O cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, professor da UFBa, além de meu amigo, é de longe um dos melhores analistas da conjuntura política brasileira. Os textos com que cumpre essa função são preciosos e vão sempre ao centro da problemática, num esforço dedicado a compreender os fios que movem o processo político, muitos dos quais não se mostram de imediato. Ele deseja, digamos assim, capturar o processo em pleno voo, para expô-lo como uma plataforma preparada para a ação política inteligente.
Paulo é, também, um desvelador das ilusões e aparências que bloqueiam o acesso à realidade, um democrata empenhado, que valoriza a política como caminho para a gestão e a transformação da vida. A “grande política” é o seu foco, mas ele também sabe, por um lado, que a “pequena política” existe como instância incontornável, a ser devidamente considerada, e por outro, que política é luta, divergência, conflito e busca de consensos mediante negociações permanentes e mediante o debate público, no qual palavras e “narrativas” são determinantes.
Em seu mais recente texto, publicado no site do movimento Roda Democrática, Paulo Fábio nos dá uma aula de como a postura firme, realista, e as ferramentas da teoria política são indispensáveis para a compreensão do que se passa hoje no Brasil.
É um texto tão provocativo e bem argumentado que me incentivou a propor a ele um diálogo.
Consensos e acúmulos
Quero começar problematizando sua hipótese inicial, segundo a qual há hoje uma diferenciação entre os democratas: uma ala mais “radical” bate-se em defesa de “consensos já constituídos” e vislumbra uma saída da crise via “mobilização da sociedade civil”, ao passo que outra ala, composta por democratas mais realistas, busca consensos “racionalmente possíveis” mas que “exigem altos riscos políticos para serem concretizados”. Enquanto a primeira ala seria mais “idealista” e “empolgada” (as expressões são minhas), a segunda é mais “ponderada” e “paciente”. A primeira não entende a política como acúmulos progressivos e pensa o combate à crise como uma sucessão de “rupturas”, enquanto a segunda compreende que a saída é mais penosa e valoriza “alianças e a competição eleitoral entre atores da política institucional, sempre visíveis e expostos em instituições representativas”.
Para ele, os consensos do primeiro tipo são justificados pela filosofia e pela ciência da política. Já a concretização dos segundos requer o “exercício da política in natura, de fluxo contínuo”.
Paulo Fábio deixa de lado a questão de saber se os “consensos constituídos” não poderiam ser os mais adequados ou se não poderiam funcionar para dar base de sustentação aos “consensos racionalmente possíveis”. Ele parece acreditar que os primeiros seriam equivocados por definição, ao passo que os segundos seriam corretos simplesmente por nascerem de cogitações racionais feitas em nome da “grande política”. Não há qualquer indicação dos caminhos pelos quais os “consensos racionalmente possíveis” poderiam ser alcançados, quem seriam seus agentes e promotores.
Este é, a meu ver, o ponto falho de sua argumentação.
Não consigo compreender a contraposição sugerida por Paulo Fábio como sendo expressão de duas formas antagônicas de pensar a saída da crise. Ao contrário, vejo-as como complementares. Não há conflito entre elas e é perfeitamente possível ativar consensos “já constituídos” na sociedade civil como base para que se construam consensos “racionalmente possíveis” na sociedade política. O inverso talvez seja mais difícil, mas não descartaria liminarmente a sua possibilidade.
Do que se trata, aqui, é de encontrar um equilíbrio entre a política in natura e a política normativa, coisa que integra o próprio programa de trabalho dos democratas, ou ao menos dos democratas mais consistentes, “radicais” ou não. Trata-se, para falar de outro modo, de enfrentar o desafio de articular sociedade civil e sociedade política, articulação que alimenta e faz viver o Estado democrático. O problema político por excelência, hoje, no Brasil, é encontrar uma instância que possa funcionar como motor de uma reorganização da sociedade e do Estado, caso em que, a rigor, não seria adequado trabalhar com disjunções entre sociedade civil e sociedade política.
Política e sistema político
Hoje, no Brasil, aquilo que Paulo Fábio chama de “política in natura” choca-se com um sistema pouco potente, que não consegue enfrentar nem sequer sua própria crise e muito menos construir saídas que tragam consigo um programa reformador para o conjunto da sociedade. Os partidos estão em frangalhos, a elite política perdeu qualidade e o “corporativismo” de seus integrantes corroeu o Congresso. A “grande política” ficou, assim, comprimida, sem um adequado ambiente institucional para fluir. A “pequena política” tomou conta do palco, girando fora de qualquer controle e entregando-se por inteiro à defesa de seus próprios interesses.
