- Valor Econômico
Quem governa contra o que prometeu sofre forte rejeição no país
Uma das ilusões provocadas pela redemocratização do país, iniciada há 33 anos, foi a de que os períodos de instabilidade política e econômica, típicos de democracias frágeis, ficaram para trás depois da transição de poder ocorrida em 2003. Naquele ano, Fernando Henrique Cardoso passou a faixa presidencial a Luiz Inácio Lula da Silva, coroando processo de transição aparentemente civilizado e com baixa expectativa de ruptura em relação à nova administração, apesar da forte turbulência ocorrida durante a campanha.
É possível tirar lições do complexo processo político brasileiro. Uma delas é a de que estelionatos eleitorais - quando o candidato promete algo na campanha e depois de eleito faz o oposto - são punidos de maneira exemplar pelos eleitores. Os atuais candidatos devem saber disso porque o caso recente de Dilma Rousseff foi didático.
Desde 1989, o país teve sete eleições presidenciais e nove transições de poder. O descompasso entre pleitos e troca de presidentes se explica pelo fato de terem ocorrido dois processos de impeachment - de Fernando Collor, em 1992, e de Dilma, em 2016. Quando se analisa a coerência entre promessas de campanha e gestão, a tese de estelionato ganha força.
Em 1989, o Brasil vivia momento de enorme desesperança. Em cinco anos de retomada do poder pelos civis, três planos econômicos - Cruzado (1986), Bresser (1987) e Verão (1989) - fracassaram na tentativa de debelar a inflação crônica que assolava o país desde a década de 1970. A cada malogro, a inflação voltava mais forte. A primeira eleição direta desde 1960 se deu em meio a um ambiente econômico tão conturbado que ficou difícil para os eleitores escolher um candidato. Os brasileiros estavam fartos com duas coisas: inflação alta - que todos julgavam imbatível - e corrupção, que também parecia invencível.
Nesse cenário, esquerda e direita se fragmentaram, tornando ainda mais difícil a identificação de candidatos com propostas claras. Collor, um político tradicional, saiu do PMDB, criou quatro siglas de aluguel e montou campanha com discurso implacável contra a corrupção. Fez isso antes de todos os outros e ganhou a dianteira nas pesquisas. Seu alvo principal era o governo Sarney, alvejado por denúncias de malfeitoria - antes, tornou-se conhecido nacionalmente como o "caçador de marajás", o jovem governador que "combateu" os altos salários do funcionalismo em Alagoas.
Collor tinha agenda liberal para a economia, mas isso nos primeiros meses de campanha não importava - no país do patrimonialismo, ideias liberalizantes afugentam eleitores à esquerda e à direita. Quando Lula avançou nas pesquisas e desbancou Leonel Brizola, do PDT, ganhando a vaga para disputar o segundo turno, Collor, o primeiro colocado, passou a atacar as ideias anacrônicas do candidato do PT, a explorar o temor da população em relação a "comunistas" e a usar do terror para assustar os eleitores - um ardil típico da política nacional: o candidato acusou Lula de preparar o confisco da poupança; quando assumiu o cargo, fez o confisco, que não foi só da poupança.
O confisco, que, por causa da situação inadministrável da dívida pública, foi considerado inevitável por economistas respeitados, caracterizou-se como um caso típico de estelionato. Deixou a esquerda perplexa e a direita, enfurecida. Há historiadores que afirmam que o confisco, uma forma de calote na dívida, foi o início do fim de Collor - acusado de corrupção, sofreu impeachment em 1992.
Em 1994, a bordo do Plano Real, programa de estabilização lançado em julho e que finalmente deu cabo da inflação crônica, Fernando Henrique Cardoso, líder como ministro da Fazenda do processo que resultou no lançamento da nova moeda, foi eleito presidente no primeiro turno. Foi um pleito previsível: nada era mais relevante do que acabar com a carestia.
Em 1998, FHC foi reeleito, novamente no primeiro turno, no início de uma crise que abalou o real. A economia voava baixo, mas a inflação era suíça - 1,6%. Os eleitores viram no "pai do real" o único capaz de enfrentar a crise externa que dragou, num só mês (setembro), US$ 45 bilhões dos US$ 75 bilhões das reservas cambiais. Terminado o pleito, o governo correu ao FMI para pedir socorro porque a turbulência escalaria e destruiria o real. Em contrapartida ao pacote, comprometeu-se com um rigoroso ajuste fiscal. No fim de dezembro, cochilou ao não aprovar no Congresso a contribuição dos inativos. O mercado entendeu que o pacote do FMI não teria sustentação.
Concluídas as festas de fim de ano, o governador recém-eleito Itamar Franco, de Minas Gerais, avisou que não pagaria a dívida externa. Era a senha que faltava para o mercado desistir do real - em questão de dias, a moeda sofreu desvalorização desordenada, obrigando o governo a mudar, em pouco tempo, duas vezes o regime cambial. A forte perda de valor do real foi entendida como um estelionato eleitoral e, por essa razão, FHC amargou os quatro anos do segundo mandato com baixíssima popularidade.
Nas eleições de 1989, 1994 e 1998, pesou contra Lula o rótulo de esquerdista radical. Em 2002, favorecido por um FHC enfraquecido, o petista tornou-se competitivo e mudou o discurso, com o lançamento em junho da "Carta aos Brasileiros". Muitos acham que o documento pacificou os ânimos do mercado, contrário ao petista. Não é verdade: mesmo com o manifesto, os capitais debandaram, levando o dólar a mais de R$ 4,00. Mas a carta foi fundamental para o momento seguinte: eleito, o petista governou de acordo com os compromissos assumidos. Lula não fez estelionato.
Em 2006, o petista, tendo sobrevivido ao mensalão, foi reeleito sem fortes emoções. Não houve confusão no mercado porque o empresariado e mesmo os banqueiros já confiavam nele. Quatro anos depois, Lula inclinou-se à esquerda e elegeu Dilma graças ao êxito de sua política econômica. O que talvez nem Lula tenha percebido é que a sucessora nunca se sentiu caudatária do receituário que a levou ao poder. Ela chegou ao Palácio do Planalto graças ao discurso do antecessor, mas não tinha nenhum compromisso.
Dilma cometeu estelionato eleitoral duas vezes: quando mudou a política que a elegeu; e depois, durante a campanha de 2014, prometeu ênfase nas políticas adotadas no primeiro mandato - responsáveis por jogar o país em profunda crise -, mas, reeleita, começou a fazer um duro ajuste, do qual acabou desistindo seis meses depois, abrindo espaço para que os aliados a tirassem do cargo.
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