- O Estado de S. Paulo
Que há no horizonte turbulências na economia só um desinformado ignora: de fato, parece ter-se esgotado o modelo de crescimento baseado no consumo, escorado nos bons ventos da economia global até 2008 e na valorização das commodities. Distante da superinflação dos anos 1990, a alta do custo de vida ronda o chamado teto da meta, tornando o caso brasileiro bastante singular, com o baixo crescimento e a inflação persistente a empanar o brilho (relativo) de um desempenho que nos transformou em país da moda há alguns anos.
Tudo isso é certo e a disputa entre economistas e suas receitas estará aberta pelos próximos meses. Menos bem diagnosticado é o florescimento do que em outros contextos já se chamou de "inflação ideológica", tão típica dos anos 60 do século passado, lançando sua sombra sobre o debate contemporâneo e nos impedindo de ver as reais possibilidades de uma ação reformista nos diferentes âmbitos do cotidiano, para enfrentar a vida infernal nas cidades, a precariedade dos serviços públicos e as agruras da população.
A "inflação ideológica" é tão ou mais perigosa quanto a monetária. Numa, a moeda perde o valor numa espiral que constitui, segundo a experiência comum, poderoso fator de concentração de renda. Noutra, o que se desvaloriza são as palavras, a capacidade argumentativa, a consciência de que só se vence - provisoriamente! - um debate quando se assimila, de algum modo, o raciocínio do oponente em suas formulações mais expressivas. O jargão substitui o pensamento, o anátema toma o lugar do diálogo e a esfera pública se empobrece até um nível perigosamente crítico.
Fantasmas da guerra fria encontram condições para se mover desengonçadamente. Para alguns, o País desliza para o "comunismo" ou, no mínimo, algum tipo de revolução bolivariana, o que justificaria o apelo aos militares e a seu velho papel de fiadores da lei e da ordem em última instância. Outros, ao contrário, veem situações pré-revolucionárias, no estilo "inflacionado" dos anos 60, ao primeiro sinal de manifestações normais em democracia, como as de junho de 2013, com toda a sua carga de contradições e até mesmo com sua sequência problemática, ao serem capturadas e esvaziadas pela tática violenta dos black blocs, voltada, de modo abstrato e infantil (o esquerdismo ainda será doença infantil?), contra os símbolos imediatos do "capital".
Por certo, como adverte Habermas, agudo intérprete das democracias e suas disfunções, essa banalização das palavras e do circuito argumentativo se potencializa com a algaravia das redes. Estas, por si mesmas, não geram uma esfera pública democrática, infensa à apropriação pelo Estado e, ao mesmo tempo, capaz de incidir nos processos decisórios. Construir uma opinião pública informada e ativa, plural e arejada, requer atores - intelectuais, dirigentes políticos, partidos, organizações - que "concentrem" a atenção da cidadania sobre os temas politicamente relevantes e as escolhas cruciais que estão diante de sociedades complexas, como a brasileira.
Do ponto de vista da esquerda, não é certo que esse papel venha sendo exercido a contento pelo partido hegemônico - e o conceito de "hegemonia", aqui, deverá ser tomado em seu sentido mais limitado e até grosseiro. Mesmo verbalmente, ainda prevalece nesse partido uma cultura política que privilegia o "social" contra o "institucional", a "estatização" dos movimentos segundo parâmetros de "participação" controlada, para não falar de estratégias aventurosas sistematicamente reiteradas, como o tal plebiscito para a reforma política e a decorrente "constituinte exclusiva".
A cobrança tem de ser dura, uma vez que se dirige não a um partido qualquer, mas àquele que tem sido o protagonista da administração federal há três mandatos sucessivos. Por essas propostas e outras do mesmo teor se pode identificar um traço bizarro na situação brasileira: a existência de um partido de governo que, longe de se afirmar como dirigente legítimo de reformas avançadas, valendo-se exclusivamente dos métodos da democracia, volta e meia se enreda naquilo que um grande pensador da política do século 20, considerando a formação tardia de certos Estados nacionais, chamou de "subversivismo elementar" das camadas subalternas, estas, sim, com escassa compreensão do Estado e das possibilidades de sua ampliação democratizadora. Um partido, em suma, que domina e não dirige; que propõe rupturas "radicais" na vigência da legalidade constitucional em cujo âmbito conquistou consensos e chegou ao governo nos diferentes níveis da Federação.
Não deve ter outra origem a ideia de ocupação e loteamento do poder, a cooptação da direita tradicional e praticamente todos os seus representantes, bem como a criação artificiosa de uma "direita" com os pesados atributos de neoliberal, machista, racista e nostálgica do regime militar. Numa circunstância, como a brasileira, instável e sujeita a surtos de populismo, como de resto pode ocorrer a todas as democracias do nosso tempo, chega a ser irresponsável chamar de "direita" todo aquele que diverge ou critica, mesmo pertencendo evidentemente ao campo democrático.
No regime ideológico inflacionado, palavras e gestos se desgastam e se usam de modo instrumental. O punho cerrado, símbolo do comunismo histórico, pode ser erguido, no Parlamento, só para afrontar o chefe de um outro poder. Não há nenhuma ação verdadeira que ajude a formar a opinião pública: discute-se, em vez disso, a desinência gramatical da palavra "presidente". Estes e outros exemplos seriam apenas bizarrices, não viessem de um partido poderoso, com altas responsabilidades na República, e não denunciassem um gosto por operar à beira do abismo em que, à moda de Drummond, o diabo joga damas com o destino.
Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das 'Obras' de Gramsci no Brasil
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