Nessa situação, é difícil sustentar que a política possa se autocontrolar, fluir e produzir resultados sem um mínimo de pressão social organizada, ainda que não faça sentida vê-la como completamente impotente.
A opção que se tem é dupla: por um lado, ativar o que há de vida saudável na política instituída, mobilizando suas energias e seus interesses; por outro lado, ativar as forças democráticas da sociedade civil para que forneçam à política instituída parte da energia com que se poderá conseguir alguma superação. E, mais importante, fazer isso tendo como farol a Constituição e a democracia política.
Paulo Fábio sabe disso, como mostra sua longa trajetória de militância política e reflexão intelectual. Quero crer, portanto, que sua construção inicial serve a ele sobretudo como elemento de provocação ao bom debate, não como uma carta de navegação. Ele, no fundo, quer alertar contra os perigos de uma espécie de “maximalismo” despolitizado, que troca um “prudente pessimismo atento ao potencial explosivo da conjuntura” por um “otimismo prospectivo” voltado para a sociedade civil como “terreno promissor para uma ação reformadora contra o “patronato” político em geral”. Os “otimistas” estariam desatentos tanto aos “riscos institucionais que toda faxina política comporta” quanto a um “eleitorado que subjaz à aclamação do discurso moralizador”.
Suas “cautelas céticas” fazem com que ele questione tudo o que “atiça pretensões fundantes”, atalhos que “podem nos atrasar, aos nos afastar do mundo real, de sólidas rotas e caras tradições”. O exemplo por ele mobilizado é o do “súbito sucesso que faz a retórica demiúrgica do ministro Luiz Barroso”.
São ponderações importantes e corretas, mas não resolvem o problema que desafia Paulo Fábio: como fazer a “política in natura” vibrar quando suas ferramentas e seus atores não estão a dar conta da situação, parecendo alheios a ela? E se tal vibração não ocorre, como formular uma saída para a crise? O incrementalismo de Paulo Fábio, levado às últimas consequências, pode, no caso, produzir mais paralisia que ação construtiva.
Patronato e oligarquias
Paulo Fábio implica com o uso abusivo do termo “patronato”, filho dileto do “idealismo constitucional” de Raymundo Faoro. Inclui-me entre os que cometem tal falha, vendo-me como um “democrata radical” hostil ao Estado patrimonialista e defensor do uso “ecumênico” do termo de Faoro. Aqui também, Paulo Fábio está querendo “salvar” a política, preservando-a dos ataques idealistas contra “tudo o que está aí”, em particular as casas legislativas, os governos, a elite política, agindo como se a sociedade fosse mais liberal e progressista do que seu Estado.
É um alerta justo, mas que em algum ponto da estrada perde contato com a realidade dura da política, cometendo o mesmo crime “idealista” atribuído a terceiros. Porque Paulo Fábio parece convencido de que é possível sair da crise tão-somente mediante tentativas de fazer vibrar as cordas da política, que são geradoras de uma mutação social que “é lenta e em nada se assemelha a uma ruptura fundadora”. Ele não admite que se substitua a frieza analítica por “vislumbres” que terminam por um “dar-de-ombros ao Brasil que já era, mas ainda é”. Ele sabe que o “patronato político” existe no Brasil, mesmo que o conceito de Faoro não deva ter livre curso: há uma “elite” que tem, desde sempre, segurado as rédeas do jogo político, atualizando-se com o passar do tempo. O “patronato” não é sempre o mesmo (donde ser possível incluir Lula, entre outros, como fazendo parte dele), mas seu estilo de atuação pode ser visto como reiterativo, compondo um dos nossos grandes problemas. Não pode ser visto como um núcleo de poder direcionado para a “corrupção”, não é expressão de um “patrimonialismo necessariamente corrupto”, mas dá curso a uma “oligarquia” que mistura pedaços inteiros do Brasil tradicional com partes do Brasil moderno, formando esse país que já era sem deixar de ter sido, “que já era mas ainda é”.
