segunda-feira, 20 de outubro de 2025

O ministro que não foi e o legado de Niède, por Bruno Carazza

Valor Econômico

Com ministro demissionário, falta de políticas de turismo gera oportunidades perdidas de desenvolvimento e inclusão

Em 26 de setembro, o ministro do Turismo, Celso Sabino, apresentou a sua carta de demissão, após pressão da liderança de seu partido, o União Brasil. Embora o ministro continue despachando normalmente, uma eventual troca no comando do ministério não será surpresa, dado o contexto político do governo, sempre às voltas com uma crise no Congresso.

Desde que foi criado como pasta independente, em 2003, o tempo médio de duração de um ministro do Turismo no cargo é de menos de 19 meses - Sabino está lá há quase 27. A consequência óbvia dessa permanente dança de cadeiras é a descontinuidade das políticas públicas, pois nem bem o indicado toma pé da situação, ele perde o cargo por denúncias de corrupção ou brigas políticas.

Com isso, o país perde grandes oportunidades. No início da década de 1970, quando ninguém falava em desenvolvimento sustentável e inclusivo, uma estudiosa brasileira fez uma descoberta que revolucionou o seu campo de pesquisa e ainda mudou a vida de milhares de pessoas numa região pobre e esquecida do país.

Ao tomar conhecimento da existência de grandes murais com pinturas rupestres no sertão do Piauí, a arqueóloga Niède Guidon organizou em 1973 uma missão de pesquisadores brasileiros e franceses que encontrou vestígios de presença humana muito anteriores à visão até então dominante de que o homem teria chegado à América cerca de 15 mil anos atrás.

Desde então, levas de pesquisadores têm encontrado evidências consistentes de que o homo sapiens ocupa a América há mais de 50 mil anos, o que por si só seria digno de louvor. Mas o legado de Niède vai muito além da arqueologia.

Insistente, a pesquisadora convenceu as autoridades em Brasília a criarem o Parque Nacional da Serra da Capivara em 1979. Diante da escassez de recursos públicos, tratou de firmar convênios e obter financiamentos internacionais para a infraestrutura e as pesquisas no local.

Ela também inovou no envolvimento da população do entorno da área desapropriada em projetos educacionais (ela criou as primeiras escolas integrais do Piauí) e econômicos. Hoje as cerâmicas produzidas lá e ilustradas com cenas pré-históricas são vendidas em lojas de decoração no Brasil e no exterior, e a cidade de São Raimundo Nonato, “capital” do parque, é o quarto município brasileiro em produção de mel - geração de emprego e renda idealizada por Niède e sua equipe.

Hoje a cargo do ICMBio, a gestão do parque ainda segue os princípios estabelecidos por Niède, das portarias ocupadas exclusivamente por mulheres e aos guias licenciados. Treinados para serem guardiões do parque, eles são protetores contra o vandalismo, a sujeira e o risco de incêndio (“aqui só pode tirar fotografia, matar a curiosidade, deixar pegadas e queimar calorias”, foi a primeira informação do guia Wilk, que me acompanhou).

Nada se compara, porém, ao potencial turístico. Com formações rochosas que abrigam o maior conjunto de pinturas rupestres a céu aberto do mundo, o Parque Nacional da Serra da Capivara foi reconhecido em 1991 pela Unesco como Patrimônio Mundial da Humanidade. Dois museus interativos (da Natureza e do Homem Americano) não deixam nada a dever para o Museu do Amanhã, no Rio, ou o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.

Ainda assim, pouco mais de 39 mil turistas visitaram o parque em 2024. Só para se ter uma comparação, estima-se que um milhão de pessoas visitem o Deserto de Atacama, no Chile, anualmente, dos quais de 30% a 40% seriam brasileiros.

O desconhecimento, infelizmente, não é exclusivo da Serra da Capivara. Os 74 parques nacionais receberam apenas 12,5 milhões de visitantes em 2024, segundo o ICMBio - e esses dados ainda são inflados pelo acesso de turistas a atrações como o Cristo Redentor, as Cataratas do Iguaçu e as praias de Jericoacoara, que ficam dentro de unidades de conservação.

Estudo do Boston Consulting Group, encomendado pelo instituto Semeia, estima que se conseguíssemos quadruplicar o número de visitantes aos parques (uma estimativa factível, dado os imensos atrativos naturais e históricos), haveria a geração de um milhão de empregos e uma movimentação extra de R$ 36 a 44 bilhões por ano.

Esse potencial, porém, não será alcançado sem uma política pública estruturada. Hoje a gestão e a promoção dos parques encontram-se dispersos entre os ministérios do Meio Ambiente, do Turismo e a Embratur, enquanto as parcerias com a sociedade civil (a receita de sucesso de Niède na Capivara) são limitadas.

Dinheiro não é problema; falta estratégia e prioridade. Desde janeiro o Piauí recebeu R$ 769,9 milhões em emendas parlamentares. Desse montante, os quatro municípios que compõem o parque nacional (Brejo do Piauí, Coronel José Dias, João Costa e São Raimundo Nonato) receberam apenas R$ 14,5 milhões - menos de 2% do total.

A falta de uma política articulada de turismo centrada no potencial dos parques nacionais significa oportunidades de desenvolvimento e inclusão perdidas.

Niède Guidon faleceu no dia 4 de junho deste ano - um dia antes do aniversário de 46 anos do parque nacional que ela criou.

 

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