- Valor Econômico
No circo jurídico atual importam as consequências
Na terça-feira pela manhã, em evento público, Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, declarou que a pena de Lula poderia ser reduzida. Explicou aos circunstantes que basta que um tribunal superior, o STJ ou STF, venha a considerar que Lula cometeu apenas um e não os dois crimes pelos quais foi condenado, isto é, apenas corrupção sem a lavagem do dinheiro recebido indevidamente.
Não se tratasse de um ministro do Supremo Tribunal Federal e, mais do que isso, que esse ministro não atendesse pelo nome de Gilmar Mendes, a fala poderia ser interpretada como uma simples conjectura ou opinião. Mas, até as pedras sabem, havia ali mais que uma simples hipótese, um sinal estava sendo emitido.
O furor em torno da declaração do ministro só fez crescer com o voto dado ao chegar esbaforido à sessão da sua Turma no STF. O ministro perfilou-se com o relator, ministro Dias Toffoli, o amigo de tantos votos, desempatando o placar em favor da solicitação da defesa do ex-presidente Lula para que as delações dos executivos da Odebrecht saíssem da alçada do juiz Sergio Moro. A decisão foi surpreendente, dado que a Turma já tinha rejeitado duas vezes esse mesmo pedido da defesa.
Os votos de Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, como é de se esperar, foram fundamentados e acompanhados de longos arrazoados, adornados com citações e palavras cujo sentido escapa ao vulgo. Pode ser que alguém tenha se dado ao trabalho de procurar entender as razões da reviravolta, mas na imprensa ninguém se deu ao trabalho de simplificar a vida do leitor. Na verdade, ninguém mais se importa, ninguém mais acredita que está em causa esta ou aquela lei, muito menos a justiça. No circo jurídico criado, importam as consequências, quem é favorecido e quem é prejudicado. Vivemos sob a égide de um arcabouço legal torcido e retorcido ao sabor das circunstâncias e das necessidades do momento.
Não é a primeira vez que Toffoli e Mendes entram em ação e urdem estratagemas dessa ordem. Diante das desventuras recentes do deputado, a operação desfechada por ambos para salvar a candidatura Paulo Maluf em 2014 é um caso exemplar e que merece ser rememorado.
Inicialmente, a candidatura Maluf à Câmara dos Deputados foi impugnada com base na Lei da Ficha Limpa, primeiro pela justiça eleitoral do Estado de São Paulo e, posteriormente, pelo Tribunal Superior Eleitoral. No TSE, a derrota foi apertada, por 3 a 2. Os votos favoráveis às pretensões de Maluf vieram da dupla Dias Toffoli-Gilmar Mendes.
Inconformado com o resultado, como de hábito, com aquele tom professoral que o caracteriza e com a delicadeza de um zagueiro uruguaio, Mendes criticou a falta de saber jurídico dos colegas que o haviam contrariado. Mendes explicou que a aplicação da Ficha Limpa pediria condenação por crime doloso e que, no caso do ex-prefeito de São Paulo, a condenação teria se dado por crime culposo. Traduzindo para os leigos: para Mendes, como o desvio de dinheiro não teria sido intencional, Maluf poderia prosseguir em sua carreira longeva.
Maluf, tenaz como sempre, recorreu da decisão. Como o recurso não foi julgado antes da eleição, uma cautelar garantiu que seu nome aparecesse na urna eletrônica. Deu-se assim o inusitado: o eleitor pôde votar no candidato, mas esses votos foram contados como nulos na apuração. "O Globo" deu conta do surrealismo criado: "Mesmo com registro cassado, Maluf é o oitavo mais votado em São Paulo."
Em meados de dezembro, quando a composição da Corte foi modificada - um dos três ministros que votara pela aplicação da Ficha Limpa a Maluf recebeu uma missão oficial e foi substituído por outro mais cordato, o ministro Tarcísio Vieira - a vontade de Toffoli e Mendes preponderou e Maluf tornou-se candidato na eleição do mês anterior, seus votos foram 'desanulados' e, consequentemente, eleito deputado.
Quando se trata de defender uma causa ou amigo, Mendes saca da toga um arsenal infinito de macetes jurídicos e distinções de conveniência. No centro do picadeiro em que transformou o Supremo, o ministro não se cansa de produzir acrobacias e magias.
A reação da turma da Lava-Jato à operação de terça-feira foi a que dela se esperava: puseram a boca no trombone, por meio de despachos e posts nas redes sociais. O procurador Carlos Fernando dos Santos Lima perdeu a compostura e o destempero lhe valeu o risco de ameaça de uma punição disciplinar. Para a turma da Lava-Jato, somente a harmonia com a Força capacita para o combate à corrupção. Se a investigação ficar a cargo de qualquer outro juiz que não Moro, dizem que estão armando acordo para salvar os corruptos. O berreiro dos integrantes da Força, implicitamente, desmerece todos os demais membros do sistema judicial, mas esses pouco se importam, só saem às ruas para defender o auxílio moradia.
Obcecados com os processos contra Lula, os combativos membros da Força não se deram conta do verdadeiro objetivo de Mendes. O ministro não se pôs em campo para proteger ou salvar Lula. Seu objetivo é outro. Assim se fazem os truques de magia. A atenção do espectador é desviada para que o coelho saia da cartola.
O que pede a intervenção do ministro são casos como o de Ronaldo Cezar Coelho que, segundo informou "O Estado de S. Paulo" de sábado, "recebeu € 6,5 mi por empréstimo de avião para atividades ligadas à campanha de Serra em 2010." Em depoimento à Polícia Federal, o empresário afirmou que o dinheiro foi depositado na Suíça a pedido do então presidente do PSDB. Segundo o jornal, o relator do inquérito no Supremo Tribunal Federal é ninguém menos que Gilmar Mendes. Não há notícia de que Cezar Coelho tenha foro privilegiado e, nesse caso, a Força não vê razões para protesto.
A delação da Odebrecht alcança a todos. Vai muito além da Petrobras e da gestão do PT. É isso que preocupa Mendes e o faz recorrer a seus malabarismos jurídicos habituais. Neste caso, o coelho precisa ser reposto na cartola.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.
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