O Globo
O vilão de ontem vira herói hoje, para logo
virar vilão novamente. Preservar as instituições é o maior ato de heroísmo
No final de 2024, um comitê do Senado
americano divulgou o resultado de uma investigação de 20 meses sobre a “crise
ética” da Suprema Corte dos Estados Unidos. O documento, chamado “Uma
Investigação sobre o Desafio Ético da Suprema Corte”, apontava “lapsos éticos”
e “repetidas falhas” de seus juízes. A investigação partia de um pressuposto
básico: juízes vestem capas, mas não são super-heróis.
— Agora, mais que nunca, sabemos a extensão da crise ética em que a Suprema Corte está atolada, crise criada por ela mesma. Seja por não divulgar presentes luxuosos ou por não se declarar impedida em casos com aparentes conflitos de interesse, fica claro que os juízes estão perdendo a confiança do povo americano nas mãos de um bando de bilionários bajuladores. — disse o senador democrata Dick Durbin ao término da investigação.
Clarence Thomas, indicado em 1991 por Bush
pai, escondeu caronas em jatinhos e passeios em iates oferecidos por um
magnata. Antonin Scalia, indicado por Reagan em 1986 (ele morreu em 2016),
aceitou “durante mais de uma década presentes luxuosos de bilionários e de
pessoas com negócios perante o tribunal, incluindo 258 viagens pessoais”.
Sotomayor, indicada por Obama em 2009, falhou ao não dar transparência a uma
viagem paga uma universidade. O desconforto com os “lapsos éticos” foi
mensurado pelo Pew Research Center, em agosto, quando metade dos americanos
disse ter opinião favorável da Suprema Corte — em 2020, 70% a via com bons
olhos.
O Supremo brasileiro passa por crise
parecida. A viagem de jatinho de Toffoli e o contrato da mulher de Moraes com o
Master são as polêmicas mais recentes. Mas já faz algum tempo que o STF ignora
a prestação de contas, seja em viagens, eventos ou na atuação de
parentes-advogados. Também avança nas questões do Direito, como o excesso de
decisões monocráticas ou a mudança das regras do jogo de acordo com
conveniências políticas.
É natural que os defensores do golpismo se
sintam incomodados com o Supremo. Mas esse modus operandi também passou a
causar desconforto em quem defende a democracia e quer golpista preso. Em quem
entende que democracia de verdade não é vale-tudo, mas um sistema funcional de
freios e contrapesos, que não protege castas.
Nos Estados Unidos, a resposta à crise foi a
criação de um Código de Conduta em 2023. Aqui no Brasil, o presidente do STF,
Edson Fachin, teve a coragem de defender um manual de boas práticas. Alguns dos
mais influentes ministros são contra, como se fosse demérito estar no mesmo
patamar do resto da sociedade, sujeita a regras de conduta escritas. Fachin tem
como exemplo o Tribunal Constitucional da Alemanha, que, cinco anos antes dos
americanos, editou seu manual de boas práticas. Entre os princípios, o óbvio:
os juízes só podem aceitar presentes ou viagens que não comprometam a reputação
do tribunal nem lancem dúvidas sobre a independência e imparcialidade dos seus
integrantes.
No Brasil, estamos sempre em busca de um
herói. Fora dos quadrinhos, pessoas são de carne e osso. O vilão de ontem vira
herói hoje, para logo virar vilão novamente. Preservar as instituições é o
maior ato de heroísmo.

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