- O Estado de S. Paulo
Aceitemos então, de uma vez por todas, a voz do povo: a corrupção é “cultural” no Brasil, todos são chegados, os políticos sempre “levam algum” em suas tratativas e transações, os servidores são suscetíveis a “agrados” e sempre houve elos fortíssimos ligando negócios públicos e interesses privados, especialmente envolvendo grandes empreiteiras e grandes fornecedores de produtos e serviços ao Estado. Isto para não falar daquela propensão inata que o brasileiro teria a sonegar, subornar, tirar vantagem, superfaturar e ganha logo, de uma só vez, tudo o que acha justo ou calcula como certo.
O que sobra deste cenário – que foi traçado de modo mais refinado pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em evento nesta semana – é uma sociedade de corruptos e corruptores, pouco republicana, corroída pela desfaçatez e pela irregularidade, produto de uma longa história de privatização da vida pública que teria começado com a chegada das caravelas de Cabral em 1500.
É um cenário de horror. Exagerado, mas não desprovido de fundamento. Afinal, sempre somos filhos de uma história e os comportamentos humanos não são somente pulsões: são social e culturalmente determinados. Afirmar, portanto, que a corrupção é cultural não significa, a rigor, absolutamente nada. Assim como seus congêneres: “ah, isto sempre ocorreu” ou “está no DNA do brasileiro” ou “todos têm telhado de vidro” ou “não é de hoje que há corrupção na Petrobrás” ou “antes se roubava até mais”.
Nada disto ajuda a que se compreenda ou se freie a corrupção. Na melhor das hipóteses, pode servir para que se justifiquem ou se aliviem eventuais culpas. Se todos roubam, por que eu deveria me conter? O impulso à corrupção seria mais forte do que cada um de nós. Algo atávico. Corromper e ser corrompido seria como fazer a parte que nos cabe neste imenso latifúndio.
Há dois enormes problemas nesta formulação. Um é o de rebaixar a sociedade inteira. Outro é de convidar à passividade: já que é assim, nada pode ser feito para alterar o curso das coisas, a não ser eventuais punições seletivas e uma aposta genérica na educação.
A corrupção acompanha os humanos desde as cavernas. Não há época ou sociedade imune a ela. Nem vale a pena dar exemplos. A corrupção é uma espécie de segunda pele da civilização. No Brasil, tornou-se algo sistêmico, entranhado na estrutura do Estado, uma espécie de segredo compartilhado por todos e que todos fingem desconhecer.
Mas tão evidente quanto ela tem sido o esforço para combatê-la e isolá-la. O fato de à corrupção se associarem formas (manifestas ou dissimuladas) de violência, de injustiça, de desigualdade e de exploração provoca repugnância e rejeição social. O que tem ajudado a que não sejam esparsas ou ocasionais as tentativas de denunciá-la e cerceá-la, inclusive no Brasil. O capítulo dos “controles públicos” é riquíssimo a este respeito, parte de um verdadeiro arsenal que se tem mobilizado contra a corrupção.
Se a corrupção é sistêmica – ou seja, integra um universo com regras próprias, operadores, uma ética especial, fios que o amarram às instituições estatais e ao mundo dos interesses particulares –, também tem sido sistêmico o combate a ela.
Com a vida e os sistemas ficando mais complexos e mais “fora de controle” – mais submetidos a redes, mercados, concorrências selvagens e disputas de espaço – mais este arsenal foi se mostrando insuficiente. E mais a corrupção foi-se disseminando. No caso do Brasil, acrescente-se que houve também a incidência da modernização institucional e da democratização do Estado. A Constituição de 1988, a Polícia Federal, o Ministério Público, a própria cidadania fiscalizadora, os meios de comunicação, o jornalismo investigativo, tudo melhorou e passou a fazer com que a corrupção se tornasse mais visível, ainda que não necessariamente menos intensa. Ainda há muito o que melhorar. Mas já tivemos políticos graúdos e empresários graudíssimos presos e processados. Há um ineditismo aí, uma oportunidade para se ir mais longe.
Em vez, portanto, de ficarmos descobrindo a natureza “cultural” da corrupção, temos é de saudar a democracia brasileira, que está revisitando seus mortos e tirando esqueletos do armário. A ampliação da percepção social do problema não é “golpismo de direita” nem manobra para criar um “terceiro turno” na política. Ao contrário, é uma demonstração de que mais democracia e mais disputa democrática são fundamentais para que se tenha mais transparência e mais sucesso no combate à corrupção.
O tema da hora é a Petrobrás. Décadas de esquemas inidôneos, mil e um tentáculos. Mas também um período de governo, 12 anos seguidos de malfeitos, com provas, cheques e contracheques, confissões, acareações, tudo revelando um mega-esquema que, de um modo ou de outro, envolve e responsabiliza um conjunto de partidos e operadores ligados a um governo que se quer de esquerda. Esquema que, em 2005, já havia mostrado as garras no mensalão: um modelo de financiamento eleitoral e de compra de apoios políticos. Com o aumento dos custos das operações políticas e eleitorais e com o desejo sempre crescente que os grandes partidos têm de ficar no poder, alguns governos deram rédea solta à corrupção.
Diante disto, pouco adianta o governo dizer que o mecanismo começou antes dele. Não é honesto falar que por trás de tudo há a mão suja das oposições e que jamais houve um governo que tanto combate deu à corrupção. Também não dá para atribuir a solução à reforma política, que teria o dom de acabar com a promiscuidade política. Menos ainda é correto ameaçar com o risco de que a economia seja atingida para relativizar a gravidade da situação e amenizar a marcha das investigações. Um governo que governe precisa se posicionar com clareza e ter iniciativa.
O único procedimento adequado é aprofundar as apurações, reconhecer responsabilidades e tomar decisões, cortando a própria carne se necessário for. Entregar os anéis e eventualmente alguns dedos. Para continuar respirando e permitir que a sociedade inteira respire.
Não basta descobrir os frutos podres e sanear o cesto. Um governo forte, democrático e com um mandato popular recém-consagrado, como é o de Dilma Rousseff, pode e deve fazer muito mais. Antes que se perca a oportunidade.
Professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP
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