Fazer a crítica do patronato e do patrimonialismo não significa – não pode significar – desqualificar o Estado e seu papel. Não há, rigorosamente falando, qualquer relação de causalidade entre patrimonialismo e tamanho da máquina pública ou ineficiência estatal, nem muito menos entre patrimonialismo e corrupção. Acho que nem Faoro pensou assim. São coisas diferentes, que precisam ser analisadas em sua diferenciação. Mas é verdade que muitos críticos atacam o patrimonialismo para desse modo atacar o Estado. A vertente mais criativa dessa polêmica – a de Faoro, Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda – vai em outra direção e acredita que o patrimonialismo é um “mal” vinculado a uma base material de desigualdade e a uma tradição perversa, cheia de sinuosidades, sendo que o combate a ele precisa tanto do Estado quanto da democracia política. Poderíamos dizer, em outro registro teórico, que o “patrimonialismo” é parte de um “bloco histórico” (Gramsci) que tem conseguido se reproduzir de forma contínua no Brasil.
Modos de pensar e agir
Nos alertas e ponderações de Paulo Fábio, quero crer, há um convite para que os democratas de esquerda busquem se reaproximar, rever seus procedimentos e recuperar suas inflexões intelectuais mais fortes. A discussão por ele proposta é importantíssima e deve ser aceita por todos os democratas e, particularmente, pelos que se perfilam no campo do comunismo democrático.
Dado o quadro de dificuldades e dissonâncias em que se vive, isso significa que estamos obrigados a travar uma batalha teórica entre nós, partindo do suposto de que nossas “verdades” (teóricas e políticas) podem ser revisitadas e atualizadas.
Atualizar tradições nunca foi e nunca será algo fácil. Sempre será possível aceitar um “sábio modo político de pensar”, incremental e construtivista, que forjou uma tradição (como, por exemplo, a do comunismo democrático), e ao mesmo tempo divergir em termos de encaminhamentos práticos. Paulo Fábio, por exemplo, está convencido de que o modo construtivista de pensar deveria levar os reformistas democráticos de esquerda a “moderar voz e dedos” e a ficar “mais atentos, menos indiferentes e nunca refratários às tentativas do governo atual de produzir alianças capazes de levar forças políticas que pariram a pinguela a sustentarem-na até outubro para propor ao país um programa eleitoral comum”. Para ele, estaria nisso o “fluxo contínuo da política”: cumulativo, gradual, sem rupturas.
Mas quem não vê a conjuntura desse modo, com o MDB contratado como um condottiere, estaria propondo “um novo modo de pensar”, que não é renovador mas somente “estranho” a uma tradição? Todos os que pensam diferentemente estariam cedendo a um “conservadorismo” que nos põe “em harmonia com um consenso já existente em torno da economia” e com os clamores moralistas da sociedade civil, mas nos faz “mandar politicamente às favas e, portanto, às calendas da filosofia, necessidades políticas que, dramaticamente, são requerimentos de hoje”?
A dura e implacável crítica é a um “idealismo antigo, entre nós inédito”, que “ensaia script para um agir pragmático sem vocação para tanto”. Paulo Fábio exagera, com certeza, o que talvez reflita a dificuldade que tem de definir com clareza seus adversários. Acaba, por isso, deslocando pessoas para o outro lado, sem buscar o que há de comum no horizonte de uma esquerda reformista, democrática e republicana, que de certo modo deita raízes numa mesma tradição política.
Façamos um pequeno exercício para explicitar algumas divergências que vicejam nos ambientes democráticos de esquerda, incluída a “Roda Democrática”.
Convite à reflexão
Estamos todos convencidos, por exemplo, de que precisamos nos aproximar do campo liberal, celeiro de ideias importantes para a formatação do mundo moderno. Não devemos jogar todas as fichas em alianças na política prática, mas buscar o diálogo também em termos de pensamento, nos modos de pensar. É uma estrada ampla, sinuosa, que foi trilhada pelo comunismo democrático há tempo, dentro e fora do Brasil. Não estamos todos convencidos, porém, de que a melhor tradução dessa aproximação seja um cerrar fileiras com o governo Temer ou vê-lo como o articulador possível no Brasil atual.
Temos muitos consensos quanto à influência do reformismo democrático. Estão todos hoje receosos tanto das dificuldades de proposição de uma candidatura que possa se mostrar competitiva e seja, ao mesmo tempo, democrática e aberta ao reformismo, quanto dos riscos da adesão popular a candidaturas antidemocráticas tipo Bolsonaro. Mas há os que entendem que uma postulação de “centro” precisa conter uma clara energia social (uma “inclinação à esquerda”, como já afirmei) e há os que pensam que o centro democrático é um valor em si, construído no âmbito do sistema político e sustentável sem maiores inflexões sociais.
