- Valor Econômico ||Eu & Fim de Semana
Desde o caso Collor, uma grande dúvida se abate sobre a consciência de muitos brasileiros, aqueles mais preocupados com a crescente ruína moral do país: estaríamos sendo injustos ao definir os corruptos como corruptos? No momento em que o presidente Collor deixava o Palácio, cassado por supostamente ter seu governo cometido atos de corrupção, vozes na multidão, que se diverte com as desgraças nacionais, gritavam: "Revista ele!". Para a turba de feira livre, o político corrupto é mero batedor de carteiras.
Nos casos mais recentes de corrupção, corruptos se defendem alegando méritos patrióticos que se sobrepõem aos atos de corromper e ser corrompidos. Um dos partidos acusados invocou os benefícios aos pobres em seu governo, caso do Bolsa Família. Portanto, há corrupção social ou, talvez, socialista, ou, melhor ainda, corrupção de esquerda. A de esquerda, pode. A que não pode é a de direita. Mas a direita também tem seus argumentos cívicos. Empresários acusados e até presos alegam, em sua defesa, que imensas e necessárias obras públicas ficarão paralisadas, com grandes prejuízos para o país, se suas empresas forem inviabilizadas. Há até quem considere como bons tais argumentos.
Existe, ainda, a corrupção propriamente cívica, com direito a Hino Nacional. Políticos jeitosos, que cavaram um lugar na fila da sucessão presidencial, acusados de corrupção, a da propina em troca de favores políticos, a típica corrupção brasileira, escudam-se nas carências do poder para declararem-se imprescindíveis. Sem eles, a pátria correria perigo, o do vazio do poder e, até, o da ditadura. Já há indícios suficientes para que desconfiemos todos que o próprio Judiciário leva em conta esses riscos ao tomar decisões em relação aos políticos acusados de corrupção. Vimos isso no casuísmo de preservar o mandato do presidente do Senado tolhendo-lhe, no entanto, o direito de sucessão no caso de ser chamado a governar o país em decorrência de eventual vacância da Presidência da República. Uma castração judicial.
Com tantos jeitinhos e jeitões, com tantas racionalizações autojustificadoras, a situação brasileira é um verdadeiro laboratório para a compreensão científica da chamada corrupção. O Brasil poderia dar ao mundo um exemplo de criatividade no âmbito do conhecimento descobrindo as características profundas da corrupção. Temos o material radioativo e pútrido aqui mesmo. Temos a chance da originalidade na classificação dos corruptos segundo padrões de observação próprios da ciência. Isso ajudaria todos os que têm sido chamados a julgar os corruptos, mas que ainda não se dispuseram a julgar a corrupção. Sempre vale a preocupação do personagem de José Cândido de Carvalho (1914-1989), em "O Coronel e o Lobisomem", personagem que é dono de um entendimento cromático dessas coisas quando constata que lobisomens, há os pardos. O Brasil pode estar inventando não só a diversidade da corrupção, mas também a possibilidade de criar uma ciência da corrupção.
Não só aqui nem só agora a corrupção é fator de criatividade. Na curta Benet Street, em Cambridge, Inglaterra, há vários endereços antigos, por alguma razão notáveis. O mais conhecido é o do tricentenário pub Eagle's, menos pela cerveja. Mais porque na mesa número 13, num canto, em 28 de fevereiro de 1953, um sábado chuvoso, na hora do almoço, estava reunida a pequena equipe de cientistas, liderados por Francis Crick e James Watson, que fazia a pesquisa sobre o DNA, a meia quadra dali, no Cavendish Laboratory. Crick atrasou-se porque ocorrera-lhe, subitamente, fazer um teste. Voltou para trás e dali a pouco entrou no pub, lívido, e dirigiu-se a Watson: "Acabamos de descobrir o segredo da vida!". Do outro lado da rua, a torre de mil anos da igreja de St. Benet's contempla indiferente o lugar pouco convencional do anúncio dessa revolução científica.
Numa ponta da pequena rua, a 50 passos do pub, existe hoje um restaurante italiano. Até há pouco tempo era ali a agência local de um dos mais poderosos bancos britânicos. Ao lado da porta de entrada uma placa azul da autoridade responsável pela memória histórica do país conta aos transeuntes porque aquele edifício é notável: "John Mortlock, 1755-1816, Master da cidade de Cambridge". Este lugar foi em certa época sua morada, em que ele abriu a primeira casa bancária de Cambridge. Comerciante de tecidos, banqueiro, membro do Parlamento, cartorário e 13 vezes prefeito. "O que vocês chamam de corrupção, eu chamo de influência", sentencia ele do Além. Mortlock está santamente sepultado numa igreja bem próxima do lugar em que desenvolvia seus negócios sob essa inspiração. Quem associa corrupção a Satanás pode estar muito enganado.
*José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de ”A Sociologia como Aventura” (Contexto), dentre outros.
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