quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Democracia começa pela ética dos juízes. Por Celso de Mello

O Estado de S. Paulo

Código de conduta não enfraquece o Supremo Tribunal Federal, mas fortalece-o imensamente

A proposta do ministro Edson Fachin, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), de adotar um código de conduta para os ministros da Suprema Corte, merece amplo apoio da cidadania. Trata-se de medida de Estado, moralmente necessária e institucionalmente urgente.

Em democracias consolidadas, a confiança na Justiça exige não só juízes honestos, mas regras claras, que impeçam qualquer aparência de favorecimento, dependência ou proximidade indevida com interesses privados e governamentais.

A experiência recente dos EUA é eloquente. A imprensa norte-americana revelou que dois juízes da Suprema Corte, Samuel Alito e Clarence Thomas, aceitaram viagens, hospitalidade e benefícios oferecidos por empresários bilionários ligados a interesses políticos e econômicos. As denúncias mobilizaram investigações jornalísticas, audiência no Congresso e intenso debate público. Particular relevo assumiu o caso do justice Clarence Thomas, que, ao longo de quase 20 anos, teria recebido viagens nacionais e internacionais, hospedagens de alto padrão, transporte em aeronaves privadas e hospedagens em iates, benefícios estendidos a ele e a sua esposa, oferecidos por alguns benfeitores, notadamente um empresário bilionário de grande influência política e grande doador do Partido Republicano americano.

Segundo estimativa divulgada pelo Comitê Judiciário do Senado dos EUA, o valor acumulado dessas vantagens teria superado US$ 4,7 milhões, em apuração decorrente de investigações parlamentares e reportagens que indicaram a não declaração de parte significativa desses benefícios em formulários patrimoniais ( How ProPublica Exposed Ethics Scandals at the US Supreme Court, em Global Investigative Journalism Network, 25/4/2024).

A duração prolongada das práticas, o vulto estimado dos valores e a concentração dos benefícios suscitaram severas críticas públicas e debate institucional sobre a suficiência de um sistema ético baseado apenas na autocontenção pessoal ( New ethics inquiry details more trips by Clarence Thomas paid for by wealthy benefactors, The Guardian, 21/12/2024).

Em resposta, a Suprema Corte editou, em 2023, uma declaração referente ao Code of Conduct, pela qual a Corte Suprema dos EUA, reagindo às fortes críticas recebidas, afirmou tomar como referência o texto do Code of Conduct for United States Judges, sem, contudo, adotar código próprio vinculante. Os preceitos do Código de Conduta dos Juízes Federais americanos consagram a integridade e a independência do Judiciário; a vedação da impropriedade e de sua aparência; o desempenho imparcial, diligente e competente das funções; a regulação das atividades extrajudiciais; e a abstenção de atividade político-partidária.

Esse documento mencionado na declaração da Suprema Corte, que remete ao Código de Conduta dos Juízes Federais americanos, estabelece, como se vê, cinco princípios: independência, imparcialidade, transparência sobre atividades extrajudiciais, prevenção da impropriedade (e até da aparência de impropriedade) e abstenção de engajamento político. Ainda que limitado, o gesto institucional da Corte Suprema dos EUA representa um avanço: a ética judicial deve estar visível, escrita e aberta ao escrutínio da sociedade.

Em contraste, o Tribunal Constitucional Federal alemão ( Bundesverfassungsgericht) oferece paradigma distinto, marcado por uma cultura institucional preventiva. Nesse tribunal, a conduta de seus juízes é orientada por um Verhaltenskodex (código de conduta ou de comportamento) autoimposto pela própria Corte, resultante de deliberação interna dos magistrados e consolidado como expressão de uma cultura institucional rigorosa de ética judicial.

Embora não se trate de código promulgado por lei formal, esse conjunto de diretrizes internas tem elevada força normativa e simbólica, funcionando como parâmetro vinculante de conduta funcional e extrafuncional dos juízes constitucionais.

Este Verhaltenskodex estrutura-se em torno de princípios essenciais, entre os quais se destacam a integridade pessoal e funcional do magistrado constitucional, como pressuposto da legitimidade da jurisdição; a independência e a imparcialidade, concebidas em sentido não só subjetivo, mas sobretudo objetivo, para afastar qualquer situação suscetível de gerar dúvida razoável quanto à isenção do juiz; e a vedação não só de conduta imprópria, mas também da mera aparência de impropriedade, exigindo que o magistrado permaneça “acima de qualquer dúvida” ( über jeden Zweifel erhaben).

No mesmo sentido, esse código alemão impõe restrições severas ao recebimento de presentes, benefícios, hospitalidades ou vantagens oferecidas por terceiros, admitindo apenas atenções de caráter social insignificante, destituídas de potencial para comprometer a confiança pública na integridade, imparcialidade e independência da jurisdição constitucional. Estabelece, ainda, limites estritos às atividades extrajudiciais, especialmente quanto à participação em eventos, conferências ou compromissos que possam acarretar conflitos de interesses, exposição indevida ou risco à percepção de imparcialidade.

O Brasil pode – e deve – inspirar-se nesses modelos, notadamente no do Tribunal Constitucional Federal alemão.

No caso do STF e dos tribunais superiores, um código de conduta não reduz a independência dos ministros; ao contrário, protege-a, afastando suspeitas, prevenindo constrangimentos e fortalecendo a autoridade moral das decisões da Corte.

Em tempos de desinformação, polarização e descrédito institucional, a transparência é virtude que reforça os pilares republicanos. Não basta ser imparcial, é preciso ser imparcial e também parecer imparcial! A Justiça não se sustenta no prestígio pessoal de seus julgadores, mas na confiança pública que inspira. A proposta do ministro Edson Fachin atende a um imperativo republicano. É hora de apoiá-la. A República o exige! 

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