• Após 53 anos, Obama e Raúl Castro anunciam reatamento histórico de laços diplomáticos, pondo fim a um dos grandes duelos da Guerra Fria
Flávia Barbosa – O Globo
WASHINGTON - Numa decisão amadurecida por 18 meses, em encontros secretos no Canadá e no Vaticano, com a bênção do Papa Francisco, Estados Unidos e Cuba colocaram ontem fim a 53 anos de hostilidades e ao último capítulo vívido da Guerra Fria no continente. Em discursos simultâneos, os presidentes Barack Obama e Raúl Castro anunciaram a retomada das relações diplomáticas, a abertura de embaixadas em Washington e Havana e a retirada da ilha da lista americana de países que apoiam o terrorismo, abrindo espaço para o governo cubano tomar financiamentos no exterior e expandir negócios e investimentos. Os EUA decidiram ainda suavizar ou acabar com restrições a viagens e remessas de dinheiro e liberar várias transações financeiras e comerciais. A base do acordo foi a libertação do cidadão americano Alan Gross, preso desde 2009 por espionagem em Cuba, e de um agente da Inteligência detido há 20 anos em Havana, pelo qual Obama trocou três espiões.
Os detalhes finais da libertação dos prisioneiros foram acertados em conversa telefônica de mais de uma hora e meia, na terça-feira, entre Obama e Raúl, que já tinham feito História com um aperto de mãos no funeral de Nelson Mandela, em dezembro de 2013. Os dois se encontrarão na próxima Cúpula das Américas, no Panamá, em abril.
- Vamos acabar com uma abordagem ultrapassada que fracassou em fazer avançar nossos interesses. Estes 50 anos mostraram que o isolamento não funcionou. É hora de uma nova proposta. Não faz sentido manter uma política rígida enraizada em eventos ocorridos antes de a maioria de nós ter nascido. Este é o começo de um novo capítulo nas relações entre duas nações das Américas - afirmou Obama, que após citar José Martí, herói da independência cubana, complementou em espanhol: - Todos somos americanos.
Raúl pede fim do bloqueio
Em Havana, Raúl Castro ressaltou que o acordo não desfaz a demanda para que o bloqueio econômico, financeiro e comercial oficial seja revisto. Mas reconheceu o gesto dos EUA e demonstrou compromisso com a reaproximação.
- Fomos capazes de avançar na solução de alguns temas de interesse mútuo. A decisão do presidente Obama merece respeito e o reconhecimento de nosso povo - afirmou. - O progresso que fizemos em nossas relações prova que é possível encontrar soluções para muitos problemas.
Na prática, as medidas enfraquecem severamente o embargo estabelecido em lei em 1961, que não pode ser derrubado por medida executiva, apenas por votação no Congresso.
A guinada patrocinada por Obama reverte uma política ancorada em hostilidades que sobreviveu a 11 presidentes americanos e dois cubanos. E obedece à convicção de Obama de que o embargo é um fracasso, a sociedade dos EUA está madura para a mudança e o engajamento é a única forma de Cuba realizar a transição democrática.
Raúl Castro, por sua vez, tem na reaproximação formal uma oportunidade para aprofundar as reformas econômicas que implementou desde 2008, quando sucedeu a Fidel Castro no comando. Também recebe aval importante de que caminha para um processo de abertura política.
Neste sentido, ele acordou com Obama a libertação de 53 prisioneiros que os EUA consideram políticos, comprometeu-se com a ampliação e a melhora do acesso a internet e comunicações para os cidadãos cubanos e abrirá espaço para visitas adicionais de avaliação da ONU e da Cruz Vermelha.
Embora conversas secretas estejam em curso desde maio de 2009, as negociações que culminaram no anúncio de ontem começaram em junho de 2013, com um encontro de alto nível no Canadá. O passo só foi possível porque Havana sinalizou a disposição de libertar Alan Gross, prestador de serviços pego instalando equipamentos de telecomunicações proibidos em Havana em 2009, quando foi preso por espionagem. Os EUA negaram relação com o episódio, que se tornou obstáculo nas conversas bilaterais.
O grupo negociador manteve uma sucessão de encontros, que tomaram impulso final após o Papa enviar cartas a Obama e Raúl, pedindo a libertação de prisioneiros e um fim às hostilidades. O Vaticano sediou a reunião final entre os times americano e cubano, em novembro. Havana soltou Gross em condições humanitárias e exigiu, para a libertação do agente da Inteligência, a entrega pelos EUA de três espiões cubanos presos na Flórida.
Também pesou a avaliação positiva das duas rodadas de relaxamento de viagens e remessas implementadas por Obama, em 2009 e 2011. Atualmente, nove voos diários saem de Miami para Cuba, mais de 400 mil pessoas por ano, a maioria cubano-americanos, visitaram Havana no período e mais de US$ 8,5 bilhões inundaram o mercado cubano. O dinheiro está ajudando a colocar de pé os mais de um milhão de trabalhadores que abriram negócios como restaurantes, barbearias e empresas de transporte.
O objetivo é aumentar o cacife da sociedade civil cubana - empreendedores, críticos e opositores. Por isso, além de relaxar quase todas as restrições de viagens e quadruplicar o teto de remessas trimestrais de americanos, entre as medidas adotadas estão novas conexões de telecomunicações, a autorização para instituições financeiras americanas abrirem contas e uso de cartões americanos em Havana e a liberação da exportação de equipamentos que beneficiam agricultores e empresários.
Os EUA também acreditam que, engajados formalmente, terão mais influência, assim como poderão cobrar pressão por abertura política e respeito aos direitos humanos por parte de Havana.
- Acreditamos que nenhum cubano deve ser assediado, preso ou apanhar por exercer o direito universal de expressar seu pensamento, e continuaremos apoiando a sociedade civil neste assunto.
Obama afirmou que está pronto a se engajar "numa discussão séria e honesta" com o Congresso para a eliminação do embargo. Aos críticos, disse "compartilhar o compromisso com a liberdade e a democracia". Mas questionou as premissas.
- Não acredito que possamos seguir fazendo o mesmo há cinco décadas e esperar um resultado distinto. Tentar empurrar Cuba ao colapso não beneficia os interesses dos EUA nem dos cubanos. O que fazemos é um chamado a Cuba para que libere o potencial de 11 milhões de cubanos, com um ponto final nas desnecessárias restrições impostas às suas atividades políticas, sociais e econômicas.
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