O nome de Marco Antônio Coelho, editor da revista Politica Democrática, falecido no dia 21 de novembro passado, ocupa lugar importante no Partido Comunista Brasileiro. Ele foi um dos formuladores do pecebismo contemporâneo, ao lado de Caio Prado Jr., Armando Lopes da Cunha e Armênio Guedes.
No período imediatamente posterior ao segundo pós-guerra, Caio Prado escreveu dois textos bem expressivos da formulação radicada na interpretação da realidade brasileira – de uma estratégia para concretizar mudanças progressistas e democráticas no País. O primeiro é o artigo “Os fundamentos econômicos da revolução brasileira”, publicado, em fevereiro de 1947, na Tribuna de Debates da Voz Operária, preparatória ao IV Congresso do PCB, quando da sua primeira convocatória (o congresso só veio a realizar-se em 1954). No início desse texto, o historiador se refere à sua tradição marxista também reivindicando filiação ao exemplo dos clássicos que eram “homens de ação e políticos militantes”. Ele escreve no artigo: “E, assim, a maior parte da obra de Marx e Engels, e sobretudo a de Lênin, tem um conteúdo essencialmente prático e joga com elementos, circunstâncias e problemas que representavam a própria experiência histórica de que participavam”. Caio Prado interpreta a circunstância daqueles anos 1940 e define como tarefas da revolução brasileira concluir dois processos históricos, como condição para o país se desenvolver e caminhar em direção a um “futuro socialismo brasileiro”. A primeiradelas era “completar a transição do regime de trabalho escravo, extinto juridicamente há mais de meio século, diz ele em 1947, mas ainda mantido mais ou menos disfarçadamente em um sem número de casos, para um novo regime de trabalho efetivo e completamente livre”. Seu olhar sobre o rural fará com que, voz isolada, veja os efeitos da aplicação do Estatuto do Trabalhador Rural, promulgado em 1963, no governo Jango, como uma nova Abolição. A segunda tarefa era levar a bom termo a industrialização que vinha tendo curso no país de modo parcial por meio do processo de substituição de importações (uma indústria “mal aparelhada e onerosa para o país, que representa com sua produção cara e de qualidade medíocre um pesado tributo imposto à comunidade nacional)”.
O segundo texto é o livro Diretrizes para uma política econômica brasileira(monografia para o concurso à cadeira de Economia Política da Faculdade de Direito da USP), publicado em 1954, que nos traz a argumentação com que Caio Prado participa do intenso debate público sobre a superação do atraso brasileiro. O militante comunista interpela a compulsão economicista dos desenvolvimentismos daquela época. Sua Economia Política não segue a lei de Say, segundo a qual a produção cria o seu próprio consumo. Ele dizia que entre os dois mecanismos econômicos, o da produção e o do consumo,tomava o segundo como ponto de partida e baliza da questão do desenvolvimento; o termo consumo aludindo ao conjunto da população brasileira. É desta perspectiva que ele defende uma industrialização menos “eventual”, menos “artificial”, como a que se processava no país, e que fosse mais estruturada, capaz de incorporar de modo realmente produtivo a força de trabalho nacional e estender o bem-estar a todos os brasileiros, social e geograficamente. Sua problematização, no livro de 1954, de uma política econômica renovadora significa assentar de fato no campo pecebista bases teóricas de uma estratégia para avançar o desenvolvimento do país mediante reformas capitalistas tendo no horizonte a meta socialista.
Enquanto essas reflexões caiopradianas apontam linhas programáticas, os artigos de Armando Lopes da Cunha (“O Programa e os caminhos do desenvolvimento do Brasil”), de Armênio Guedes (“Algumas ideias sobre a frente única no Brasil”) e de Marco Antônio Coelho (“A tática das soluções positivas”) voltam-se para o agir político, com o qual ficará o PCB conhecido na história brasileira. Os textos de Lopes da Cunha e de Guedes são intervenções nos debates de 1956-57 sobre os reflexos no PCB da denúncia do stalinismo feita por Kruschev, no XX Congresso do PC soviético, em 1956, cujo impacto, como se sabe, iria levar à Declaração de Março de 1958, que anunciou a refundação do PCB. Já o artigo de Marco Antônio Coelho, sua contribuição às discussões do V Congresso do PCB de 1960, procura desdobrar a nova políticana afirmação de um outro padrão do agir dos pecebistas.