Os democratas de esquerda não podem associar mecanicamente a corrupção ao “patronato político”, nem vislumbrar a “refundação moral da política do país”. Precisam dar atenção à corrupção e descobrir a melhor maneira de combatê-la, até porque isso ajuda à política e aos políticos. Varrer a corrupção para baixo do tapete, ou naturalizá-la, é tão deletério quanto colocá-la num pedestal de salvação da pátria. O desafio é dar à corrupção o justo peso na questão democrática e da justiça social, sem converter a luta contra ela no motor da dignidade e da moral pública. Mas há os que pensam que se deve dar um tratamento pontual à corrupção e outros que acreditam que a corrupção é um problema a ser subordinado ao jogo político e por ele resolvido, quando possível. Há, ainda, quem veja a corrupção como o maior problema nacional e quem entenda que a desigualdade é o verdadeiro complicador da vida nacional.
Hoje, a luta contra a corrupção sensibiliza vastos setores da sociedade e da sociedade civil, mas não recebe tratamento adequado na sociedade política. Devemos ajudar a alterar esse quadro e a reduzir a distância entre esses dois decisivos planos do Estado democrático. A “política dos cidadãos” não é antagônica à “política dos políticos”, mas é um vetor decisivo para fazer com que ela possa se completar. E vice-versa.
Há também a questão do Judiciário. Hoje, o Estado está “desequilibrado”, suas instituições não conseguem fornecer os ingredientes para “pacificar” o país e pavimentar um caminho de reorganização política. O Judiciário é o único poder que, a rigor, consegue se salvar, mesmo estando imerso em muitos desentendimentos. Apoiá-lo, a meu ver, não é celebrar um “compromisso radical com a punição”, nem muito menos “antepô-la, em ritmo e métodos, ao que pode nos oferecer a eleição”, como escreveu Paulo Fábio. É, ao contrário, dar forças a um agente que pode, por usufruir de uma posição circunstancial melhor que a dos demais poderes, defender a Constituição, a democracia e a lisura eleitoral.
O STF, e a rigor todo o Judiciário, age quando há vazios e omissões dos demais poderes, ou para legislar, ou para compensar a impotência dos políticos ou ainda para abrir espaços para causas estratégicas da sociedade civil. A “judicialização” é mais resultado de uma “despolitização”, de uma perda de potência do sistema político, do que uma deliberada usurpação voltada contra a política.
Isso tem a ver com a Lava Jato e com as interpretações jurídicas por ela impulsionadas, como é o caso, por exemplo, da prisão em segunda instância e da “presunção de inocência”. A divergência, aqui, pode aparecer tanto no que diz respeito ao maior ou menor respeito à letra da Constituição, quanto no que se refere ao embate entre “garantistas” e “punitivistas” ou à interpretação que se pode fazer do papel do Ministério Público e do próprio juiz Sergio Moro. Há quem veja neles a expressão bem acabada de um “tenentismo togado” – portanto, uma corporação destinada a enquadrar e rebaixar a política – e há quem os veja como uma “oportunidade” para que se recomponham os termos de convivência entre os brasileiros e se oxigene a atividade política no país.
Trata-se de uma divergência que pode ser processada de modo a produzir um entendimento comum, que certamente excluirá qualquer adesão “salvacionista” e demiúrgica ao que quer que seja.
O artigo de Paulo Fábio nos oferece um eixo para esse esforço de convergência: “No horizonte dado pelas duras circunstâncias dessa crise, Constituição e eleição são balizas que resumem os limites politicamente possíveis do nosso querer. Tudo o que as ameaçar, ou que limitar os seus poderes, deve nos acautelar, não animar”.
O ciclo que se abrirá com as eleições de 2018, seja qual for o vencedor, não trará consigo, automaticamente, a reorganização política do país nem entronizará uma forma categórica de reformismo. Forças se movimentarão e os desafios permanecerão em aberto. No mínimo por isso, estamos num momento excelente para superar divergências tópicas e ativar debates e reflexões, como tentei fazer aqui e como Paulo Fábio sempre faz.
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp
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