É de se questionar se um ex-colaborador da ditadura deveria representar o Brasil na Copa do Mundo
Muitas imprecisões já rondaram o caso Vladimir Herzog, morto no DOI- Codi no dia 25 de outubro de 1975. Suicídio? Não. Descuido dos militares, que ultrapassaram os limites da tortura? Ou assassinato deliberado, simplesmente para demonstrar poder? Fica a dúvida até hoje. Fato é que, nessa trama urdida pela ultradireita do II Exército, muitos atores desempenharam importante papel, como Sérgio Fleury, Harry Shibata, Ednardo D'Ávila Mello, Fausto Rocha e Cláudio Marques, nomes conhecidos da história. Mas, no desenrolar dessa trama, outros desempenharam papel coadjuvante. Entre eles, José Maria Marin.
O nome voltou à tona a partir de um texto do repórter britânico Andrew Jennings (http://migre.me/dud4t). Também esquentou o caldo a campanha de Ivo Herzog contra a presença de Marin na presidência da CBF(http://migre.me/dud6w). Mas, à época deputado estadual pela Arena, Marin pode ser considerado um serviçal menor nessa história. No paralelo corria uma caçada aos jornalistas, acusados de promover uma infiltração comunista na imprensa paulista - e muitos discursos feitos por políticos na Assembleia pretendiam oferecer acusações e pretextos para justificar as prisões desses jornalistas. Capitaneados por D'Ávila Mello, os militares estavam à caça desde julho de 1975. Em setembro, já diretor de jornalismo da TV Cultura, Vlado estava no alvo: era acusado de liderar a dominação comunista na emissora.
Quinze dias antes da prisão de Vlado, o deputado Wadih Helu tomou a palavra para criticar a TV Cultura, que, dizia ele, estaria dominada por subversivos. Viria depois a intervenção de José Maria Marin, endossando tais críticas num aparte. Na carona de Helu, Marin fez uma figuração a serviço dos militares. Um papel menor, insisto. Mas que, àquele momento, contribuiu com essa trama. Quem resgatou essa questão foi Juca Kfouri nos últimos tempos, ao compartilhar trechos das intervenções de Marin publicados no Diário Oficial (http://migre.me/dudzy).
Atores maiores foram Cláudio Marques e principalmente Fausto Rocha - os jornalistas"democráticos" -, que acusavam e entregavam outros jornalistas. Numa solenidade da Escola Superior de Guerra, no Palácio dos Bandeirantes, Fausto Rocha fez um discurso inflamadíssimo contra a profissão de repórter, dizendo que as redações estavam dominadas por comunistas. À época eu presidia o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo. Em nota, criticamos esse discurso de Rocha - afinal, era uma acusação perigosa e, na minha opinião, não inocente. Assim se iniciou o papel do sindicato. Tínhamos um movimento de fortalecimento do sindicato nas redações, com um projeto político: a resistência à ditadura. Aí inventaram que pretendíamos tomar de assalto a imprensa brasileira e, de repente, disseram que estávamos armando um complô! Certo que havia muito delírio naquelas circunstâncias - mas, muitas vezes, um delírio "deliberado".
Fui convocado pelo comandante do II Exército para discutir essa nota. No fim da conversa, disse-me o general D"Ávila Mello: "Vocês cometeram uma grande injustiça. Esse rapaz (Fausto Rocha) tem razão. Os comunistas estão infiltrados nas redações". Saí de lá espantado com essa declaração. Depois disso explodiu essa campanha contra jornalistas, que teria estopim em outubro: 11 jornalistas foram sequestrados; Vlado, o 12°. Antes dele, 21 foram mortos (ou até hoje são considerados desaparecidos políticos) desde 1964. Outubro mostrou que as acusações semeadas em julho estavam se concretizando.
Três dias antes da morte de Vlado, acontecia uma conferência da Sociedade Interamericana de Imprensa, presidida por Julio de Mesquita Neto. Num momento de ousadia, pedi a palavra. Era uma quarta-feira. Pedi a palavra e disse os nomes dos jornalistas presos, pensando que isso evidentemente se destacaria, pois estaria denunciando prisões ilegais diante de jornalistas de vários países das Américas. Isso irritou os militares que, num primeiro momento, recuaram. E, erradamente, pensei que eles continuariam a recuar cada vez mais. Mas não.
Fui convocado outra vez, para justificar essas declarações ao Exército. Disseram-me que estava caminhando num processo de clara subversão e que poderia ser enquadrado no artigo 14 da Lei de Segurança Nacional. Pensei: a coisa ficou feia. Podia ser a minha vez. Ao mesmo tempo, tinha consciência de que, uma vez feita a denúncia, estaria relativamente protegido. A convocação era uma intimidação, uma afirmação da autoridade. "Os senhores do sindicato fiquem tranquilos", disse um general. Imagine se ficamos...
Nós, jornalistas, estávamos no meio de uma briga de cachorro grande. De um lado, os linha-dura. De outro, os militares que queriam garantir o retorno gradual à democracia - sempre faço essa ressalva. Uns pensavam que, se não afrouxassem as cordas um pouco, o regime poderia explodir. De fato, explodiu a partir do assassinato de Vlado. Pois foi o primeiro caso em que fizemos uma denúncia contundente contra uma morte nos porões, deflagrando um forte movimento de protesto. Ao lado de outros companheiros, eu tinha consciência de que estávamos entrando numa briga. E a censura certamente era nossa maior inimiga. Nisso, um fato importante foi a retirada da censura ao jornal O Estado de S. Paulo, em janeiro de 1975, o que contribuiu para que, no caso Vlado Herzog, publicássemos a notícia da morte. Também o culto ecumênico, noticiado com destaque principalmente pelo Jornal da Tarde, contribuiu para esse movimento - apesar da cidade sitiada para impedir a chegada à Catedral da Sé, 8 mil pessoas marcaram presença nesse dia, um marco na luta contra a ditadura, que já começaria a ruir.
Diante dessa trama maior, é natural questionar sobre José Maria Marin: como um homem (não só um deputado, mas vice-governador e depois governador) com esse passado pode ocupar um cargo dessa relevância no presente? Como um cara assim pode representar o Brasil, nesses tempos de Copa do Mundo? Na minha opinião, isso é simplesmente uma consequência da leniência do Brasil em relação aos que contribuíram (direta ou indiretamente, com maior ou menor papel) com a ditadura militar. Sei que, legalmente, o governo não pode interferir: Marin não pode ser demitido. No entanto, o governo poderia influir politicamente.
Além disso, sabemos que há muitas pessoas de passado importante na história de repressão que atualmente ocupam cargos na política nacional. A leniência persiste, mas a resistência precisa continuar. Estou trabalhando na Comissão da Verdade, Memória e Justiça dos Jornalistas Brasileiros, que contribuirá com a Comissão Nacional da Verdade. Minha questão principal é: no caso Herzog, como em muitos outros, não foram esclarecidas as circunstâncias dos assassinatos. Vemos agora que casos mentidos e desmentidos durante 30 e tantos anos, como o do deputado Rubens Paiva, precisam ser revelados. É a hora de esclarecer esses detalhes.
Depoimento a Juliana Sayuri
Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo
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