quarta-feira, 10 de agosto de 2016

O mundo no Rio - Roberto DaMatta

• Como não enxergar esse contraste entre a utopia da competição idealizada, delineada no juramento olímpico, e o descaso pelas leis com sérias consequências políticas?

- O Globo

Tal foi a frase de uma mensagem que recebi de Richard Moneygrand, meu velho mentor, que, ao ler a coluna na qual falo dos meus 80 anos, prediz com seu permanente e generoso otimismo que, com cautela, eu chego aos 90.

Mas, prossegue o sábio, como deixar de falar da variante brasileira dos Jogos Olímpicos que fazem o seu ano de nascimento, Roberto, o distante 1936, coincidir com esses Jogos de 2016?

Como não observar o modo pelo qual vocês aculturaram esse ritual reinventado na Europa, moldando-o e “nele dando um jeito”?

Dando-lhe um estilo no qual a ambiguidade — disfarçada de improviso (o qual perdoa tudo, até o roubo descarado pelos poderosos) — é um valor; visto que nem toda sociedade repete — como insistem os idiotas do determinismo histórico — o esquema que começava na antiguidade escravocrata e terminava no inferno da exploração burguesa.

Nesta indigente visão linear, não há misturas, repressões ou reversões. Mas como aplicar isso ao seu Brasil, que teve na escravidão africana o foco do seu desenvolvimento e da sua civilização fundada, como dizia Darcy Ribeiro, primeiro no “cunhadismo” (os colonizadores “casavam-se” com as índias) e, depois, pela mestiçagem, a qual engendrou um preconceito relacional. Nele, a aparência predominava sobre a origem, como ensinou um não lido Oracy Nogueira?

Como ser igual aos ingleses e franceses se vocês são — como tem visto o Comitê Olímpico Internacional com trepidação — uma coletividade na qual o improviso, o risco, o adiamento, o recurso e o foco do meio, e não do início ou do fim, são dimensões básicas de sua cosmologia? Para vocês, definir é um castigo, e o inferno não são os outros, pois tudo depende de quem é o outro. Se for amigo, é céu; se inimigo ou estrangeiro, fica-se com Sartre.

Como não especular que esse grandioso ritual esportivo marcado por normas fixas, simples e conhecidas não esteja ocorrendo em paralelo a um tenebroso julgamento criminal cujo ponto crítico é o exato oposto: o não cumprimento de leis pelos mais altos responsáveis pelo país?

Como não enxergar esse contraste entre a utopia da competição idealizada, delineada no juramento olímpico, e o descaso pelas leis com sérias consequências políticas? A maior delas sendo a divisão do Brasil como país, numa ocasião em que — diante de outras nações — ele deveria estar unido...

Mas, por outro lado, continua Moneygrand, como não abrir-se para o fato de que o “esporte”, como a música, o vinho, o amor, o cinema e a literatura são maquinas de esquecimento? Que essas atividades que chamamos um tanto sem pensar de “jogos” inventam novos focos, mudam pontos de vista e, com isso, trocam as coisas de lugar? Primeiro, porque eles custam muito caro; depois, porque exigem uma imensa organização; e, finalmente, porque ninguém pode ser anfitrião sem arrumar sua própria casa.

Quando um país “joga” com outro, substituindo o conflito e a guerra por modalidades esportivas “olímpicas” — ou seja, formas de competir que incluem times e indivíduos, como é o caso do futebol e do atletismo e da natação —, o resultado não é o ressentimento que engendra outra guerra, mas aquela familiar transformação da frustração em solidariedade em nome de algo maior. E nada é mais importante e até mesmo sagrado, conforme diziam os sociólogos clássicos, do que a fabricação de uma totalidade capaz de englobar todas as suas partes num acordo indiscutível. De gestos, espaços, uniformes, aparelhos e regras que valem para todos e que não levam à destruição, mas cobrem de honra o perdedor e asseguram o direito a um outro “jogo”. De tal maneira — prossegue o professor — que não se pode mais distinguir vitória e derrota, porque elas são parte essencial de uma mesma moeda. Convenhamos que isso é o oposto da guerra na qual um grupo simplesmente aniquila o outro. Um dos “trabalhos” mais formidáveis do “esporte” é precisamente essa legitimação da derrota pela vitória que será superada ou vencida no próximo encontro ou campeonato.

A Olímpiada é — como você mesmo remarcou sem ter sido lido, pois ninguém é profeta na sua própria tribo, no seu livro “A bola corre mais que os homens” — um ritual de integração mundial. Nela, o protagonismo não é o da globalização com seus avanços técnicos, os quais abrem fossos entre as “maçãs” e as “bananas”, mas é o investimento humano. Esse elemento que nas artes mas, sobretudo, no esporte reúne técnica, esforço intelectual, perseverança espiritual ao ponto da renúncia do mundo, com desempenho. Na competição, vemos o exterior — a disputa de um time contra o outro; ou de pessoas usando seus corpos na luta contra o espaço e o tempo. Mas, olhando mais de perto, enxergamos a dedicação e o investimento reveladores de um espírito. Uma “ética de dedicação” a uma modalidade esportiva tão grande quanto a devoção e o amor.

Esse amor, prossegue meu velho amigo, finalizando sua mensagem, que hoje vocês têm neste Rio que é o palco do mundo.

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Roberto DaMatta é antropólogo

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