Os Awá-Guajá são um dos últimos povos no mundo cuja cultura se baseia economicamente na caça e pesca de animais e na coleta de frutos, raízes e cipós. Vivendo nas franjas da Floresta Amazônica, no estado do Maranhão, espalhados em pequenos grupos de 6 a 30 pessoas que, hoje em dia, mal conseguem se relacionar entre si, os Awá-Guajá constituem um exemplo vívido da capacidade do ser humano de viver o mais frugalmente possível, com um mínimo imaginável de impacto ambiental e, ao mesmo tempo, de produzir uma extraordinária e íntegra riqueza cultural de vivência social e conhecimento da natureza.
Os Awá-Guajá nascem no meio da mata e se criam no meio da mata. Seus filhos são alegres e saudáveis, seu amor pela vida é testemunho de sua sobrevivência e seu amor pela natureza é comprovada até pelo ato das mulheres darem de mamar aos filhotes de macacos e outros mamíferos que são capturados nas suas caçadas. Não fumam, não bebem, não fazem uso de nenhum tipo de droga, mas são capazes de se auto-induzirem a “subir aos céus”, por ocasião de seu principal ritual religioso, e lá se comunicarem com as almas dos mortos e voltarem para sanar o sofrimento dos vivos.
É possível uma sociedade viver só da caça, pesca e coleta de frutos e raízes, sem fazer uso da agricultura? Mais ainda, é possível uma sociedade que vivia da agricultura um dia se voltasse para a pura condição social de caça e coleta?
Bem, claro que é possível, pois ser caçador-coletor tem sido a grande aventura do Homem, de seus primórdios quando se fez Homo sapiens, há uns 200.000 anos, até uns 10.000 anos atrás, quando, aqui e acolá, passou lentamente a plantar aquilo que re-colhia como parte de suas atividades de coletor. E os Awá-Guajá, como os Bosquímanos e Haida da África setentrional, são exemplo disso.
Ao longo dos últimos 170 anos, os Awá-Guajá re-elaboraram sua cultura com base na caça e coleta. Antes eram agricultores, como os demais povos indígenas de fala tupi-guarani, a exemplo dos Tupinambá, que nos legaram seus principais cultígenos, como a mandioca, o milho, o jerimum, o algodão, o amendoim e tantos outros produtos de nossa mesa. Sua passagem de agricultores para caçadores-coletores se deu provavelmente em função da condição social de fuga a que foram submetidos após a rebelião da Cabanagem, que ocorreu no Pará entre 1838 e 1840 e que provocou grandes distúrbios e mudanças na região do baixo rio Tocantins, com muitos povos indígenas sendo perseguidos.
Do baixo Tocantins os Awá-Guajá foram migrando em direção leste e alguns anos depois já haviam cruzado o rio Gurupi e entrado no território do Maranhão. Aí foram reconhecidos pelos índios Guajajara como um povo nômade. Quando conheci os Guajajara, como antropólogo, na década de 1970, eles se compraziam em dizer que os Awá-Guajá eram a versão original deles, quando ainda não tinham agricultura, e quando os encontravam tentavam persuadi-los a viver em aldeias e fazer roçados. Outro vizinho indígena, os Urubu-Kaapor, os consideravam gente da mata, ka´apyhara, nascidos do ato criativo de Maira, igual a eles próprios, só que a partir de um pau podre, desmerecendo-os, e os atacava sempre que as circunstâncias os empurravam a tanto.
Durante todo o século XX o velho Serviço de Proteção dos Índios (SPI - 1910-1967), criado pelo Marechal Rondon, tentou contatar os Awá-Guajá, pelos rios Gurupi, Caru, Pindaré, Zutiua e Grajaú, mas eles se esquivavam de qualquer relacionamento permanente. Até que, já pelos idos de 1960 e 1970, premidos pela entrada de milhares de nordestinos nas terras em que vivam, alguns grupos Guajá começaram a se deparar com posseiros, recebendo algum machado ou facão em troca de arcos e xerimbabos, pagando em conseqüência o preço do contágio de gripes e sarampo, e morrendo à míngua pelas veredas e pelas beiradas dos rios. O grande território onde viviam foi sendo ocupado e os Awá-Guajá foram se recolhendo aos pontos mais distantes das beiras dos rios.
