O Globo
É uma lógica que infantiliza o cidadão,
tratando-o como alguém que deve ser impedido de escolher
A recente decisão do governo de impedir
beneficiários do Bolsa Família e
do BPC de realizar novos depósitos em contas vinculadas a sites de apostas
parte de uma boa intenção — proteger a parcela mais vulnerável da população do
vício —, e isso é ótimo. No entanto a medida erra no alvo e na forma, com uma
mera proibição.
Apostar não exige mais que um celular, um CPF e um Pix. A rede de cadastros paralelos, contas em nome de terceiros e promessas de “entrar para o time de investidores” faz com que a proibição funcione mais como obstáculo simbólico do que como mecanismo real de proteção.
O ponto central ignorado por essa política é
o funcionamento das propagandas das casas de aposta. Elas não se apresentam
como jogo, e sim como oportunidade de “renda extra com estratégia”.
O Estado mira o gesto final, mas ignora a
teia de sedução que levou aquele incauto até ali. Sem mexer na engrenagem de
convencimento, a política se torna mais um caso de enxugar gelo — a aparência
de controle serve apenas para registrar uma ação governamental, mas não para
transformar a realidade.
Esse tipo de medida aposta num modelo de
paternalismo autoritário, em que o Estado pressupõe incapacidade total de
discernimento dos beneficiários e, em vez de intervir na causa do
comportamento, tenta apenas bloquear a ação final.
É uma lógica que infantiliza o cidadão,
tratando-o como alguém que deve ser impedido de escolher, em vez de alguém que
deve ser preparado para decidir com consciência. A psicologia e a economia
comportamental já demonstraram que essa não é a direção mais adequada.
Daniel Kahneman — em seu livro “Rápido e
devagar: duas formas de pensar” — explica que uma política pública sustentável
precisa enfrentar comportamentos internalizados. Ele traz o exemplo de uma
simples pergunta que, dependendo de como esteja posta, faz um país ter 5% de
doadores de órgãos e leva outro — com características semelhantes — a chegar a
95%.
Por isso, em vez de simplesmente proibir,
seria mais eficiente usar estratégias de nudge, entendidas como pequenas intervenções na
arquitetura de escolha que alteram a percepção da decisão a tomar.
No caso das bets, esse empurrão reorganiza o
ambiente de decisão para que o cidadão, mesmo em vulnerabilidade emocional ou
financeira, possa acionar uma deliberação consciente e, então, escolher.
Pensando por alto, três medidas seriam mais
eficazes no longo prazo do que a mera proibição: 1) criar um “modo protegido”
no recebimento do benefício, destinando automaticamente parte do valor a gastos
essenciais e oferecendo bônus ou cashback social para quem ativar essa
proteção; 2) definir como padrão uma conta de uso guiado, permitindo que o
gasto livre exista, mas com alertas e confirmações que façam o beneficiário
refletir antes de desviar recursos essenciais para jogos; e 3) enviar alertas
comportamentais e simuladores de impacto financeiro, mostrando de forma
concreta quanto apostar compromete o orçamento do mês.
O Brasil ama um paternalismo — e é exatamente
por esse motivo que nunca saímos do subdesenvolvimento. É preciso mudar, e
logo.
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