quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Cuba e EUA saem da Guerra Fria – O Globo / Editorial

• O reatamento de relações terá forte impacto em todo o hemisfério, ao obrigar países e blocos regionais a rever conceitos envelhecidos

Os Estados Unidos e Cuba começaram ontem a derreter o imenso iceberg que se formou nas últimas décadas entre eles, separados por apenas 150 quilômetros. Em pronunciamento em que anunciou o início da normalização das relações com a ilha comunista, o presidente Barack Obama foi claro: “Estes 50 anos mostraram que o isolamento não funcionou. É hora de uma nova abordagem.” Esta “nova abordagem” representa uma virada histórica para os EUA e Cuba, com forte impacto em todo o hemisfério, por seu poder de influenciar posições e políticas envelhecidas de blocos e de cada nação em particular.

Os dois países têm um passado de hostilidade, ódio e frustração. Em 1962, o mundo esteve à beira de uma guerra nuclear pelo estacionamento de mísseis soviéticos em Cuba, de onde poderiam atingir qualquer ponto dos EUA.

Só ontem se soube que negociações secretas entre Washington e Havana ocorriam há 18 meses, sob os auspícios do governo do Canadá. Soube-se também do papel decisivo do Papa Francisco no encorajamento dos contatos entre os dois lados. Obama e o presidente cubano, Raúl Castro, fizeram questão de agradecer ao Canadá e ao Pontífice.

Revelou-se, ainda, com o anúncio do degelo nas relações, que Obama e Castro fecharam a negociação num telefonema de hora e meia na terça-feira. Eles confirmaram, nessa conversa, a libertação por Cuba do empreiteiro americano Alan Gross, condenado na ilha a 15 anos de prisão, supostamente por espionagem, tendo cumprido cinco anos da pena, e com a saúde se deteriorando. Havana libertou também um espião americano preso há 20 anos. Em troca, Washington soltou três espiões cubanos, de um grupo original de cinco. Cuba se comprometeu, também, a libertar 53 presos, considerados políticos pelos EUA, a facilitar o acesso da população à internet e a abrir espaço para mais visitas de avaliação da ONU e da Cruz Vermelha.

Raúl Castro anunciou as mudanças ao povo cubano no mesmo horário em que Obama falava, porém de forma mais resumida. “Esta decisão do presidente Obama merece respeito e reconhecimento do nosso povo”, afirmou o dirigente cubano. Todavia, fez questão de observar que o bloqueio econômico a Cuba persiste — ele só poderá ser levantado pelo Congresso americano. Mas Obama expressou a confiança de “poder comprometer o Congresso com um debate sério e honesto sobre o levantamento do embargo”. Raúl assumiu o governo cubano em 2006, por problemas de saúde de Fidel Castro, que dirigia o país desde a vitória da revolução, em 1959. Fidel não teve participação no presente processo de reaproximação, disse o governo americano.

Obama anunciou que o processo de normalização das relações começará com o restabelecimento de embaixadas nas respectivas capitais. O secretário de Estado, John Kerry, informou que a subsecretária para o Hemisfério Ocidental, Roberta Jacobson, viajará em janeiro a Cuba para iniciar as discussões nesse sentido com os cubanos. “Espero ser o primeiro secretário de Estado a visitar Cuba em mais de 60 anos”, observou Kerry. Washington retirará Cuba da relação de países que incentivam o terrorismo.

Cuba é um anacrônico bastião stalinista caribenho, e o regime comunista fez da ilha um país fechado. Menos apenas que a Coreia do Norte. A radical mudança de posição cubana, ao concordar com a reaproximação com os EUA, reflete o reconhecimento de seus dirigentes de que a abertura econômica, adotada com parcimônia nos últimos anos, se revelou insuficiente para dar ao país o dinamismo que a sociedade requer. A isso se somou a debacle econômica da Venezuela, mantenedora do regime de Havana ao fornecer petróleo em troca da atuação de médicos cubanos nos programas sociais venezuelanos. Outros parceiros cubanos, como Rússia e Irã, também estão em dificuldades. A crise cubana ameaça a hegemonia do Partido Comunista, que já havia aumentado a repressão a dissidentes.

Os EUA entenderam, finalmente, que o arsenal de medidas contra Cuba há tempos passou a servir apenas de argumento aos líderes comunistas para manter as bases do regime. Os governantes cubanos aprenderam a se valer da inimizade de Washington para justificar a repressão aos dissidentes e os altos investimentos militares. Aos cubanos, as migalhas.

A manutenção do embargo econômico tornou-se uma questão capaz de mexer profundamente com a política americana. A Flórida concentra uma enorme população de cubanos-americanos, constituída a partir dos que deixaram a ilha nas últimas décadas para escapar de perseguições políticas e/ou das péssimas condições de vida. Os representantes dessa população americana aprenderam a usar politicamente a aversão ao regime comunista e ameaçavam sempre levá-la a votar contra candidatos favoráveis à suspensão do embargo. E a Flórida tem peso importante nas eleições presidenciais nos EUA. Mas essa situação está mudando, na troca de gerações, embora o senador Marco Rubio, descendente de cubanos e possível presidenciável republicano, tenha criticado o reatamento de relações. A seu ver, isto dará novo fôlego ao Partido Comunista para permanecer no poder. Parece estratégia eleitoral.

Numa outra reviravolta, os EUA anunciaram que não farão objeção à participação de Cuba na próxima Cúpula das Américas, a realizar-se em abril, no Panamá, com a presença de Obama. Há décadas, Washington resistia ao comparecimento cubano às cúpulas hemisféricas, apesar da pressão dos países latino-americanos.

O anúncio do reatamento cubano-americano se deu quando os líderes do Mercosul se reuniam na cidade de Paraná, na Argentina, e coube ao presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, reconhecer “o gesto do presidente Barack Obama, um gesto de valentia e necessário na História” (...)

A iniciativa dos EUA e de Cuba apanha a Venezuela em momento delicado, com sua economia destroçada pela queda do preço do petróleo. A política chavista de desviar a atenção dos problemas internos para um inimigo externo — os EUA — deixa de ter apelo com o acercamento entre Havana e Washington.

Os EUA querem fazer negócios em Cuba, é certo, mas o mercado cubano ainda é pequeno e pobre. O impacto do anúncio de ontem é mais expressivo, a curto prazo, para a América Latina. Ele tira sustentação de aspectos da política externa brasileira e de aliados bolivarianos, por exemplo, voltados para temas superados da Guerra Fria, como confronto Norte-Sul, o antiamericanismo e o terceiro-mundismo.

Mas ainda é cedo para garantir, como imaginam os EUA, que a abertura diplomática reverterá em mais liberdade e vida mais digna para os cubanos. Os caminhos, porém, para isso já podem ser abertos.

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