Armando Lopes da Cunha publicou, na Voz Operária, de 27/10/56, o seu artigo “O Programa e os caminhos do desenvolvimento do Brasil”, no qual se choca frontalmente com a tese do “Brasil-colônia dos Estados Unidos”. Era esta visão estagnacionista que sustentara o Manifesto de Agosto de 1950 e que ainda continuava presente no Programa do PCB, aprovado no IV Congresso de 1954. A orientação “sectária e esquerdista”, como ele diz, que distanciava os comunistas da vida real e da política nacional, mantendo-os isolados em suas doutrinas encapsuladas, aparece nesta tese: “O desenvolvimento do país e a conquista da sua plena independência só serão possíveis após a derrubada do ‘atual governo’ (Dutra; Getúlio-RS), governo visto como expressão pura e simples dos latifundiários e dos grandes capitalistas serviçais dos imperialistas norte-americanos”. Lopes da Cunha põe a questão de modo direto, dizendo que era inegável, naqueles anos 1950, “que o país pode se desenvolver e caminhar rapidamente para sua independência nacional sem a prévia derrubada do ‘atual governo’, e não há mais dúvida simplesmente porque isto está acontecendo sob nossos olhos. A necessidade de modificarmos nossas concepções programáticas é, portanto, patente, como patente é também que muito se pode avançar no sentido da independência e do progresso, bem como da própria modificação do governo, nos quadros da atual Constituição”. Este reconhecimento impunha que se passasse a apresentar soluções positivas para os problemas brasileiros “e que deixemos de criar dificuldades para a unidade de ação em prol da independência como por vezes tem ocorrido por estarmos imbuídos das mencionadas ideias programáticas que condicionam a tática estreita, sectária e exclusivista”.
Armênio Guedes publicou em setembro de 1957, na revista Novos Tempos, editada por um grupo de renovadores após serem derrotados na discussão sobre o XX Congresso, um artigo chamado “Algumas ideias da frente única no Brasil”, no qual, primeiro, desconstrói a mentalidade dogmática que impedia divisar a realidade brasileira, e em seguida delineia os contornos de uma estratégia de frente única concebida como convergência das “forças progressistas e democráticas”, efetivamente existentes na cena pública, com vistas a ações não-episódicas. Essa estratégia consiste numa articulação de grande alento: “O objetivo não deve ser apenas a frente única por reivindicações parciais; deve visar a ação política pela criação de um governo de frente única antiimperialista (ou nacional-democrática ou antientreguista ou que nome tenha)”. Esta idéia da construção progressiva da frente única – que se tornará trabalho permanente no PCB – vai se notar inclusive bem mais adiante na redação da Declaração do Comitê Estadual do PCB da Guanabara, de março de 1970. Neste texto – de sua autoria, cf. Guedes, 1981a–, Guedes traz-nos uma apresentação mais precisa da política de concentração democrático-reformista ao realçar o papel central da política e recusar um tipo de primarismo “que vê as esperanças do êxito de uma política revolucionária unicamente na catástrofe da política econômica das classes dominantes”; economicismo catastrófico ainda arraigado nas esquerdas e em intelectuais de grande prestígio que escrevem textos estagnacionistas na época ditatorial, prevendo a inviabilidade da política econômica do regime e o seu colapso no curto termo. O texto de 1970 tornou-se emblemático da política da resistência antiditatorial a partir da atuação em todas as conjunturas por mais adversas que fossem, como a do início do governo Médici. Guedes atentava para os problemas postos e os processos e tendências que iam se formando ou já estavam em curso. Não obstante o endurecimento da ditadura com o Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 13/12/68, ele previa, naquele momento, examinados os ziguezagues do regime, possibilidades de desenvolvimento da Resistência e do isolamento do regime de 1964, processos que se dariam com avanços e recuos.
