Por Fernando Torres e Cláudia Schüffner - Valor Econômico
SÃO PAULO e RIO - Documentos internos da Petrobras, obtidos pelo Valor, contrariam a versão da estatal e de seu ex-presidente José Sergio Gabrielli, de que, dos mais de US$ 1,23 bilhão gastos direta e indiretamente na compra da refinaria de Pasadena, US$ 340 milhões se referiam a estoques. O argumento tem sido usado para reduzir o montante teoricamente pago pelo "ativo refinaria" para US$ 485 milhões, e assim diminuir a distância para os US$ 42,5 milhões que a Astra diz ter pago pela unidade em 2004.
Em reunião na semana passada com deputados da bancada do PT na Câmara, Gabrielli disse que a Petrobras "não pagou US$ 1,2 bilhão, pagou US$ 485 milhões". Segundo ele, a diferença "foi compra de estoque e pagamento de despesas bancárias e despesas judiciais".
Segundo a versão oficial, da primeira parcela de US$ 359 milhões paga pela Petrobras à Astra, US$ 189 milhões seriam por 50% do ativo refinaria e outros US$ 170 milhões pelos estoques da trading (esse valores não contemplam ajustes posteriores).
Em abril de 2009, a Petrobras teria sido obrigada a pagar mais US$ 296 milhões pela segunda metade da refinaria (totalizando US$ 485 milhões pelo ativo) e outros US$ 170 milhões pela segunda metade dos estoques.
A documentação obtida pelo Valor, no entanto, indica que os US$ 340 milhões pagos supostamente por estoques, na verdade integravam a avaliação do ativo.
O valor de referência para a aquisição sempre foi de US$ 678,5 milhões. Mesmo antes de fechar a compra de 50%, a Petrobras recebeu propostas para ficar com 70% do negócio, pagando US$ 475 milhões, ou com 60%, com desembolso de US$ 407 milhões. Em ambos os casos, o valor embutido para 100% era de US$ 678,5 milhões.
A compra de uma parcela superior a 50% do capital não prosperou porque a sócia belga exigia ter paridade nos órgãos de governança mesmo que tivesse 30% ou 40% no capital - o que a Petrobras não aceitou.
Oficialmente, foi determinado o valor de US$ 378,5 milhões para 100% da refinaria e outros US$ 300 milhões para o "capital atribuído" pela Astra na trading que venderia os derivados.
A Petrobras argumenta que esse "capital atribuído" eram os estoques da trading. Mas não é isso que consta dos relatórios e pareceres usados pela diretoria para aprovar a transação em fevereiro de 2006.
Segundo a documentação que foi levada à diretoria da Petrobras em 2 de fevereiro de 2006 - véspera da reunião do conselho de administração que aprovou o negócio -, a separação do valor pago pela Petrobras à Astra em uma fatia correspondente à refinaria e outra à trading teve como único objetivo a estruturação de um planejamento tributário para beneficiar tanto a sócia belga como a estatal.
Em vez de a Petrobras pagar US$ 359 milhões por 50% do negócio todo, US$ 189 milhões seriam desembolsados pela unidade física de refino e mais US$ 170 milhões seriam aportados pela empresa brasileira na trading que seria criada e seria a detentora, não de estoques, mas dos "direitos de comercialização" dos derivados processados ao longo dos anos.
Como a segunda parte seria paga em parcelas, seu valor presente se aproximava de US$ 150 milhões em fevereiro de 2006 - ou metade do "capital atribuído" pela Astra.
Esses "direitos de comercialização" existiam porque, mesmo antes do negócio com a Petrobras e também por questões fiscais, a Astra já usava essa estrutura separada, com a trading do grupo sendo a dona do petróleo e dos derivados (antes e depois do refino), e pagando à refinaria uma taxa fixa de US$ 2,25 por barril processado, basicamente para cobrir os custos operacionais e manter o ativo fixo.
O documento interno dizia ainda que, além dos US$ 359 milhões iniciais, a Petrobras teria que injetar mais US$ 50 milhões para garantir metade do capital de giro e "50% do valor necessário para a aquisição dos estoques de petróleo e derivados", sem menção a nenhum valor pré-definido. É mais uma evidência de que os US$ 170 milhões pagos pela participação na trading não eram estoques.
Mas em vez de pagar diretamente os US$ 170 milhões pela primeira metade dos "direitos de comercialização" da trading, foi feito um desenho pelo qual a Petrobras deixaria a Astra ficar com uma parcela de US$ 85 milhões da receita da comercializadora no primeiro ano (antes de ela precisar dividir qualquer lucro com a brasileira), e outra parcela de igual valor no segundo ano.
Esse mecanismo, que foi chamado tecnicamente de "alocação especial", equivale, do ponto de visa financeiro, ao pagamento nominal de US$ 170 milhões. Mas tinha duas vantagens fiscais. Para a Astra, não caracterizava ganho de capital a ser tributado na venda. Para a Petrobras, permitiu que um investimento, que numa transação convencional seria amortizado em quinze anos (se os direitos de comercialização fossem classificados como ativo intangível), fosse aproveitado em termos fiscais em apenas dois anos, ao ser lançado como despesa. Segundo cálculo apresentado à diretoria da estatal, o ganho tributário seria de US$ 21 milhões.
Embora tenham indicado que valia a pena tentar, os advogados da Petrobras reconheciam que a forma jurídica estruturada poderia ser questionada. "O risco desse tipo de operação é o fisco norte-americano caracterizar que o valor que está sendo pago a título de "processing agreement" (acordo de processamento que a trading tinha com a refinaria) é, na verdade, parte do valor total de aquisição de ativos", diz um dos pareceres jurídicos que suportaram a negociação, sem mencionar estoques.
Confrontado com esses argumentos, Gabrielli disse por e-mail que, sem acesso a documentos internos da Petrobras desde fevereiro de 2012, não teria como comentar detalhes da transação.
Separar o negócio da trading também tinha outras vantagens tributárias. O controle da trading seria exercido pela Petrobras e pela Astra por meio de empresas constituídas como "limited partnership", que são isentas da Texas Franchise Tax, com alíquota efetiva de 3%, o que geraria economia anual de US$ 5 milhões.
Além disso, a Astra possuía um acordo negociado com os fiscos dos Estados Unidos, Canadá e Suíça ("Advance Pricing Agreement"), por meio do qual ela era tratada como trading global de petróleo, o que permitira que parte do lucro que ela obtivesse nos EUA fosse registrado como se fosse apurado em outros países, reduzindo sua carga tributária.
Os dois pareceres jurídicos que foram levados à diretoria da Petrobras sobre a compra em Pasadena (um da equipe brasileira e outro da empresa nos Estados Unidos) se atentaram muito mais aos aspectos tributários do que ao relacionamento com a sócia belga, detalhado nos contratos elaborados sob assessoria do escritório Thompson & Knight. A falta de atenção a esse segundo ponto talvez explique por que a estatal perdeu em praticamente todos os pontos discutidos na arbitragem, o que surpreendeu executivos que já fizeram negócios com a estatal. "Parece que foi feito para perder", disse uma fonte do setor ao Valor.
Há apenas uma menção à existência da opção de venda concedida à Astra, sem citar em nenhum momento o prêmio de 20% pela segunda metade da refinaria e da trading, além do pagamento separado por estoques, sem prêmio. Também não aparece nenhuma linha sobre a cláusula Marlim, que garantiria retorno mínima de 6,9% ao ano à Astra, se a refinaria fosse reformada. Esta última cláusula, contudo, nunca foi acionada.
Procurada, a Petrobras não se manifestou.
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