- O Estado de S. Paulo
No Brasil, essa relação sempre foi infausta e discrepante, adversa e de sujeição
A relação Estado e sociedade civil no Brasil, desde a fundação do Estado nacional, foi sempre infausta e discrepante, adversa e de sujeição. Essa realidade foi objeto de análise de intelectuais de variadas linhagens do pensamento social. Exemplares são as obras antinômicas de Oliveira Vianna e Raymundo Faoro.
O primeiro, ao constatar que a sociedade civil era amorfa e frágil, propugnava um Estado forte, centralizado e autoritário para (re)criá-la – um Estado demiurgo. Já o segundo, ao inverso, entendeu que o Estado foi organizado como aparato de poder exclusivo e restrito, burocrático e patrimonial – o Estado é tudo, a sociedade civil, nada; seriam necessários, portanto, a reordenação das estruturas estatais e o deslocamento de parte de seus poderes para a sociedade civil.
Traços tanto do estatismo de Oliveira Vianna quanto do liberalismo de Raymundo Faoro podem ser encontrados em toda a História brasileira. O estatismo é patente ao longo de quase todo o regime imperial, quando o Estado precede a sociedade civil, inexistente mesmo nos seus estertores, como revelou um testemunho da época: “O que há de organizado é o Estado, não a nação” (Tobias Barreto). Na Primeira República (1889-1930) – quando se enceta um esboço de sociedade civil –, tem-se um liberalismo mitigado pelo domínio oligárquico e pelas práticas patrimonialistas e clientelistas. Nos anos 1930, o estatismo e o autoritarismo ganham proeminência, sobretudo durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), acoplando agora o corporativismo – o Estado, sob o governo Vargas, (re)fundou ou instituiu a sociedade civil, subordinada aos seus desígnios (sindicatos, organizações estudantis, etc.).
Com a democratização de 1945 foi instaurado um regime liberal, limitado, porém, pelos resquícios de autoritarismo e corporativismo – não obstante isso, nos anos 1950-60, teve início um processo de criação de pressupostos favoráveis ao encorpamento e ao dinamismo da sociedade civil, favorecido pela vigência de determinadas liberdades democráticas e pela forma como se compôs o poder estatal. Essas condições foram abortadas pelo golpe de Estado e pela instauração da ditadura civil-militar (1964-1985), que radicalizou os elementos antidemocráticos, centralizadores e estatistas.
No processo de transição democrática, de fins dos anos 1970 e ao longo da década de 1980, houve a emergência de uma sociedade civil revigorada, que teve papel relevante na democratização, mas foi sendo contida pelos resíduos históricos extemporâneos. Ressalta-se que nessa quadra política, de resistência e combate à ditadura, se propagou, com muita força, o entendimento de uma sociedade civil virtuosa, portadora da liberdade e da justiça, versus um Estado autoritário e controlador, pervertido e iníquo – esse fenômeno está mesmo na origem do PT e do PSDB. O breve governo de Itamar Franco e, em especial, os governos de Fernando Henrique Cardoso – que prometiam o desmonte do estatismo e do populismo varguista – deram seguimento a um projeto político eclético, mesclando liberalismo e social-democracia com elementos conservantistas e/ou tradicionalistas. A seguir, nos governos petistas, retomou-se a política varguista, setores consideráveis da sociedade civil foram cooptados ou mesmo estatizados, além de revigorar-se o estatismo e o patrimonialismo, o clientelismo e o corporativismo.
Desse conciso painel histórico, em que se alternam períodos de predomínio de estatismo ou de liberalismo nunca completos ou exclusivos, podem-se extrair algumas ilações:
1) Tanto num como no outro, a relação entre Estado e sociedade civil foi impregnada de patrimonialismo, clientelismo e fisiologismo;
2) houve, no decorrer dessa História, uma disjunção entre Estado e sociedade civil, entre sociedade civil e política e suas instituições mediadoras, em particular, os partidos políticos;
3) essa relação disjuntiva, aparentemente paradoxal, de tutela e sujeição foi executada por agentes da política e da própria sociedade civil, objetivando estabelecer a dominação e o controle do aparato estatal e nele materializar e maximizar seus interesses privatistas e particularistas;
4) dessa relação instável e assimétrica, resultou um Estado parcamente público e insuficientemente democrático e uma sociedade civil atomizada e difusa, sem capilaridade e organicidade, com diminutas autonomia e identidade societal.
Tais condições adversas, evidentemente, não constituem simples elementos e fatos pretéritos. Eles foram perpetuados e continuamente reatualizados. Assim sendo, essas relações têm de ser repostas e levadas em sua devida conta nas análises e na práxis política dos protagonistas empenhados em remover os bloqueios à ativação da sociedade civil, em rechaçar a complacência dos Poderes com a cultura política autoritária, em superar os obstáculos ao livre exercício dos direitos de cidadania e à ampliação das normas e instituições democráticas.
Obviamente, isso não implica a contração dos poderes do Estado e o esvaziamento de suas atribuições e/ou prerrogativas (Estado mínimo) e sua transferência para uma sociedade civil supostamente autogovernada pelos interesses e pelo livre mercado – seria retroagir à incivilidade ou mesmo à barbárie. Ao contrário, implica, sim, a construção de um Estado público e desprivatizado, democrático e expurgado do patrimonialismo e do cartorialismo, do clientelismo e do fisiologismo, do corporativismo e do populismo; demanda, por outro lado, uma sociedade civil autônoma e ativa, acoplada e conexa a uma esfera pública consoante com aspirações e demandas democráticas.
Desse modo, a discussão e a implementação de reformas – política e eleitoral, trabalhista e previdenciária, fiscal e/ou tributária, etc. – não podem estar desvinculadas das complexas relações entre Estado e sociedade civil.
* José Antônio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp
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