segunda-feira, 30 de abril de 2018

Nelson Paes Leme: A relevância do Legislativo

- O Globo

De nada adianta se eleger um santo guerreiro genial para o Executivo se este terá de negociar com Congresso de pulhas, incompetentes, cretinos e corruptos para governar

Existe um fator essencial subjacente nas crises brasileiras desde sempre: a irrelevância histórica que temos devotado à eleição de nossos legisladores, esquecendo-nos de que um Poder Legislativo robusto intelectual e moralmente é a base de bons governos. Por motivo tão simples quanto quase pueril: é de lá que emergem as leis que nos governam. Exemplos? O foro por prerrogativa de função (ou privilegiado) e a prisão após o trânsito em julgado. Duas jabuticabas só encontráveis em repúblicas bananeiras como a que se transformou o Brasil deste princípio de século, independentemente de estar entre as sete maiores economias do Planeta. Mais um? O sistema de acesso ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, contrariando a exigência constitucional de concurso público. Culpa do Poder Judiciário, que faz malabarismos de toda ordem para remediar essas excrescências? Jamais. Nossa culpa, que desdenhamos do voto secreto na hora sacrossanta, na solidão da cabine indevassável, no momento único e irreversível de nomearmos nossos procuradores ou mandatários para legislar por quatro longos anos. Ainda por cima sem chance constitucional de “recall”.

Temos elegido palhaços, jogadores de futebol, médicos, capitães de polícia e Exército, atores, professores primários, delegados, agentes de correio, economistas, banqueiros e bancários, metalúrgicos, operários, empresários, gente de todo tipo e respeitáveis afazeres. Raramente especialistas em leis. E quando o fazemos, assim tão esporadicamente, não os selecionamos por caráter, competência ou probidade, mas pelos mais fúteis critérios de mera notoriedade, muitas vezes por já lá estarem e serem rostos familiares, independentemente de estarem devendo aos costumes republicanos ou não. Tanto isso é real que a Lei da Ficha Limpa é uma lei de iniciativa popular. Já as Dez Medidas de Combate à Corrupção enviadas solenemente ao Congresso Nacional pelo Ministério Público foram totalmente desvirtuadas e prostituídas no seio desse Legislativo apodrecido e contaminado.

Outro dado alarmante é a precedência que os meios de comunicação e os institutos de pesquisa dão aos candidatos ao Poder Executivo. De nada adianta se eleger um santo guerreiro genial para o Executivo se este terá de negociar com um Legislativo de pulhas, incompetentes, cretinos e corruptos para governar. Não se lê uma linha sobre isso nos jornais. Não se ouve ou assiste a um comentário sobre essa distorção aberrante nas rádios ou nas televisões. Exemplo? Ao gigantesco espaço dado à prisão de um ex-presidente da República, sucedeu-se uma discussão bizantina sobre quem poderia visita-lo na Polícia Federal ou não. Sobre as vigílias das caravanas pagas dos “sem-terra” e “sem-teto” com dinheiro sabe-se lá de que origem, em vez de reflexões objetivas sobre como se evitar um tal descalabro para as futuras gerações de se ter no cárcere, ao mesmo tempo, um ex-presidente da República, um ex-governador do segundo maior estado da Federação, um presidente da Câmara Federal, um ex-presidente da mesma Câmara Federal e um presidente da República várias vezes denunciado e ainda governando o país. Quase inacreditável, mas real.

Ninguém discute novas leis nem se fala claramente em como reformar a Constituição. Fala-se em reforma federativa, reforma política e reforma tributária a todo instante, mas poucos (ou quase ninguém) sabem diferenciar poder constituinte originário de poder constituinte derivado.

Estamos a menos de seis meses das eleições gerais para o Legislativo e o Executivo, e o povo não tem a menor ideia de em quem votar para legislar e tentar reverter esse verdadeiro descalabro em que se transformou a vida pública no Brasil. O eleitor está completamente desorientado e órfão de opções em eleições tão decisivas para o país. Resta-lhe esse estéril Fla X Flu entre “esquerda” e “direita”, conceitos em franco desuso.

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Paes Leme é cientista político

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