Esse agir tem como referência os cenários possíveis que Armênio Guedes divisa nos seus textos “como hipótese para o trabalho político”. Em “Algumas ideias sobre a frente única no Brasil”, de 1957, ele desenha estes cenários: 1) era possível reunir forças na frente nacionalista e democrática e transformar o governo JK num sentido reformista; e 2) havia a possibilidade, “menos imediata, porém mais provável, de formar um governo desse tipo como resultado das eleições de 1958 e 1960”. Interligadas essas possibilidades num processo progressivo, “a mais próxima associada à outra seguinte e mais decisiva – a eleição presidencial”. No texto de 1970, os cenários em que o processo de fascistização do regime pós-AI-5 poderia ser detido e derrotado seriam estes: 1) ou através de um movimento irresistível que mobilize a opinião pública, atraia para o seu lado uma parte das Forças Armadas e organize um levantamento geral (com maior ou menos emprego da violência); 2) ou através da desagregação interna do poder, sob o impacto do movimento de massas e depois de crises sucessivas, forçando uma parte do governo a facilitar a abertura democrática; e 3) ou pela predominância e vitória, nas Forças Armadas, da corrente nacionalista, capaz de superar e liquidar o conteúdo entreguista do regime, nos moldes concebidos pela ESG e aplicados pelos altos chefes militares no mando do país, a partir de 1964”. Neste caso, Guedes advertia que a corrente nacionalista poderia manter o poder autoritário, o que implicava, necessariamente, seguir com a luta democrática. (GUEDES, 1981b).
Essa reorientação do PCB recebeu a contribuição renovadora que Marco Antônio Coelho nos apresenta no seu artigo “A tática das soluções positivas”, publicado na Tribuna de Debates da Voz Operária, preparatória ao V Congresso de 1960. Neste texto, ele se contrapõe a várias críticas às teses do evento congressual, nas quais reaparece a velha mentalidade “sectária e esquerdista” que “leva, de um lado, às manifestações aventureiras e, de outro, à espera passiva das ‘grandes lutas’ que se avizinham, realizadas por uma vanguarda isolada”. Defendendo a virada radical de 1958, Marco Antônio Coelho concentra o seu texto no que ele chama de “elemento novo e essencial e de extraordinária importância para a atividade do PCB: a defesa pelo movimento revolucionário da tática das soluções positivas. Ele cita a Declaração de Março: “A frente única nacionalista e democrática acumula forças à medida que luta por soluções positivas para os problemas colocados na ordem do dia, realizando-as na proporção da capacidade da frente única e das condições favoráveis de cada momento”. Pelo seu caráter mobilizatório, essa tática leva os interessados nas demandas a pressionar, com mais vigor no contexto da frente única, os governospara que afirmem seu lado progressista; e, caso não se obtenha êxito, ela suscita a necessidade de se lutar pela formação de um novo governo reformista e democrático. A política construtiva não só desenvolve a autoconsciência das massas a partir dos seus próprios problemas, como também confere prestígio aos comunistas ante a população e a opinião pública nacional, habilitando-os cada vez mais como ator político a ser levado na devida conta.
Como fazem Lopes da Cunha e Armênio Guedes – partir da realidade e, naquele segundo quinquênio dos anos 1950, atentar para “novas condições (que) determinam nova tática” –, Marco Antônio associa o caminho das soluções positivas a mudanças de mais alento, progressivas, na perspectiva das “reformas estruturais” do capitalismo. Pela clareza na exposição da política de “renovação democrática” dos comunistas italianos, ele cita um texto de Enrico Berlinguer sobre as teses do IX Congresso do PCI, de 1958: “A palavra de ordem de desenvolvimento econômico e político democrático e a luta pelas reformas de estrutura nada têm em comum, pois, com uma politica reformista que se propõe apenas introduzir pela cúpula, no sistema capitalista, determinadas correções de caráter paternalista. Para nós, uma política de desenvolvimento democrático e de reformas de estrutura significa que, sobre a base do avanço do movimento de massas, podem ser levadas a efeito radicais transformações na esfera da produção que constituam outros golpes contra as grandes concentrações da propriedade e do Poder” (citado de Problemas da Paz e do Socialismo, n. 2, 1960).
