velhos me contaram ter estado na missa em memória do jornalista, um ato ecumênico acontecido na Catedral da Sé e que reunira cerca de 8 mil pessoas. Pelos relatos, compreendi que não fora somente uma celebração religiosa, a reza compungida pela alma do morto. Além de tudo, os presentes lutavam em defesa da liberdade de viver sem temor e não ser subjugados por um regime autoritário. Ali se rezava por todos nós.
À luz da História, a missa celebrada entre
outros por Dom Paulo Evaristo Arns e pelo rabino Henry Sobel, duas figuraças
com quem conviveria anos depois, marca o início da derrubada da ditadura
militar. O governo do general Ernesto Geisel prometia uma abertura lenta e
gradual, quando se percebeu ser o regime um corpo disforme integrado por
policiais maus e policiais bons — como se isso fosse possível num regime de
exceção. Havia uma briga interna. Desde seu início, em março de 1964, já
desapareciam desafetos políticos — prática tornada hábito sob Emílio Médici, com
a banalização da tortura e o puro assassinato, como acontecera com Herzog e
ocorreria com o operário Manoel Fiel Filho, ambos no reinado de Geisel, em
desafio a sua autoridade. Apenas em 1977, com a demissão do ministro do
Exército, Sylvio Frota, Geisel conseguiria ter em mãos seu projeto de
liberalização (nos seus termos, fique claro).
Não se derruba uma ditadura sem passar por um
longo processo. O mesmo vale para chegar a um golpe, como o de 1964, que
precisou de muitos anos de sedição, políticos incompetentes e, no caso
específico, dinheiro americano para a compra de deputados e senadores golpistas
A reação à morte de Vlado Herzog serviu para
a classe média apoiadora do golpe perceber o caráter assassino do regime.
Herzog não integrava a luta armada, não pegava em armas, era somente um
jornalista de esquerda, de trato afável, amante de teatro. Como ele, milhões de
outros brasileiros faziam oposição intelectual aos generais. Com seu
desaparecimento, caía a ficha de que qualquer um poderia ser eliminado. O filme
“Pra frente, Brasil”, dirigido por Roberto Farias, lançado em 1982, baseia-se
num fato real. Um cidadão comum é confundido pelos agentes da repressão com um
militante da luta armada. Preso, embora dissesse ser tudo engano, é
barbaramente torturado. Não havendo liberdades democráticas, com o Estado de Direito
suspenso e a imprensa sob censura, a simples delação anônima podia resultar em
tortura e morte.
Terminada a ditadura, um acordo de covardia
institucionalizou a impunidade dos torturadores. Ao contrário do Chile e da Argentina, que
julgaram seus assassinos, o Brasil varreu sob o tapete sua sujeira. Até elegeu
depois alguns como deputados, mostrando como a sociedade é também um corpo
disforme onde convivem o médico e o monstro. Apenas os militares foram pintados
como algozes, esquecendo o apoio civil dado ao regime em nome de uma pretensa
luta contra a paranoia do comunismo.
O renitente apoio ao capitão Bolsonaro,
julgado e condenado por tentativa de golpe, mostra a doença autoritária da
sociedade brasileira. Os manifestantes nas portas dos quartéis ou na invasão
dos prédios dos três Poderes, agora pintados pela conhecida contemporização
brasileira, colocariam novamente no cadafalso outros cidadãos como Vladimir
Herzog ou Rubens Paiva.
Passados 40 anos da volta da democracia, e 50
daquela tarde de tempo nublado na cidade de São Paulo, o Brasil ainda paga pela
herança da ditadura. Não se pode dizer que a doença passou. Permanecemos uma
sociedade violenta. A cordialidade brasileira, aquela que encanta turistas e
alimenta nosso ego, sempre foi verniz fino sobre a brutalidade. Existe um
ex-presidente, com seus seguidores civis capazes de elogiar torturadores e um
regime que prendia e matava a esmo. E existem patriotas em defesa de um golpe
de Estado, com a volta dos militares ao poder, desfilando pelas ruas de camisa
amarela. Eles não querem nada mais que o fim da nossa liberdade — e não apenas
para quem lê notícias encostado num muro baixo.
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