Diante de uma catástrofe que se avizinhava velozmente, em 1973, no alto rio Turiaçu, uma equipe da FUNAI fez um contato amistoso com um grupo de Awá-Guajá e estabeleceu um posto indígena. Eram 12 pessoas e logo a eles se juntaram mais uns dois ou três grupos, formando uma população de 54 pessoas por volta de 1978. Desde então, pouco a pouco, com muitas mortes contadas e outras tantas olvidadas, os demais grupos Guajá foram se aproximando e sendo contatados por indigenistas da FUNAI, em terras distantes uma das outras.
As mortes por doenças prosseguiram por toda a década de 1970, e parecia que os índios não iriam sobreviver. Até a década de 1980, aliás, ninguém achava que os índios brasileiros iriam ter outro destino senão sua extinção física e cultural[2].
Em 1980 havia apenas 24 Guajá vivendo no posto indígena do Alto Turiaçu. Naquele ano um novo grupo foi contato, com 30 pessoas, das quais sete morreram nos primeiros meses do contato. Esse grupo foi levado para a Terra Indígena Caru e lá se encontrou com outros grupos e logo somavam mais de 100. Em 1987 e em 1993 mais dois grupos foram contatados e mais gente Guajá foi se agregando.
Hoje os Guajá somam mais de 340 pessoas e vivem em três terras indígenas: Alto Turiaçu, com 530.000 hectares, a qual compartilham com índios Urubu-Kaapor, Tembé e Krejê; Rio Caru, com 176.000 hectares, compartilhada com os Guajajara; e Arariboia, 413.000 hectares, compartilhada com os Guajajara.
Sobreviverão? Sim! A menos que sejam abandonados pelo poder público à sanha de madeireiros e fazendeiros da região. Simples assim.
Na Terra Indígena Arariboia vive um grupo de talvez 15 a 20 Guajá que ainda hoje se recusa a entrar em contato com seus vizinhos Guajajara. Entretanto, são ocasionalmente vistos por esses índios, quando entram na floresta para caçar, e também por madeireiros que invadem aquela terra indígena para derrubar madeira de lei. Estão em perigo de serem contatados por quem não tem a mínima noção do que fazer se isto acontecer, e certamente terão um destino cruento.
O que fazer para dar condições de sobrevivência aos Awá-Guajá do Arariboia, que ainda vivem exclusivamente da caça e da coleta, no meio de um contingente de mais de 3.000 índios Guajajara que acham que aquela terra é exclusivamente deles? Eis um dilema a mais para a FUNAI resolver nos próximos meses ou poucos anos.
Os Awá-Guajá que vivem próximo a postos indígenas já não vivem exclusivamente da caça e coleta. Aprenderam a fazer roçados, a plantar mandioca, milho, feijão, jerimum e arroz, e não passam mais sem esses produtos. Entretanto, continuam firmes no exercício de suas caçadas e coletas dentro da mata. Passam dias e semanas sem voltar às roças e aos postos indígenas (que foram vergonhosamente extintos pela FUNAI quatro anos atrás, deixando-os a mercê das missões religiosas e ONGs oportunísticas). Em alguns casos, recebem bolsa alimentação, um dos atos mais extemporâneos e irresponsáveis perpetrados contra eles, em substituição à presença de indigenistas que poderiam estar ajudando-os a fazer uma transição cultural menos traumática.
A vida cultura dos Guajá prossegue, mesmos nessas circunstâncias. Os madeireiros rondam suas terras, penetram nelas impunemente, já que a FUNAI não tem mais força para contê-los, e o governo federal só age esporadicamente, no calor de alguma tragédia.
Espera-se uma tragédia para haver alguma ação. Eis o que provoca nas pessoas que conhecem a situação dos Guajá o senso de indignação e raiva pela atitude irresponsável do governo federal, em especial da FUNAI, que a cada dia perde as condições mínimas de ação indigenista.
Os Awá-Guajá constituem uma raridade cultural no panorama indigenista brasileiro. São um patrimônio da nação brasileira. Abandoná-los à sua sorte será um crime contra eles e contra a humanidade.
{1} Antropólogo, professor da UFRJ. Trabalhou e pesquisou com os índios Awá-Guajá durante as décadas de 1980 e a 1990. Ex-presidente da FUNAI, autor dos livros Os índios e o Brasil (2012), Antropologia Hiperdialética (2011), O Índio na História (2002) e outros.
{2} Em 1988 publiquei o livro Os índios e o Brasil (Vozes, em terceira edição, Ed.Contexto, 2012) no qual, revendo os dados históricos e a atualidade, anunciava que os índios afinal estavam crescendo de população e tinham muitas condições para sobreviver. Foi uma surpresa na antropologia e uma reviravolta na visão que tínhamos sobre a questão.
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