Marco Antônio Coelho observa que a tática das soluções positivas requer dois reconhecimentos de grande significado. O primeiro se refere ao fato de que a opção pela politica construtiva decorre da realidade política do país, “onde as coisas não se passam de acordo com esquemas revolucionários idealistas”, sendo assim formulado esse reconhecimento: “Felizmente, hoje já não pensamos dentro da mesma bitola (“sectária e esquerdista” – RS). Vamos para a disputa das massas na arena política e colocamos na mesa as soluções que possuímos (denominamos de positivas essas soluções porque elas visam unir todos os setores do povo contra o imperialismo, porque isolam os piores reacionários e os inimigos da Nação brasileira, e resolvem problemas do país e do povo). Na luta política, muitas vezes, somos obrigados a concordar com opiniões apresentadas por outras forças porque não temos a pretensão de possuir o monopólio da verdade ou da linha justa”. Em consequência, essa política exige “a mais intensa participação no processo político real”. O segundo é o reconhecimento de alcance estratégico: “Não nos esqueçamos que a luta pelas soluções positivas só é possível desenvolver-se num clima de democracia, quando haja respeito pelo direito inscrito na Constituição. Sendo assim, a tática das soluções positivas determina que se trave a defesa das liberdades e o combate pelo aperfeiçoamento do regime democrático”.
Estas reflexões de Marco Antônio Coelho sobre o agir e os seus fins construtivos vão ter atualidade à hora em que Santiago Dantas reclamou da falta de uma “esquerda positiva” (expressão deste quadro político do governo Jango) no tempo de radicalização anterior à destituição do Presidente; e durante a Resistência democrática, quando o PCB pôs à prova o seu agir lúcido e agregativo, tornando-se, por esta qualidade, um partido decisivo no campo da frente democrática antiditatorial.
Com esse pecebismo descrito nos textos dos quatro formuladores, podemos dizer, com a distância do tempo, que, antes de ter obsessão pelo poder, o PCB transformou-se em um partido de mentalidade reformista, comprometido com a política de frente única, por meio da qual, em muitos anos de luta, foi consolidando sua vocação democrática e a percepção da democracia política como instrumento das mudanças progressistas no Brasil.
Na sua longa trajetória, afastando-se da disputa doutrinal, como forma de afirmar identidade, o PCB foi se concentrando na busca de uma orientação eficaz nos processos políticos e nos encaminhamentos das questões postas pelas conjunturas vividas por seus militantes. Balizado pela análise das situações e previsão de cenários, o seu agir caracterizou-se como um trabalho construtivo, paciente e constante, sempre se movimentando com perspectiva e o hábito da avaliação das suas táticas, autocrítica e retificações.
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O PCB deixou um legado ainda hoje importante, sobremaneira quando vemos que a ideia de esquerda foi profundamente erosionada e, muito preocupante, as correntes militantes se afastam da tradição do agir referido por uma teorização sobre o Brasil, por uma análise compreensiva da circunstância em que vivemos.
O PT nunca mostrou interesse pela tradição da esquerda histórica. Nos últimos tempos este legado tem passado por um processo de esmaecimento, lembrando a Operação Borracha, que Érico Veríssimo viu apagando a memória em Antares, lugar imaginário do seu livro político publicado em 1965, Incidente em Antares (esta observação é de José Antônio Segatto). Agora, quando não há outra saída senão empreender uma autocrítica radical em relação a toda a Era Lula, o PT necessita de um caminho de volta – pois seu projeto de revolução do social populista acabou –, e, quem sabe, também possa mirar a cultura política pecebista.
Referências bibliográficas
GUEDES, Armênio. Apresentação àResolução política do Comitê Estadual do PCB da Guanabara (março de 1970). Revista Temas de Ciências Humanas n. 10, São Paulo: Ciências Humanas, 1981a.
__________. Resolução política do Comitê Estadual do PCB da Guanabara (março de 1970). Revista Temas de Ciências Humanas n. 10, São Paulo: Ciências Humanas, 1981b.
PRADO JR.,Diretrizes para uma política brasileira.Monografia para o concurso à cadeira de Economia Política da Faculdade de Direito da USP. São Paulo: Gráfica Urupês Limitada, 1954.
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Raimundo Santos é autor do livro Caio Prado Jr. Cultura política brasileira (2001) e organizador da coletânea de textos de Armênio Guedes, intitulada O marxismo político de Armênio Guedes (dez. 2012).
[Texto publicado no novo espaço https://www.facebook.com/pages/Esquerda Democrática em 02 de dezembro de 2015].
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